IV - Irmandade da Santa Casa de Misericórdia do Maranhão


São Luís do Maranhão, 08 de dezembro de1901

Tereza senta na cama estofada com palha. Seu quarto na casa da irmandade é simples como deve ser: uma cama de solteira, uma mesa de cabeceira e um guarda-roupa, todos de madeira. O chão e as paredes são de pedra e a luz entra pela única janela do aposento. Acabou de tomar um banho vigoroso, em que buscou tirar com água e sabão a tristeza de mais uma perda. Não sabe bem o motivo de ter lamentado tanto a morte da menina-mãe, pois não é a primeira nem a trigésima vez em que alguém falece aos seus cuidados. Talvez tenha sido a fragilidade daquele corpo em inanição, oposta à determinação dos olhos pretos.

Lembra vagamente de que Hulda comentou que após o nascimento os Canelas não permitem que ninguém veja a criança, pois isso pode atrair espíritos ruins sobre o bebê. Presume que esse foi o motivo de Do Carmo ter se evadido do leito e escondido no depósito. Mais uma vez repete o mantra de aceitar o que não pode ser mudado. A pequena órfã, foi enrolada em um pano de algodão, junto do Tao que a menina-mãe carregava e entregue aos cuidados das irmãs do orfanato.

Toda a situação fez com que se rompesse uma represa de sentimentos que Tereza havia cuidadosamente guardado nos últimos meses. Procura no guarda-roupa, entre os hábitos brancos, a caixinha de madeira talhada à mão, em que guarda as cartas que recebeu de Hulda, uma missionária franciscana nascida em Portugal, que se juntou à comitiva das Capuchinhas de Gênova, que receberam a missão de assumir o internato feminino da Colônia de Alto Alegre.

A religiosa retira a primeira missiva, as duas páginas de papel amarelado estão dobradas em três partes e escritas com caligrafia caprichada.

11 de janeiro de 1900 - Missão Alto-Alegre, Maranhão.

Cara irmã Tereza,

Permita que lhe escreva, pois fostes uma das poucas amizades que cultivei desde que cheguei ao Brasil. Espero que esta carta te encontre bem e saudável, como estavas quando nos despedimos. Anseio por falar português claro, pois parece que aqui ninguém me entende e o contrário é verdadeiro. As irmãs falam italiano e apenas arranham o português, os freis Lombardis estão há mais tempo no país, então consigo compreendê-los melhor, mas pouco assunto temos. De toda forma, por vezes sinto-me solitária e decidi escrever-te. Sei que és muito ocupada em tua missão na Santa Casa, mas se puderes e quiseres responda-me.

Ainda estou adaptando-me ao clima tropical do vosso novo mundo. É tão lindo ver esta terra fértil, de floresta vasta e inexplorada. Em alguns momentos acredito que estamos no próprio Éden, antes que o fruto do conhecimento do bem e do mal fosse mordido. Os Nativos acostumados a andar em inocente nudez escandalizam minhas irmãs e os frades, que teimam em vesti-los. Mas confesso-te que este calor faz-me querer juntar-me a eles e sair correndo sem roupa pela mata verde.

Irmã, sabes que brinco, peço-te que não me denuncies por heresia.

Esses meses de missão têm sido difícil, o calor, mosquitos, medo dos animais peçonhentos e o barulho da mata que nunca para, quase me impedem de dormir. Soma-se a isso um temor absurdo de que um conflito se instale nesse pequeno pedaço de paraíso. Dizem-me que vejo sinais onde não há nada. Mas tal qual os sinais relatados no Apocalipse sinto que, como dizem os brasileiros, estamos a mexer em um vespeiro. Talvez estejas te perguntando do que falo e te esclarecerei: Se compreendi corretamente os Canelas e os Guajajaras são desafetos históricos, com línguas e costumes diferentes e seus filhos foram reunidos no internato como se isso não importasse. Porém, hora ou outra as crianças confrontam-se, assim como seus pais. O mesmo acontece com as mocinhas cristãs que residiam em Barra do Corda, Grajaú e na própria colônia que se construiu cá em Alto Alegre.

Fr. Carlos defende que enquanto as crianças indígenas viverem com seus pais polígamos não aprenderão bons princípios cristãos, por isso devem ser apartados de suas famílias para viver de acordo com os ensinamentos da Santa Igreja. Por isso, a relação com as famílias das internas não é boa, uma das irmãs quase foi flechada enquanto fazia uma visita missionária e sempre que alguém vem à missão há tensão no ar. Exceto às filhas dos colonos, ninguém parece feliz por estar aqui. Ademais, tem se espalhado rumores de que as crianças são arrancadas à força dos braços de suas mães e trazidas para o internato e circulam boatos de que queremos escravizar os nativos. Quando chegamos em alguma comunidade eles saem em debandada, correndo e gritando, levando seus filhos nas costas e ocultando-se nas matas, como se fôssemos o mal encarnado. É bem verdade que, apesar da proibição do governo, aqui aplicam-se severos castigos físicos, o que não melhora nossa popularidade com eles, todavia, bem sabes que não queremos escravizá-los, mas salvar suas almas. A questão é: Eles querem ser salvos? Confesso-te que me parece que estamos preparando um caldo que a qualquer momento pode entornar.

Porém, minha estadia não tem sido marcada apenas por dificuldades. Pois estas moças inocentes seguem arrancando-me risadas. Dias desses, uma indiazinha de uns nove anos, que batizamos de Maria do Carmo perguntou-me durante o catecismo porque a mulher adúltera seria apedrejada. Tentei explicar-lhe o que é o adultério, mas tendo em vista que sua cultura é polígama, a pequena não conseguiu entender o conceito. Contou-me que ela própria tem três më hum nõ, isto é, outros-pais, que são homens com quem sua mãe deitou-se enquanto estava grávida dela. Suponho que estejas escandalizada, como eu fiquei. Perguntei-lhe que promiscuidade era essa e contou-me que entre os Canela a mulher escolhe seu marido, com quem perde a virgindade, depois deita-se livremente com outros homens, exceto seus parentes. E tem mais, os ditos outros-pais devem ser guerreiros fortes e vigorosos, pois eles creem que a essência que a mulher receberá de cada um desses homens durante a cópula irá ajudar a formar o corpo da criança. Por isso, elas não escolhem qualquer parceiro, tem que ser alguém que após o nascimento guardará a dieta sagrada dos Ramkokamekrá. E eles são bem rígidos nesse quesito, tem uma série de restrições alimentares durante e depois do nascimento da criança. Os Guajajara também são polígamos, os homens tem duas ou mais esposas. Maria de Lourdes, outra criança Guajajara perguntou-me porque os padres dizem que não se pode ter mais de uma mulher, se Abraão teve duas esposas e Salomão setecentas. Contive o sorriso, pois ela estava certa, mais expliquei que era assim no tempo da Bíblia, mas que hoje mudou e que é preciso ler a sagrada escritura considerando o tempo em que ela foi escrita.

Pergunto-te, como é possível evangelizar um povo que possui tais práticas e crenças? A quem ofende essa liberdade? Talvez Fr. Carlos esteja correto e eu que sou parva, por acreditar que as pessoas devem aproximar-se de Cristo pelo amor, não pela dor.

Alonguei-me mais que o esperado, encerro esta missiva, com votos de saúde e peço-te que não mostres para ninguém.

Que o senhor te abençoe e te guarde,

Com estima, tua irmã em Cristo,

Ir. Hulda Carvalho.

As lágrimas embaçam sua visão ao terminar de ler a carta. Hulda estava certa, o caldo não apenas transbordou, mas queimou todos nesse processo. Devolve a caixa de lembranças para o local e entrega-se aos sonhos terríveis em que é estripada, enquanto suplica por perdão.

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Observação: Historicamente a missão foi assumida pelas Capuchinhas de Gênova, que eram italianas; Irmã Hulda, portuguesa, não é uma personagem histórica e como licença poética foi inserida na trama como integrante do grupo de religiosas. 

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Essa é uma foto encontrada na internet, no blog Turma da Barra, que é uma das cidades fronteiriças da Missão de Alto Alegre.

https://www.turmadabarra.com/histo2.htm



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