II - São Luís do Maranhão
São Luís do Maranhão - 08 de dezembro de 1937
Conceição tempera o feijão preto com alho, cebolinha, sal, chumbinho e rancor. Apolônia coloca o prato fumegante na frente de Zezito. O homem de cabelos grisalhos e pele manchada vira o vidro de pimenta sobre a comida e devora sem mastigar. O choro de Maria das Graças quebra o silêncio forçado que reinava na casa. Quando ele está presente, as crianças se mantêm escondidas e distantes, para não serem alvos de ira imotivada.
─ Alguém cala a boca dessa criatura! ─ Zezito vocifera.
Apolônia permanece em pé próximo a ele, pronta para lhe servir. Conceição caminha para o quarto, ultrapassa a cortina florida, toma a neta nos braços e enfia a mamadeira com bico de látex na boca desdentada. A bebê suga avidamente o mingau de macaxeira. Shi, Shi, Shi. Enquanto nina a menina, procura novamente alguma semelhança entre Graça e o indivíduo detestável que está no cômodo ao lado. Porém, a pequena é como uma cópia da falecida mãe.
Ao longo dos anos Conceição observou que sempre que o infame companheiro de Loló estava presente, o comportamento de Piedade se alterava. Ela se tornava mais calada e arredia e por mais de uma vez fugiu de casa sem rumo. Porém, não deu grande importância para esses sinais, pois os filhos dele agiam da mesma forma, esquivando-se sempre que possível do demônio com dentes de ouro.
Um a um os filhos de Apolônia foram partindo. José Filho, aos quinze anos, enveredou para o garimpo. Tonica, com treze, se amancebou com um quinquagenário. Frederica, com doze, se tornou mulher da vida. Epitáfio morreu de cólera. Restando na casa, além das duas mulheres, somente Piedade, com sua mentalidade de uma criança de oito anos, e a pequena Soledade de doze, que em breve seguiria o rumo de suas irmãs. Conceição passou a trabalhar com alfabetização e Apolônia trabalhava na mesma casa de família há dez anos.
Depois da última visita de Zezito, que se prolongou mais do que o esperado, Piedade entrou em um mutismo inabitual. Voltou a se assustar facilmente e por vezes acordava gritando, com olhos desfocados e baba se acumulando nos cantos da boca, regrediu na fala, comportamento e pensamento. Conceição não compreendia o que se passava com a filha, que parou de levantar da cama, se recusava a comer, vomitava sem parar e apresentou tom esverdeado na pele.
Loló aproveitou que sua amiga estava trabalhando, para chamar uma mãe de santo e avaliar a menina. Mãe Toinha chegou mascando fumo, a benzedeira apalpou o corpo de Piedade, olhou suas mãos, língua e olhos.
─ Ela tá prenha! ─ Concluiu de forma arrastada.
Apolônia gritou com as mãos cobrindo a boca.
─ Mas como? Nem homem ela vê.
─ Como eu não sei, mas ação do espírito santo não foi! ─ Toinha retrucou. Guarda para si a conclusão de que o desfecho da gravidez será a morte, da mãe, da filha ou de ambas. ─ Loló, essa menina é marcada. Não sei se consigo desfazer o trabalho...
─ Que trabalho? Quem faria trabalho contra a pobre da Piedade? A bichinha nunca fez mal para ninguém.
Toinha deu de ombros. Prescreveu banho morno, infusões e chás para aliviar o enjoo.
─ Ela tem que comer. Faz canja de galinha e dá caldinho na boca dela, não importa se ela não quer.
Foram as últimas palavras da mãe de santo antes de deixar a residência. No portão encontrou a mãe de Piedade, que chegou mais cedo do trabalho. O olhar das duas se cruzou. Conceição se armou, durante todos aqueles anos, manteve a filha longe de qualquer espiritualidade, cristã ou não. Um arrepio gelado percorreu a espinha de Toinha. Por um momento ouviu um galope e matraquear de dentes, acima da cacofonia uma voz grave ressoava "uma vida por uma vida". Em um gesto de proteção levou as mãos ao patoá.
─ Sinto muito! ─ Toinha balbuciou ao cruzar o caminho de Conceição.
─ Á-gua, á-gua! ─ Zezito implora, sentindo a garganta fechar e a bile subir.
Apolônia, solícita, entrega o caneco com líquido rosa e chumbinho dissolvido. O presente de aniversário de Conceição seria vingança.
─ Toma um pouco de Guaraná Jesus, já, já tu amelhora.
Passado o impacto inicial, não restou dúvidas de quem era o responsável pela situação de Piedade. Conceição e Apolônia, em acordo silencioso, decidiram que: se Zezito não seria punido pela lei dos homens, e sabiam que não seria, cabia a elas fazê-lo pagar por tudo que fez. Conceição queria estripar, esquartejar, tacar fogo, espalhar a cinza pelos chiqueiros, apagando sua medíocre existência da história. Porém, Loló ponderou que se fizessem isso seriam presas e as filhas ficariam desamparadas e suscetíveis às violências. Por isso, optaram pelo meio mais seguro e antigo: Envenenamento.
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