Episódio 8


No episódio anterior:

- Ivanir se submete às chantagens de Levitraz;

- Reencontro de Ludmárcia e Ivanir;

- Dudinha desperta e entra em coma novamente;

- Alcione bate o fusca fúcsia do Cabo 69.


Flori estava à beira de um ataque de nervos. O mundo ao seu redor parecia estar desmoronando: sua filha mãe-solteira, depois de ter testemunhado o espetáculo pavaroso de Dudinha estribuchando na cama, em convulsões espetaculares, estava correndo o risco de perder o bebê, de quem não se sabia quem era o pai, se um emo novamente em coma ou um dançarino de axé; sua amiga Ludmárcia entre a loucura e a morte, depois de ouvir a declaração tresloucada de Ivanir, declaração esta que levara o enfermeiro mártir para atrás das grades, onde estava até agora, fazendo companhia a Desirée, suspeito de matar o companheiro Paloma; o trailer fechado por falta de quem o tocasse, ou seja, prejuízo; e, como se não bastasse, ainda carregava em si a terrível suspeita de que sua própria mãe era a verdadeira assassina da trama. Resumindo, tudo era caos, choro e ranger de dentes. E até para Flori, que haiva sido uma lascada desde a infância, toda aquela desgraceira já estava passando um pouco dos limites!

Embora desejando fazer alguma coisa para minorar um pouco o sofrimento dos seus entes queridos, Flori, ao mesmo tempo, não tinha coragem de arredar pé das cabeceiras da filha, do quase genro (deixasse o eminho saber dessas pretensões, não saía nunca mais do coma), e, principalmente, da amiga.

As horas corriam céleres. E o tempo, como melhor de todos os remédios, foi assentando a poeira. Branca voltou a si e apenas não recebeu alta por precisar, recomendações médicas, de repouso absoluto. O quadro de Dudinha se estabilizou, permanecendo ele em coma, mas fora de perigo. Somente Ludmárcia é quem ainda inspirava cuidados, uma febre nervosa que não baixava nunca.

No terceiro dia depois da prisão de Ivanir, foi que a mocinha recobrou os sentidos e já foi logo dando um chilique para não perder o costume. Nem bem abriu os olhos, já disparou abrindo um berreiro sem precedentes.

– Ivanir, meu amor, não pode ser verdade! – Gritava e soluçava histérica. – Ele não pode ter feito aquilooo! Eu sou a culpada! Eu! Eu quero morreeer!

Flori, desesperada de surpresa com o súbito ataque histérico e apoplético da amiga, que nem um minuto antes apenas gemia febril e inconsciente, não sabia o que fazia: se gritava, se corria em volta da cama da doente, se a abanava, se a assoprava, se apertava o botãozinho de socorro, se implorava calma à doidinha, se arrancava os próprios cabelos. No auge do desespero, teve ganas de esbofetear a amiga. Lutou contra essa vontade com todas as suas forças, mas era humana, e naquela situação, aquela agonia medonha já chegando às raias da loucura, não teve jeito, pulou em cima da cama da doidinha, escanchada sobre a barriga desta, os joelhos servindo para prender os braços franzinos e descontrolados:

– Calma, amigaaa! – gritou pouco antes de acertar a primeira bofetada de uma série de muitas.

Enquanto apanhava, Ludmárcia gritava e pensava: Poxa, aqui se faz aqui se paga! A Maria Clara Diniz esbofeteou a cara da infeliz da Laura e passou a novela inteira sem que ninguém nem ao menos relasse um dedo nela. A pobre de mim, dei uns bofetinhos na cachorra da minha irmã, estou aqui apanhando mais que massa de pão.

– Arreeego! Eu peço arrego! Já me acalmeeei! Eu tava era brincando! – gritava a pobrezinha.

Ofegante, Flori, depois de perder a força no braço direito, rolou para um lado e deitou na cama junto com a amiga.

– Ai... Ufa! Dá um espacinho, amiga! Ui... Eu já não tenho idade para isso... Ufa!

– Ave Maria, amiga, avalio se tivesse! Bem que você podia ter pego menos pesado. – queixou-se Ludmárcia, massageando o próprio maxilar. – Não perdoa nem uma lascada com a boca torta perto da orelha.

– Ô, amiga, é que você estava descontrolada e eu não sabia o que fazer.

– Eu, descontrolada? Olha quem fala.

– E, amiga, que história é essa de boca torta? Desde as suas cirurgias, sua boca está tão linda, tão simétrica.

– Mentira que minha boca não está torta!

– Que torta! Não sei de onde você tirou isso, menina! Está perfeita sua boca. – Pigarreou sem jeito. – Um pouquinho inchada, um labiozinho partido, um dentezinho faltando, mas fora isso...

– Faltando um dente! Ai, meu Deus, meu pivô. Pode procurar, amiga, procura por aqui embaixo da cama.

Enquanto a outra, de quatro pelo chão, caçava o dente fujão, Lud raciocinava:

– Ora essa, então por que será que Ivanir evitou olhar para mim quando... – e de súbito a verdade lhe surgiu nítida, óbvia. – Claro! Ele estava mentindo! Teve medo de me olhar nos olhos, porque sabia que eu saberia. Como não percebi isso antes?

– Oi? – A cara de paisagem de Flori apareceu do lado da cama .

– Não foi Ivanir, amiga, quem matou Nondinha. Ele mentiu. Mentiu e fez isso por mim, para me inocentar.

– Ai que lindo! – Flori, à flor da pele, até se emocionou.

– Ele é inocente, Flori, inocente. E vai pagar por um crime que não cometeu. E tudo isso por minha causa. – Começou a se exaltar novamente. – Eu não posso permitir isso. Ele é inocente. Eu tenho que fazer alguma coisa. – E já começava a se debater outra vez. – Ele é inocenteee!

Vendo que a amiga histérica começava a se impacientar de novo, Flori levantou-se com certo esforço.

– Lud, você se acalme. Você pare com essa histeria, amiga, que você me põe doidinha. – E Flori, uma pilha de nervos, já foi levantando a mão dormente e ameaçadora. – Escuta, diabo, eu te arranco outro dente já já.

Foi água na fervura, no instante Ludmárcia parou de berrar "inocente" e passou apenas a grunhir baixinho, já bem mais calma.

– Mas ele é inocente... – Lud ainda queixou-se com voz tremida, morta de medo de perder outro pivô.

– Disso eu sei, amiga, "até aí morreu o Neves". O que você não sabe é que eu tenho como livrar seu homem do xilindró.

Ludmárcia corou até o branco do dente ao ouvir a outra tratar Ivanir por "seu homem".

– Ave Maria, Flori. Fala de um jeito. Até parece que eu tenho alguma coisa com o Ivanir.

– Sei, tem não, né? Pois sim. – Flori torceu o bico, absolutamente incrédula. – Mas não importa, de qualquer forma, vou agora mesmo resolver isso. Não deixo mais nem um dia um inocente pagar por um crime que não cometeu. Ainda hoje tiro o enfermeiro da cadeia.

– Tira mesmo, amiga? Mas como você vai fazer isso, Flori? Nem advogada você é.

– Muito simples. – Arreou a mão no soro da pobre da doente, fazendo a coitada contrair o rosto bonito em horrendas caretas de dor, estrabicazinha, tamanha era a intensidade dos "choques" na veia. – Eu vou tirar Ivanir da cadeia simplesmente porque vou lá e vou contar ao Delegado Valadão QUEM MATOU DOUTOR EPAMINONDAS.

Ludmárcia só não caiu por que já estava deitada.


Na mansão Braga de Medeiros, uma sombra espalhafatosa e um tanto rude se esgueirou pelos corredores mais rápido do que coceira de cachorro e entrou no quarto de Ludmárcia.

Lucrécia sabia que o cerco estava se fechando. A irmã até ficara calada sobre o sequestro, quando a polícia a levara presa, mas ficaria calada por quanto tempo? Tinha certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a paspalhona ia abrir o bico e espalhar a merda no ventilador, ainda mais sendo acusada de um crime que certamente não cometera, otária que era, e sendo o fato de ter sido sequestrada um excelente álibi, já que um dos motivos da prisão havia sido a sua suposta fuga. Humpf! Quando aquela songamonga visse "cu de cutia assobiar meio-dia", não tinha dúvidas de que ela botaria a boca no trombone. E ela, Lucrécia, já podia até ver a abestada, com aquele jeitinho fresco de ser, toda indefesa e boazinha, ferrar com a vida dela na melhor das boas intenções: "Não, senhor Doutor Delegado, sou inocente. Eu não fugi, não, senhor. Eu fui raptada pela minha irmãzinha malvada e o amante dela. Mas, por obséquio, não a prendam, a culpa é minha, eu que não soube educá-la." Arre! Como odiava aquela sonsa, aquela nojenta, aquela chata!

Foi, então, que teve a "brilhante" ideia de assaltar novamente a caixa de joias da irmã, passar o rodo legal, já que da outra vez, na pressa, não pudera fazer um limpa de responsa. Seu plano era vender as semijoias, fugir para Serro Azul e sumir no mundo.

Como era persona non grata na mansão, para entrar, teve que subornar dois seguranças com favores sexuais e se disfarçar de samambaia.

Quando abriu a porta, o quarto da irmã estava numa densa penumbra, as cortinas cerradas. Na ponta dos pés, foi decretada ao armário. Atabalhoadamente, toda doida, fuçou pelas roupas da outra à procura da caixa de joias. Depois de arremessar para trás metade do que estava no guarda-roupa, a destrambelhada achou o tesouro.

Dessa vez, não parou para examinar ou criticar o que roubava, encheu os bolsos com todo o conteúdo da caixinha. Na busca frenética, deparou-se também com a bolsa da irmã. Não contou conversa.

– Eita, porra! Deve está recheada de capim. – murmurou baixinho. Abriu a bolsa, quase arrebentando o zíper. – Repara o dinheiro véi da nojenta. Diabo de dinheiro é esse? Eu-erre-ó-ró, Euró. Merda, a porra nem pra ter dólar. Será que esse dinheiro véi ainda vale pra alguma merda? E a bolsa véa... Como é, me'rmão? P-r-a-pra-d-a-da! Pradá! E desde quando pra dá se precisa de bolsa? Diabo de marca é essa? Bicha miserável, nem para comprar uma bolsa de marca boa, assim uma "les potite". Opa, um monte de cartão de crédito, se ao menos soubesse a senha... Eita, um talão de cheque, será que sei falsificar a assinatura daquela besta? Olha, o passaporte da otária...

Uma ideia tresloucada começava a se esboçar na mente da maluca, quando um clique de interruptor, inesperado, anunciou uma luz fluorescente, ofuscante, que inundou todo o aposento. Lucrécia teve que concentrar todas as suas forças no controle da prega-rainha para não se obrar toda, ali mesmo, só de susto.

– Salve essa força, Lulu Truqueira! – Levitraz saldou com seu habitual cinismo. – Não sei por quê, mas eu sabia que lhe encontraria aqui fazendo um limpa nas joias da sua irmã.

Lucrécia fechou os olhos e fez a súplica desesperada: "Meu Deus, eu sei que não mereço, mas fazei com que isso não seja verdade."

– Mas, escuta, Lulu, ainda bem que você está abonada e já pode pagar aquela dividazinha que você contraiu com a minha pessoa, né, não?

Lucrécia respirou fundo, lutando para manter o controle e não cair ali mesmo estrebuchando de ódio. Quando conseguiu falar, sua voz veio das entranhas, era quase que um arroto, grave, rouca e maléfica, e saiu espumando por entre os dentes trincados:

– Fala baixo, miserável!

– Ora mais, por quê, Lulu Bruxismo? Se estou na minha casa. Posso até GRITAAAR!

– Cala a boca, cala a boca! – Dessa vez a voz da alucinada saiu fina e rascante. Lucrécia teve que se segurar, uma vontade louca de rasgar qualquer coisa dura com os dentes, a cabeceira de madeira de lei da cama da irmã, por exemplo.

– Cala a boca já morreu, Lulu Gatuna, quem manda na minha boca sou eu. – E cada vez alteava mais o tom de voz. – Ainda mais agora que sou o dono dessa casa, posso falar mais que papagaio de manicure.

– Dono dessa casa! Rarrái! Pirou de vez, o desgraçado. Vem cá, tu ficou doido ou deu para cagar bila?

– Doida é tu de falar assim com o dono da Mansão Braga de Medeiros, ou por outra, Mansão Levitraz da Silva. Eheheh! É, Lulu Fracasso, nem todo vilão é incompetente como você. Por exemplo, agora, aposto que seu tico e seu teço estão girando maluquinhos e se perguntando: "como foi que ele se deu bem e eu não?" É ou não é?

Lucrécia arranhou o próprio rosto e começou a roer a alça da bolsa da irmã.

– Muito simples, Lulu Topeira. O Enfermeiro Ivanir pagou o que me devia. Está vendo? Todos os inadimplentes já estão limpando o nome na praça. Só falta você, Lulu SPC. – Mudou o tom de voz e sentenciou implacável. – Anda, passa essas joias pra cá! Anda!

– Desgraçado! – Rugiu, uma fera acuada. – Pois se tu queria essas merdas, por que diabos já não veio roubar essas porras?

– E deixar minhas impressões digitais por todo o quarto? E ficar com a imagem gravada naquela câmera bem ali?

Lucrécia pensou: Agora perco o juízo.

– Miserável. – Mordeu o próprio braço, os olhos marejados de desespero e ódio. – Pois não dou! – Desafiou. – Não dou! Quero ver me obrigar. Não dou! Já tou mesmo mais suja que chão de oficina, meu filho, tou mais nem aí. E outra, o que tu vai fazer, otário? Tu não tem mais poder sobre mim. Já te falei isso. Quer que eu desenhe?

– Ah, não tenho mais poder! É, realmente, todos os seus podres já foram descobertos e você já está na merda, né, Lulu Fundo-do-Poço? – Fez uma cara cínica de desolação. – Opa, a não ser que seja considerado podre formação de quadrilha, sequestro, tortura...

Lucrécia sentiu o sangue gelar e se concentrar todo no torpedeiro, que acusou logo um e-mail novo na caixa de mensagem.

– Ah, e agora roubo. É, talvez isso seja um podrezinho, né, Lulu Xadrez. Se bem que uma informaçãozinha dessa não vai lhe custar nem vinte anos de cadeia. – Mudou novamente o tom de voz, que de cínico passou a ameaçador. – Anda, sua burra, me passa logo esse bagulho. Ah, e pode passar a bolsa também, que não é uma pradá, Lulu Analfa, é uma PRADA legítima e é caríssima. Anda, umbora!

O sangue andarilho de Lucrécia voltou a circular e subiu todo para a cabeça, fervendo. Uma raiva insana e assassina lhe avermelhou a vista. Andou em direção ao mordomo, olhando por baixo como uma serial killer, olhos injetados, narinas dilatadas e dentes à mostra.

O instinto de sobrevivência deu alerta e Levitraz engoliu em seco.

– Pensando bem, se qui-quiser, po-pode ficar com a bolsa... – gaguejou o chantagista, antes de ser acertado no olho esquerdo por um cruzado de direita.

Cerca de trinta minutos depois, Lucrécia saiu do quarto metida num Vison, óculos escuros imensos, chapelão de madame, a Prada à tiracolo, puxando uma mala, e usando todas as joias roubadas, mais enfeitada que bicicleta de pedreiro. Deixou no quarto um molambo de Levitraz, mais morto do que vivo, depois da surra de criar bicho que a megera lhe dera.

Cuspindo dente, a cara toda inchada e roxa, tossindo e gemendo, rasgado e cheio de hematomas pelo corpo inteiro, o desgraçado só tinha uma ideia fixa na cabeça:

– Aquela quenga me paga.


Floribunda chegou à delegacia e não esperou nem para ser anunciada, praticamente invadiu a sala do Delegado Valadão.

– Valadão, isso que o senhor está fazendo é uma injustiça. – no fogo da emoção, Flori não teve o menor tato. – Ivanir é inocente! Inocente!

Valadão, que cortava as unhas dos pés com seu asqueroso e tradicional unhex, pego de surpresa, quase arranca o mindinho fora.

– Epaaa! Que porra é essa Sublime Cu? Isso aqui não é a casa da Risoleta, não, caralho. E que falta de respeito é essa de me chamar pelo nome? É senhor Delegado Valadão para você, sua quenga velha!

O sangue circulou fervendo nas veias de Flori, que já andava à beira de um colapso nervoso.

– Se tu, não é você, nem senhor, é tu mesmo, se tu quer respeito, seu puto, dê-se ao respeito primeiro.

Valadão ficou mais vermelho que a maçã da bruxa, inchou igual sapo com as costas salgadas, deu um murro na mesa e levantou-se devagar e ameaçador.

– Cabo 70! Enquadra essa infeliz por desacato à autoridade! Agoraaa!

O Cabo 70 chegou derrapando, já com as algemas no ponto, todo espavorido:

– Onde? Cadê? Quem?

– Por que tu não enquadra a tua mãe, incompetente? – Flori já não tinha mais limites. Toda a tensão dos últimos tempos, aliado ao fato de que ela não podia ouvir sobre seu passado sem perder as estribeiras, fizeram-na perder a cabeça. – Eu estou aqui, seu idiota, para te ajudar. Você prendeu um inocente, um inocenteee!

Valadão não se lembrava de alguém lhe ter desafiado daquela maneira, até sem reação ficara por alguns instantes.

– Leva ela daqui. – bufou, quase sem voz, a ponto de explodir.

Flori sentiu a algema comprimir seu pulso dolorosamente.

– Por aqui, senhora! – Cabo 70 era um gentleman.

– Senhora o quê! Isso é a maior vagabunda que Ovelhópolis já teve. Floribunda Sublime Cu.

– Melhor ser uma vagabunda do que uma cavalgadura feito tu. E não me chama de Sublime Cuuu! – Flori esperneava e gritava. – Me solta, diabo!

– Leva, pode levar! Amarrada e acorrentada. Leva!

– Mas eu sei quem matou! Eu sei! Não foi o Ivanir! Ai, meu pulso, porra! Foi minha mãe, a assassina é minha mãe!

– Ai, meu saco! Leva e bota essa quenga doida na solitária!

– Não vai pôr ninguém em solitária coisa nenhuma, Cabo 70! Pode soltar a moça. – Dona Valdevina já chegou na delegacia botando moral.

– Mamãe?! – e Valadão arreou-se na cadeira boquiaberto.

Nesse momento o Cabo Dois Patinhos na Lagoa entrou afobado na sala, quase botando os bofes para fora:

– Doutor, doutor, acabamos de receber uma denúncia grave.


No aeroporto internacional de Ovelhópolis, o rapaz do guichê da Ocean Air olhava confuso ora para a foto do passaporte, ora para a moça à sua frente.

– Mas, senhora...

– Senhora é a mãe! Tá me chamando de velha?

– Que isso, sen..., moça, longe de mim...

– É longe de você que eu queria estar mesmo.

– Desculpe, Dona... – Leu no documento. – Ludimárcia...

– É, Ludmárcia, o D é mudo. Parece que é anafalbeto, incompetência!

– Ah, pois não, Dona Lud-Márcia, você vai me perdoar, mas é que na foto do passaporte a sen... quer dizer, você está tão diferente. A sen... digo, você não terá se confundido e pego o passaporte errado?

– Ah, sabe que pode ser sim. Talvez eu tenha trazido por engano o passaporte da escrota da tua mãe, ou da marafona da tua irmã. É claro que sou eu, otário.

O pobre do atendente pigarreou, constrangido e tentado segurar a própria irritação.

– Desculpe, sen... moça, mas é que realmente parece outra pessoa.

– Meu filho, já ouviu falar em cirurgia plástica, não? Eu era assim horrorosa, dei uma recauchutada na cara e fiquei assim, maravilhosa. Pronto, simples assim.

– Ah, é por essas e outras que sou contra esse negócio de cirurgia plástica...

– O quê? Tá querendo insinuar que eu não estou melhor do que na foto?

– Não, de forma alguma! – apressou-se em dizer o atendente. – É que, sen... Desculpe, mas se você pudesse tirar esses óculos escuros...

– Tou com conjutivite inflamatória crônica e altamente contagiosa. Quer que eu tire os óculos, eu tiro, quer?

– NÃO!!! – O atendente quase gritou, carimbando os documentos mais ligeiro que carreira de capote. – Aqui está, sen... dona..., enfim, pode seguir para o portão de embarque internacional.

Lucrécia riu por dentro. Estava feliz, realmente muito entusiasmada. Comprara uma passagem só de ida para Assunção e já se via comprando loucamente nas melhores lojas Paraguaias, torrando sem dó nem piedade o dinheiro da venda das semijoias da irmã.

– Europa, prepare-se que aí vou eu! – pensava eufórica.

Soberaníssima, se achando a madame, a gostosona, a esperta, dirigiu-se para a sala de embarque, literalmente, flutuando de felicidade, já se imaginando na janelinha do avião, dando uma banana para o Brasil, com direito a trilha sonora e tudo: "Brasil! Mostra tua cara. Quero ver quem paga pra gente ficar assim..."

– Dona Lucrécia! – Uma voz às costas da megera cortou-lhe os devaneios grandiosos.

A burra, no susto, traiu-se e olhou para trás. Eram dois policiais. Ainda quis disfarçar, mais desconfiada que menino cagado, olhando enviesado para o chão, olhar inquieto que gritava "Fui eu". Quis continuar a caminhar como se nada houvesse acontecido, tarde demais, os policiais a alcançaram.

– Dona Lucrécia, a senhora está presa por sequestro, formação de quadrilha, furto, falsidade ideológica, tortura, cárcere privado, falsificação de documentos, suspeita de assassinato, atentado violento ao pudor, à moral e aos bons costumes com aquelas suas roupas horrorosas, ruindade, mau-caratismo, safadeza...

O outro policial deu um cutucão no colega empolgado e cochichou entortando a boca:

– Já deu, né, Cab'Um-Atrás-do-Outro!

– Ah, mas vou te contar, Cab'Idade-de-Cristo, tu é o maior corta-onda.

Lucrécia ainda quis argumentar, tentando adoçar a voz para se passar pela irmã:

– Não, os doutores se enganaram, eu não sou eu, não, eu sou a Ludmárcia, a minha irmã.

– Ô, me'rmã, me dá logo tuas mãos para eu algemar, deixa de conversa. – Cab'Um-Atrás-do-Outro não tinha a menor paciência com bandida.

Lucrécia olhou por um momento para as algemas abertas à espera de seus pulsos:

– Soque essa porra no toba. – Falou bem depressa, girou nos calcanhares pronta já para meter o pé na carreira em fuga, quando um "meteoro" a acertou no queixo e a levou ao chão, completamente nocauteada.

Antes de perder a consciência ela viu a imagem borrada de seu agressor, o Delegado Valadão, que lhe desferira uma mãozada tão segura, que por pouco não lhe desloca o maxilar.

– Faltou dizer que tudo o que ela falasse poderia ser usado contra ela, Cab'Um-Atrás-do-Outro, seu idiota. – observou Valadão, massageando a mão dolorida.


– Então, você acha que sabe quem matou o velho, digo, o doutor?

A sós com Flori, Dona Val, enfim, pôde interrogá-la.

– Sei. – Flori respondeu com uma firmeza que logo se esvaneceu. – Eu acho.

– E quem foi? – Dona Val perguntou incrédula.

– Minha mãe, Dona Calormina da Fonseca, Dona Calô das cabras, como é conhecida. – E engoliu em seco, morta de medo de estar cometendo uma injustiça.

Dona Val tomou nota na caderneta ensebada, que sacou do sutiã.

– Huuum... E o que a levou a ter certeza disso?

– Bem, certeza, certeza, certeza, eu não tenho. – Mesmo morta de sem jeito, Flori achou melhor confessar.

– Então, mulher, como é que tu me vem acusar a própria mãe de assassinato sem ter certeza?

– Mas, Doutora Delegada...

– Eu não sou delegada. Delegado é o meu filho. – cortou sem dó nem piedade.

Flori engoliu em seco. Aquela velha era carne de pescoço, literalmente chave de cadeia. Mesmo assim, Flori peitou:

– Infelizmente. – Alfinetou e elogiou ao mesmo tempo. – Mas, Dona Val, raciocina comigo: Primeiro, minha mãe estava na festa do casamento do doutor disfarçada de cozinheira, veja a senhora, com uniforme e tudo. Uma das mulheres mais ricas de Ovelhópolis, vai me dizer que estava fazendo um bico? Hein, Dona Val? Me diga se não é no mínimo suspeito? Suspeitíssimo. E a senhora pensa que acabou por aí? Hum, esperança! Qual o quê! Ainda tem mais. Foi ela que trouxe para os noivos o proseccozinho envenenado.

– Pro meu o quê? – Dona Val já ficou de orelha em pé.

– A garrafa de vinho envenenado, Dona Val. Foi minha mãe quem a levou. Ninguém me contou, não, eu vi. Fui perguntar como quem não quer nada, ela ficou toda nervosinha. Aí tem, Dona Val, aí tem.

– Muito bem, Flori, e o motivo? Se você afirma que foi sua mãe quem matou, deve haver um motivo. Muito bem, vamos a ele. Qual o motivo?

– O motivo? – Flori se atrapalhou. – A senhora quer saber o motivo, né? Ora, Dona Val, eu já dei o nome do santo, a senhora ainda quer que eu diga o milagre? – E deu um risinho sem graça, logo engolido ante a cara de poucos amigos da "delegada".

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