III - Macapá - Território Federal do Amapá


Macapá - Território Federal do Amapá, 02 de dezembro de 1945.

Conceição segue o fluxo da fila, não sente a dor nos pés e mantém a postura altiva adquirida nos últimos anos. Graça caminha ao seu lado. Com seus grandes olhos castanhos, curiosos e atrevidos, a criança observa a mãe, que, como os demais, vestiu sua melhor roupa para a ocasião: uma blusa azul engomada, de gola e mangas com babados; saia social marrom; cabelos gris presos em um coque alto e sandália de couro, que revela os dedos deformados. Soldados armados transitam como vultos entre as pessoas e movimentam-se nas guaritas distantes.

A testa alta da menina se franze quando busca ler a placa que está na parede do quartel: Território Federal do Amapá. Graça compensa a dificuldade de enxergar coisas distantes, com a habilidade de ouvir de longe, distinguir cheiros e falar como uma arara baleada. Com seu nariz pequeno, redondo e achatado aspira os odores que se mesclam no galpão abarrotado de gente. Suor, tabaco, terra molhada, lixo úmido, medo. Com uma fungada profunda, ela percebe algo diferente, um perfume adocicado, complexo e primitivo que emana da mãe e da maioria das mulheres ao redor. Não consegue nomear a sensação, mas sente em seu âmago que é algo que se assemelha a esperança.

As dezenas de vozes, em sua maioria masculinas, se misturam, formando um tititi abafado, que persiste mesmo com os pedidos por silêncio dos homens uniformizados. Graça cata fiapos de conversa, colando as histórias, dando vida e rosto para elas em sua mente criativa e infantil. "A guerra acabou!"; "Tu viu a história da bomba?"; "Eles bem que mereceram."; "Quem merece morrer? Para de falar besteira."; "Eu tava lá quando os submarinos alemães foram derribados". "Para de conversa de pescador"; "Eu tava sim, vi os caça e tudo!". "Agora nós é capital, as coisas vão melhorar".

A atenção de Graça é chamada por um movimento involuntário de Conceição, que passa as costas das mãos engelhadas nos olhos marcados por rugas finas. A menina tem a impressão de divisar um brilho molhado entre as pestanas longas.

— Mainha, a senhora tá chorando? — Acostumada aos lábios crispados e semblante julgador, não compreende àquelas lágrimas.

— Larga de ser besta menina. Tu acha que tamanha velha, igual eu, vai chorar por besteira? Isso é só essa maldita poeira. — Desvia a vista da neta/filha.

Graça se cala. A voz intransigente de Conceição ressoa em sua cabeça: "Sou tua mãe! Tu me respeita! Criança não se mete em conversa de adulto. Criança não responde adulto".

Conceição fechou o coração como uma caixa de pandora. O ressentimento, amargor e raiva ficaram soltos, enquanto o carinho, aconchego e palavras doces permaneceram aprisionados por correntes de culpa e medo. Graça nunca recebeu daquela que julgava ser sua mãe, o que Piedade teve. Não por não ser amada. Conceição amava-a de forma visceral, mas temia perdê-la como perdeu todos que amou. Para protegê-la da maldição de seu afeto, negava-lhe isso. Não acreditava em nada, mas, por via das dúvidas, esperava que seus algozes invisíveis fossem tapeados pela sua vontade e poupassem a vida da criança.

— Próximo! — A voz grave do soldado se sobrepõe ao vozerio das pessoas.

Conceição avança empertigada, possui um leve repuxo no caminhar. Ostenta como medalhas de honra o peso dos anos, o rosto vincado, as veias saltadas nas pernas e as manchas na pele. Não ignora os olhares curiosos e maldosos de quem estranha sua presença na fila. Confiante estende o documento fabricado em papel pardo, para o homem fardado que está sentado atrás da mesa de madeira.

— Maria da Conceição Silva? — Ele questiona sem levantar os olhos da prancheta.

— Huhum — Concorda com um nó na garganta.

— A senhora é Maria da Conceição Silva? — Ele a encara.

A mulher sustenta a mirada, perscrutando a alma do indivíduo, perguntando-se quanto sangue havia sido lavado daquela farda.

— Sim, senhor. — Não baixa o queixo ou o tom de voz.

O homem suspira exasperado. Caboca de merda!

— Assina aqui e pode ir lá.

Com caligrafia caprichada ela escreve seu nome no lugar indicado. Deixa Graça para trás e caminha em direção a sala, guardada por outros soldados. Diminui o passo, saboreia o momento como quem se delicia com o primeiro ou último pedaço de bolo. O homem que estava à sua frente deixa o recinto, um sorriso de orelha a orelha se abre no rosto curtido de sol do agricultor.

Conceição avança como uma noiva emocionada. Tateia entre os seios e retira a cédula eleitoral onde está impresso o nome de Yedo Fiúza. Sente entre os dedos o peso de centenas de mãos femininas que não poderão expressar sua vontade. Insere o papel, depositando seu voto para o candidato à presidência do Partido Comunista do Brasil. Bom mesmo é se fosse uma mulher, mas aí já é querer demais. A sós, permite que as lágrimas de alegria desçam.

Do lado de fora acaricia os cabelos revoltos de Graça. Quando ela for grande, isso vai ser tão normal quanto respirar. Deixa o ambiente militar, dirigindo-se ao barracão de apoio do PSD. Ela e os demais aguardarão até o fim da tarde pelo transporte que os levará de volta para suas casas nos vilarejos.

— Viva o General Eurico Dutra! — Um dos líderes locais convoca o grito do candidato apoiado por Vargas.

— Vivaaa!

O clima tenso foi pouco a pouco cedendo lugar ao espírito brasileiro, de quem dança sob brasas e acredita em dias melhores, mesmo quando não há nenhum indício de que isso vai acontecer. As batidas de dominós, cantorias e risos tomavam o espaço, celebravam a frágil e breve democracia. O resultado das urnas pouco importava, o simples fato de poderem votar diretamente pela primeira vez em quinze anos, já era considerado uma vitória.

— Votou? — A voz grave e carinhosa de Mundico Maneta chama sua atenção.

Conceição acena positivamente, ignorando os olhos pidões de seu pretendente. Mundico tem 47 anos, os cabelos grisalhos contrastam com a tez escura, rugas leves nos cantos dos olhos e na testa alta revelam parcialmente sua idade, a barriga saliente enfatiza sua confortável situação financeira, ao menos se comparada aos seus conterrâneos paupérrimos.

Mundico trabalhou mais de dez anos no garimpo de diamante na Serra do Tepequém, localizado no Território Federal do Rio Branco, que posteriormente se tornaria o estado de Roraima. Nesse período teve malária, febre amarela e barriga d'agua. Viu morrer seu sonho de riqueza quando perdeu a mão em uma explosão de dinamite.

— Quem tu acha que ganha? — Busca puxar conversa com a dona de seu coração.

— Oxi, General Dutra, com a máquina, o exército e o povo nas mãos, não tem como ser diferente! — Conceição retruca.

— Mas Ceiça, ele é o melhor pro país! — Mundico sorri apaziguador. De todos os defeitos de Conceição, a língua afiada é o seu favorito.

— Se tu tá dizendo...

— Assim como o melhor para o meu coração é tu! — O homem arremata, arrancando uma sincera gargalhada de Conceição que faz seu coração aquecer.

— Eita, Mundico, tu não te emenda mesmo! Já enterrei um marido, uma filha, uma amiga. Que diabo que eu vou querer com mais um véi?

— Ceiça, faço de ti minha rainha, tu nunca mais vai precisar trabalhar!

— Nem de monarquia eu gosto... E, para teu conhecimento, eu gosto de trabalhar!

— Não foi isso que quis dizer, sei que tu é mulher trabalhadeira. Gosto disso. Mas não tá cansada de ser professora?

— Eu não. Tô cansada de ser pobre e ver gente pobre morrendo. Mas de ser professora não.

— Fala baixo, mulher! — Olha ao redor apreensivo. Ainda é cedo para verbalizar esses pensamentos.

Conceição se encolhe. Precisa ser prudente se pretende proteger a neta. Busca-a com os olhos entre as outras crianças.

— Olha. Eu pago colégio pra menina Graça.

— Não se aperreie não, que da minha filha cuido eu.

Graça está correndo entre as mangueiras, com as outras crianças. Ninguém parece se atinar para a deformidade dos pés da criança. Que com sua luz natural, atrai as demais como uma líder nata. Conceição sorri com uma sensação de quase-felicidade. Pouco depois de levarem à cabo sua vingança, decidiu que Graça herdaria mais do que seus pés e os grilhões que as aprisionavam. Há sete anos deixou sua terra natal e partiu rumo a um local desconhecido, em que pudesse tecer com as mãos e língua um passado que anunciasse um futuro glorioso, ou pelo menos, um que a morte não espreitasse sobre seus ombros.

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