VIII - Terreiro de Tambor de Mina


29 de junho de 1917, São Luís do Maranhão.

Conceição esforça-se para acompanhar o passo de Esmeralda. Suas alpercatas de couro fazem shlap, shlap sobre a rua estreita de terra molhada. A lua cheia ilumina o caminho, fazendo com que as casas de madeira projetem suas sombras sobre as adolescentes. Conceição leva nos braços a barra da saia de algodão, emprestada pela amiga da Escola Normal, para que não arrastem no chorume do lixo acumulado.

— Falta muito? — Conceição questiona a moça de cabelos crespos, que a sua frente desvia das poças de lama.

— Já tamo chegando! — Esmeralda responde, quase arrependida por ter aceitado trazê-la para a festa das Fogueiras de Xangô.

— Aí, Irmã Lúcia vai arrancar meu couro... — Conceição lamenta pela quinta vez.

A coragem que sentiu quando saiu escondida da quermesse de São Pedro, evaporou.

— Ceiça, para de coisa. Teu castigo vai ser o mesmo se sumir por uma hora ou a noite todinha. E foi tu que pediu pra vir!

A moça de cabelos lisos assente, concordando parcialmente com a lógica da amiga. Porém, isso não impede que seu peito fique comprimido pelo medo. Foram mais de dezesseis anos sendo absolutamente obediente a todas as figuras de autoridade.

— Você vai gostar. Ah, e não te preocupa, hoje a polícia deixa nós em paz. Eles estão ocupados no centro da cidade...

Uma casa de tábuas, pintada de branco, destaca-se entre as outras.

— Chegamos!

Passam pelas portas venezianas, que se abrem para fora. A madeira envernizada dos batentes e janelas conferem certa imponência à construção, que foi feita pelas hábeis mãos de marceneiro de Seu Birosquinha, pai de Esmeralda.

O ar está tomado pela fumaça do defumador, um pequeno vaso de barro em que estão sendo queimadas alfavaca, alecrim, arruda, alfazema, guiné, incenso, mirra e benjoim. O vapor odorífico sobe, misturando-se ao cheiro de madeira queimando e cera derretida. Estatuetas, flores recém-colhidas e velas coloridas ornam o local. As cores predominantes são vermelho e branco, presentes nas fitas que descem do telhado de caibros, nas roupas e nas velas e enfeites dos altares.

Do lado de fora há dezenas de pessoas, as peles escuras reluzem com o brilho das chamas da fogueira que crepita no meio do terreno limpo. Os raios da lua passam entre as folhas do pé de tamarindo e cajueiro. Bandeirolas carmesins estão amarradas nos galhos altos.

As mulheres usam longas e rodopiantes saias de algodão cru enfeitadas com fita e sianinha e blusas esvoaçantes de babados; sobre o colo abundante descansam diversos colares de contas. Os homens vestem-se com calça e blusa branca e adereços em tom vermelho. Todos trazem a cabeça coberta.

Esmeralda passeia entre os grupos apresentando a amiga. A cada três passos Conceição é envolvida por um caloroso abraço com cheiro de alfazema e aconchego. Esse afeto espontâneo desperta saudades de algo desconhecido, como um anseio por aquilo que poderia ter tido, mas que nunca experimentou: Colo de mãe. À medida que o tempo passou, os mantos consoladores, ofertados por Irmã Tereza, esgarçaram-se, deixando-a novamente à mercê do frio da solidão e culpa.

Conceição concluiu que a mãe morreu por sua causa e descobriu que a pessoa que carregava um sinal divino foi Caim, o fratricida, logo, a Irmã estava errada. Seus pés não simbolizavam que era especial e sim uma pária.

Não ousava compartilhar com ninguém suas conclusões, nem mesmo com Tereza, que era o mais próximo de uma figura materna que possuía. Ainda no fim da infância foi aos poucos se resignando a ideia de juntar-se a alguma irmandade religiosa. O celibato não seria um problema, afinal quem iria querer uma aberração como eu? Foi estimulada pelas freiras a concluir os estudos e depois realmente refletir sobre sua vocação.

Há três dias, durante uma aula, o professor falava sobre a oposição entre razão e fé. A futura noviça meditava sobre cada palavra, concluindo que fazia muito sentido. Vinha observando que cada vez mais distanciava-se de um pensamento místico, preferindo explicações racionais para fenômenos naturais.

As palavras rituais não faziam mais sentido em sua boca; as histórias bíblicas não lhe comoviam; durante as leituras oscilava entre a indignação ou vontade de sorrir, refletindo sobre os absurdos das situações.

Esmeralda, de alguma forma, intuiu o que ia no coração de sua amiga e provocou Conceição com uma frase que ficou ressoando por dias: Não é porque não acreditas mais no Deus dos cristãos que significa que não acreditas em nada. Talvez tua fé esteja em outro lugar. E foi esse questionamento que fez a jovem pedir para participar de uma festa do Tambor de Mina.

De volta ao Salão de Mãe Selma, naquela noite dedicada a Xangô, Conceição viu Esmeralda sendo abraçada por trás por um rapaz alto.

— Prima! — O desconhecido lança um beijo estalado na bochecha farta da moça.

— Bonito?! Estás homem feito. — Ela assusta-se e retribui o abraço, há três anos não se viam.

Conceição observa estática o moço de pele retinta, olhos grandes e vorazes, nariz largo e um bigode fino que sobrepõe os lábios grossos e arroxeados.

— Agora pare de me bulinar, que não sou tuas quengas! — Esmeralda retruca brincando e desvencilha-se dele.

O rapaz acende um cigarrinho de palha que exala um cheiro peculiar e adocicado. Conceição tosse, chamando sem querer a atenção do rapaz para si, que ainda não havia se dado conta de que a prima tinha companhia.

— Firmino, a seu dispor. — Sorri como um gato maracajá, ao notar o rubor na pele sépia, amarelada pela ausência de sol.

Conceição sequer consegue gaguejar uma resposta, inebriada pela presença marcante dele.

— Bonito, essa é Ceiça! Mas não se engrace, que ela vai ser freira. — Esmeralda dá um tapa leve no ombro do primo, percebendo os olhos que estão avermelhados, brilharem com a nova informação. — E apaga esse cigarro, se não a mãe vai te dar bronca.

— Eita, mas tu continua mandona.

Firmino obedece a prima e volta-se para Conceição. Aproxima-se dela e estende a mão calosa em direção ao rosto magro e assustado

— Ajeita o turbante, freirinha! — Recoloca os fios finos que escorreram para fora do tecido de algodão. — É para tua proteção — Seus olhos percorrem o corpo dela, detendo-se alguns instantes no Tao em seu pescoço.

— Ô Firmino, vem cá! — A voz potente de Seu Birosquinha sobrepõe-se as outras.

Conceição permanece parada, sentindo que o rapaz que se afasta leva consigo todo o brilho e mistério da noite.

— Ceiça, não te mete com Firmino. Ele é meu primo, mas não vou mentir, ele não vale nada.

A mãe de Esmeralda, responsável pelo local, convoca todos para início do rito, fazendo com que retornem para a parte interna.

Dentro do salão as pessoas da casa posicionam-se em círculo. Conceição, como convidada, fica afastada do grupo, apenas observando.

— Eu vou baiar. Tu fica aqui e lembra que não pode sair antes de acabar. — Esmeralda diz para a amiga, afastando-se em seguida com uma apreensão incomum.

Conceição senta-se em um canto. Vez ou outra o vento traz o cheiro da comida ritual que foi preparada durante o dia, provocando um ronco de fome no estômago dela. Mãe Selma passeia pelo salão defumando as pessoas e cantando: Defuma com as ervas da Jurema, defuma com arruda e Guiné, benjoim, alecrim e alfazema, vamos defumar filhos de fé.

A fumaça mística paira no ar, envolvendo todos os presentes. Em seguida, inicia-se uma ladainha cristã, as vozes respondem em uníssono. A Mãe de Santo puxa o ponto.

Eiê, eiê, eiê, aiô, eiê.

Dizem que Xangô Kaô mora na pedreira, mas não é lá sua morada verdadeira. Os tambores ecoam juntamente com os triângulos, palmas e chocalhos. Xangô Kaô mora numa cidade luz, onde mora a Virgem Santa, Mãe do Menino Jesus.

Conceição não consegue entender todas as palavras; mesmo sentada, seu corpo balança no ritmo da música. As pessoas cantam e rodopiam; o fogo crepita; a fumaça sobe. Os pés descalços produzem som oco sobre o chão de terra batida, que foi molhado antes para evitar que a poeira suba. Os braços e pernas movem-se de forma ritmada e livre, as saias sobem e descem ao som do batuque.

Conceição localiza Firmino entre os brincantes. Ele rodopia e ginga, os músculos se contraem, a cabeça gira, o tronco movimenta-se para frente, para trás, os quadris requebram. Ele capta o olhar da moça sobre si, intensificando a dança como se fizesse um espetáculo para ela.

O rapaz deixa o círculo e estende a mão levantando-a do banquinho de madeira. A cacofonia de sons, cheiros, luzes e emoções atordoam-na. Firmino percorre com o dedo os contornos do rosto da moça, embevecido pelas sensações que claramente provoca.

Conceição move-se timidamente, ainda presa pelo encanto daquele sorriso cheio de promessas. Ele afasta-se dela, instigando um rodopio. A moça roda uma, duas, três vezes, entregando-se à música e sentindo o vórtice de energia que desprende a cada giro. A saia levanta, revelando os pés deformados, cobertos por barro.

Nesse momento ela para incerta, oscilando entre a vergonha e medo.

Os olhos de Firmino estão fixos na barra do tecido. Ao invés da temida e esperada expressão de repulsa, Conceição surpreende-se ao perceber que o sorriso alargou-se, não como escárnio, mas como se o jovem encontrasse algo que há tempos buscava. Ele aproxima-se ainda mais, envolvendo a moça com seu cheiro de tabaco, ervas e virilidade.

Firmino estende as mãos, tocando os ombros nus de Conceição. Tateia pelo pescoço molhado de suor, provocando calafrios na jovem e uma ânsia de entregar-se ali mesmo. Os dedos hábeis seguram a corda da cruz capuchinha, buscando retirá-la. Conceição dá-se conta das suas intenções e afasta-o gentilmente, negando com a cabeça. Essa peça é a única recordação que tem da mãe.

Ele aceita a reprimenda e desce as mãos para a cintura fina da moça, incentivando que volte a dançar. Estimulada, ela rodopia, uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Na sexta rodada Conceição sente a cabeça girar, o corpo bambeia e o sangue desce profuso entre suas pernas.

Antes de desmaiar ouve a voz distante de Esmeralda:

— O que tu fez Firmino? O que tu fez?

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