VII - Fábrica de Tecidos
Após horas recusando-se a sair, Maria da Piedade veio ao mundo de forma silenciosa.
Sobre a pilha de panos empapados de vermelho, jaz o corpo de Conceição. O ar está tomado pelo odor férrico e salino de sangue e líquido amniótico.
Meroca continua cantando. Com mãos hábeis e experientes massageia o peito diminuto da recém-nascida, que apresenta coloração cianótica. Aproxima a boca desdentada, que cheira a tabaco e hortelã, do nariz da criança. Aspira o resto de parto que entupia as vias áreas, cuspindo no chão a mistura.
A pequena arfa alto; o ar invade queimando suas narinas, levando o sopro de vida para os pulmões imaturos. Seu choro inicia baixo, quase como um lamento, provocando arrepios nas duas mulheres.
— M-mi-nha Filha!? — Conceição geme, semi-desperta, O vazio no útero é como um vazio em seu coração.
A parturiente busca sentar-se, mas Nazaré, que está ao seu lado, pede para que permaneça deitada, libertando o seio da blusa áspera. Meroca coloca a criança sobre a mãe; que por instinto abocanha o mamilo, sugando vorazmente a seiva sagrada.
— Ela tem ganas de viver — a idosa comenta satisfeita, temeu que naquela tarde perderiam mãe e filha.
As contrações recomeçam.
— Faz força longa Ceiça. Tem que sair tudo! — Nazaré instiga.
Algum tempo depois, a placenta é expulsa do corpo de Conceição, finalizando o trabalho de parto. O invólucro de pele, carne, sangue e veias, que por meses protegeu e alimentou a criança no ventre, para de pulsar. A parteira corta o cordão umbilical, usando sua afiada tesoura de aço com cabo de madeira, que a acompanha por mais de vinte anos na profissão.
Em uma padiola improvisada com rede transportam mãe e filha para casa. Teinha recebe as duas, coloca nas mãos de Conceição uma tigela de barro, cheia de canjica, um mingau doce e pastoso feito à base de milho ralado.
— É pra ajudar o leite a descer — a sogra explica, enquanto toma a neta dos braços da mãe e embala-a com felicidade.
Conceição sorve a papa, alheia ao sabor intenso do leite de coco babaçu. O alimento tem gosto de ressentimento, deixado pela falta da filha.
— Ela tem seus cabelos Ceiça — Teinha refere-se ao chumaço de fios pretos e lisos grudados na cabeça — Mas a fuça é do pai — Aperta levemente as abas do nariz da recém-nascida.
— Ô de casa — A voz arrastada de Seu Fubá chega pelo lado de fora.
— Passa homem, vem ver como tua neta é linda — Teinha grita.
Firmino interrompe o trabalho que está fazendo de entrelaçar sementes de olho de boi e de açaí entre os fios de algodão.
— Bença, pai — Saúda o idoso franzino e encurvado que adentra a casa.
— Deus lhe abençoe meu filho, o que tu tá fazendo?
— Minha guia quebrou na plantação, tô fazendo uma nova para consagrar hoje.
— Desconjuro — Teinha se benze — Eu disse que tinham feito trab... — Firmino acena negativamente para que sua mãe pare de falar. Conceição não sabe sobre as negociatas espirituais que foram feitas no nascimento da filha e não quer deixá-la preocupada.
A senhora faz um muxoxo de irritação, voltando-se novamente a neta.
— Ela não é linda Fubá? Acho que deve de se chamar Bárbara.
Conceição se empertiga na rede.
— O nome dela é Maria da Piedade! — A recém-parida sibila.
Todos os olhares voltam-se para a mulher, como se estivessem ouvindo sua voz pela primeira vez.
— Ceiça, eu fiz promessa de entregar a menina para Santa Bárbara se ela nascesse bem...— Teinha esclarece, enquanto embala a neta com seus braços fortes.
— Mas a mãe sou eu, e não fiz promessa nenhuma!
A avó busca com os olhos o apoio de seu filho. Firmino, constrangido, desvia a vista.
— Mãe, a gente já tinha escolhido o nome... — ele contesta de forma quase inaudível.
— Ela tem cara de Bárbara, não tem Fubá? — Teinha volta-se para o esposo, sua face deixa evidente que não aceita uma negativa.
— Mulher, tu escolheu o nome dos teus filhos. — O patriarca da família assume a postura conciliatória — Deixa a Ceiça escolher o nome da filha dela.
Conceição relaxa na rede, percebendo que dessa vez foi apoiada. A criança grunhe e a sogra contrariada devolve-a para a mãe.
— Lembra de usar a umbigueira na menina e nada de comer alho pra não dar espremedeira, mais tarde trago caldo pra ti, nada de comer comida seca! — a mulher mais velha recomenda, antes de se retirar.
Na casa de taipa impera o silêncio, o cheiro do barro molhado exala pelo local. Firmino finaliza a guia de sementes que estava fazendo, acende o lampião à base de querosene e passa a trocar de roupa.
— Ceiça, mas o que custa chamar de Bárbara?
— O nome dela é Piedade!
— Hum, tu faz caso por pouca coisa. Sabe como a mãe é, vai ficar aperreando a gente até cansar... que tal Bárbara Maria da Piedade?
Os olhos da recém-parida se enchem de lágrimas, está exausta de todas as formas; nem concorda, nem discorda, em seu íntimo sabe que a sogra vencerá.
— Tu vai pra Festa de Santa Barbará? — indaga cansada; sabe que apesar de tudo Firmino nunca foi apenas seu.
— Não posso deixar de ir...
Ele abaixa-se na rede e acaricia o rosto marcado por olheiras arroxeadas.
— Tua filha acabou de nascer — a mulher suplica, sentindo-se abandonada de muitas formas.
— Ceiça, tu sabia quem eu era antes de casar. Tenho obrigações à cumprir. — Repreende-a sem irritação — Volto logo, prometo.
— Mas toma cuidado, da última vez a polícia quase pegou vocês.
— Vou tomar...
Conceição retribui o beijo que Firmino deposita em seus lábios, sem saber que voltará a vê-lo somente dali a quatro dias.
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