X - Praia de São Marcos
30 de julho de 1917 - São Luís do Maranhão
Conceição caminha pela rua de paralelepípedos da capital do Maranhão. Trabalhadores de diferentes idades vão e vem, ninguém presta atenção na moça com semblante de culpa que usa um vestido puído de chita lilás e botinas gastas que machucam seus pés. As pessoas gritam oferecendo seus produtos. Em cada esquina há uma mulher, acompanhada por crianças de diferentes idades, vendendo café e bolo de arroz ou cuscuz. O estômago de Conceição ronca. Desde que conheceu Firmino foi tomada por uma voracidade insatisfeita, que não se aplaca mesmo que coma sem parar.
A moça chega à praia de São Marcos. O vento salgado despenteia os cabelos negros que esvoaçam a sua volta. Caminha em direção ao Farol, sentando-se à sombra da construção imperial, imponente e, ao mesmo tempo, decrépita.
Será que ele não vem?
Retira os calçados, sentindo a areia amarela, fina e morna massagear seus pés cansados. O cheiro de sal, algas e mariscos se confundem com o odor de expectativa e medo que ela exala. Cata as conchinhas enterradas na praia, recordando os acontecimentos do último mês.
No dia seguinte ao encontro na igreja, Firmino a esperava no caminho para a Escola Normal. Com o coração galopante, sem um pestanejar de culpa ou prudência, ela seguiu o jovem em direção àquela mesma praia. Conversavam sem se tocar. Pela primeira vez, o rapaz não avançou como era de seu feitio. Havia algo na moça de olhos puxados e longos cabelos lisos, que despertava nele um senso de proteção. Não queria apenas tomá-la, acrescentando a lista de conquistas que acumulava desde os doze anos de idade.
A coleção de Firmino incluía solteiras, casadas, viúvas, mulheres da vida, virgens e experientes. Todas se entregaram de bom grado e ficaram satisfeitas por isso, exceto Luzia, de quem não recorda desde que conheceu Conceição. A moça altiva, de tez escura, cabelos crespos besuntados de óleo de coco, rosto redondo, ancas largas e sorriso difícil, era uma linda, poderosa e teimosa filha de Oxum. Luzia era a única mulher em Codó indiferente aos encantos do moço, sonhava em partir para a capital, vivendo sozinha do fruto de seu trabalho. Firmino conquistou-a lenta e prazerosamente; a repulsa e recusa da jovem aumentavam seu interesse. Quando por fim lhe teve, sossegou nos braços mornos e aconchegantes, sem imaginar que o romance viraria tragédia.
Conceição brinca com a areia, não se passaram três minutos desde que chegou, mas a ausência de Firmino é angustiante como um garrote apertado. Mãos ásperas cobrem seus olhos, grita assustada e sorri ao reconhecer o cheiro adocicado e fumacento de quem esperava. Trocam beijos molhados, seus corpos urgindo pelo outro. Abraçados caminham em direção à enseada, onde as dunas e cocais formam um esconderijo para os amantes.
Tendo os papagaios como testemunha, Firmino lentamente saboreia a pele de Conceição. Dia após dia, as carícias se intensificam, sem nunca serem concluídas, o que a deixa em uma ânsia pulsante, com o coração errático e o corpo em chamas. Firmino deliberadamente prolonga os momentos de prazer inconcluso, regozijando-se com a visão sedenta dela. Os gemidos contidos, os seios apontando por baixo da blusa, os toques por sobre o tecido, a viscosidade dela em seus dedos, os arranhões em suas costas, todos os detalhes tornam cada avanço uma nova conquista. Da mesma forma que sabe que ela é completamente sua, reconhece que pertence a ela. Porém, isso não o impede de dar vazão ao desejo reprimido, saciando-se com o primeiro corpo que se lança em seus braços.
O rapaz sente que, desde o princípio, sua linha da vida foi fiada para se entrelaçar a de Conceição. Não tinha planos de ir em São Luís, mas sua irmã adoeceu e coube a ele trazer a sobrinha de dez anos para a casa de família em que a menina trabalharia. Inicialmente, pretendia ficar apenas uma semana na capital do Maranhão, retornando logo para Codó. Mas Birosquinha, que é seu tio e padrinho de batismo, lhe convenceu a assumir um trabalho junto com ele, pois seu ajudante caiu do andaime e quebrou o braço. Firmino, desde a infância acostumado ao trabalho pesado, se adaptou rapidamente à construção civil.
Birosquinha gostou do zelo e técnica do sobrinho, ofereceu pouso em sua casa e insistiu para que o rapaz permanecesse na capital, tornando-se seu ajudante de forma fixa. Porém, o moço não gostava do clima da cidade, sua alma e coração pertenciam à mata, além disso, não queria se distanciar da família e ainda havia Luzia. Firmino planejou partir na mesma semana em que conheceu Conceição. Mas tal qual fogo fátuo, a imagem da suposta futura noviça, consumiu todas as lembranças de Luzia. Suas promessas tornaram-se cinzas e o futuro planejado converteu-se em lembranças desconexas de algo que poderia ter acontecido.
A paixão pela moça de cabelos lisos despertou um quê de loucura em sua mente. Se tornou distraído, impulsivo, desejoso. Porém, não foram somente os olhos castanhos, o sorriso tímido e o desafio que lhe lançaram nessa relação de emoções exacerbadas. Na realidade, ao ver os pés de Conceição, recordou uma mensagem que recebeu quando ainda não tinha completado treze anos.
O circo havia chegado em Codó, adultos e crianças se encantaram com as tendas coloridas, palhaços, animais adestrados, a mulher barbada, os trapezistas e os molequotes em pernas de pau. No canto esquerdo do campo, onde foi armado o picadeiro, ficava uma barraca carmim e amarela de cores esmaecidas. Na entrada um cartaz, que poucos conseguiam ler, anunciava Dinorá, uma cartomante e vidente. Havia fila para falar com a cigana de olhos verdes, lábios pintados e dedos cheios de anéis.
Curioso, Firmino criança, despistou a mãe e se meteu por baixo das lonas esgarçadas e remendadas da tenda de Dinorá. Se escondeu ao lado de um baú centenário, onde a mulher guardava seus vestidos coloridos e esvoaçantes, que recendiam a perfume doce, incenso e misticismo. Durante toda a noite o rapazote observou o fluxo de pessoas que consultavam a vidente. De seu esconderijo admirou os cabelos negros, grossos, lisos, longos e trançados, que brilhavam com a luz bruxuleante da vela aromática de sândalo que ardia sobre a mesa. A cartomante manuseava habilmente as velhas cartas ensebadas, que revelavam o futuro do interlocutor.
Cansado e com fome, Firmino fez menção de sair pelo mesmo local que entrou. A voz feminina, cortante e com sotaque indefinido lhe impediu. Ele tremeu diante do olhar agateado, delineado com henna e marcado por linhas de expressão.
Dinorá avaliou o intruso e sorriu.
A vidente avançou com passos dançantes, divertindo-se com a imobilidade do rapaz e o cheiro de medo e desejo que ele transpirava. Tomou a palma direita entre as suas. Com a unha longa e pintada de vermelho percorreu vagarosamente as linhas da vida e destino, delineadas na mão escura e marcada pelo trabalho nos campos. Dinorá olhou para o menino, anunciando o que via: Tua beleza é uma dádiva, mas também uma maldição. Terás muitos amores, porém, aquela que te fará amar e sangrar traz uma marca ao pisar. Tua vida será longa, próspera e cheia de percalços. Não te descuides.
O passar dos anos fizeram com que esquecesse da profecia. Todavia, a voz da cigana soprou em seus ouvidos quando viu a membrana que unia os dedos da moça que tinha lhe fascinado. Foi tomado por uma comichão de reconhecimento, não é todo dia que o destino te encontra desprevenido.
Por seu lado, Conceição, ficou fascinada pelo interesse que Firmino demonstrava no que ela falava. Na contramão do dito desde a infância, 'Não fale muito, não fite um homem nos olhos, vista-se com modéstia, mantenha a voz baixa', o rapaz bebia suas palavras, demonstrando curiosidade sincera pela narrativa sobre a vida no orfanato, a ausência de vínculos familiares, o desejo de ser freira e a sede por conhecimento.
Firmino sorria satisfeito diante da tagarelice dela, tão diferente da postura acuada que havia demonstrado antes. Ele era uma pessoa de gostos simples e conhecimentos práticos. Porém, ao contrário de outros homens, incluindo o próprio pai, via a educação como algo precioso. Ter uma mulher quase-professora, não seria motivo de vergonha ou medo, mas de orgulho.
O moço de bigode vistoso e sorriso matreiro, nunca sentou em um banco de escola. Todavia, sabia o tempo certo de plantar e colher o algodão, como acabar com as pragas que tomam as plantações, a hora da floração dos tomateiros, o adubo correto para cada tipo de planta, a melhor época para plantio das hortaliças, o sinal de que uma tempestade se aproxima e, principalmente, segundo o próprio, como levar qualquer mulher ao ápice do prazer.
Firmino interrompeu as carícias. Fitando Conceição nos olhos, sentou-a na areia. Apalpou os próprios bolsos até encontrar o que buscava. Retirou um par de alianças de latão, que reluziram com a claridade do dia. A moça tampou o rosto emocionada, sufocando o grito quando viu que ele se ajoelhava de forma piegas.
─ Maria da Conceição, tu aceita casar comigo?
O grito das gaivotas e marulho das ondas acolheram o sim sorridente. O aro de metal barato foi colocado no dedo anelar esquerdo. De mãos dadas entraram nas águas, fizeram seus votos e consumaram o casamento tendo o mar como testemunha.
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