Episódio 6


No episódio anterior:

- Valadão anuncia fim do mistério: A assassina é a viúva;

- Floribunda se desespera ao saber das acusações contra sua amiga;

- Alcione faz proposta indecente a Ludmárcia.

Nossa doce heroína, desde que começara esse interminável folhetim, ou mesmo antes, nunca havia sofrido tanto. Literalmente crucificada, os braços, amarrados na cabeceira da cama, já estavam meio azulados, dormentes, insensíveis e, de vez em quando, ainda se retesavam em câimbras medonhas. A barriga, de fome, já estava grudada no espinhaço, quase três dias sem comer. A boca e a garganta, secas há dias, nem lembravam mais o gosto d'água. A sensação térmica do quarto fechado era comparada à que sentiria uma pessoa trancada num banheiro químico no pingo do meio-dia de um dia ensolarado de verão em Teresina. O mau-cheiro do quarto era insuportável: urina, suor, sujo, mofo, cimento e outros odores insuspeitos, tudo mesclado no bodum infernal. Mas de todos os sofrimentos, o pior era uma terrível coceirinha naquela região do corpo feminino que não pega sol, naquela situação, suado e ardido, há dias, e que fazia a infeliz se contorcer toda nas piores agonias.

– Eu tenho que escapar desse inferno o quanto antes, senão esses dois psicopatas me matam. – Gemeu baixinho.

Sabia ser inútil, pois já tinha tentado um milhão de vezes escorregar a mão pelo nó apertado das cordas até se soltar, mas naquela situação extrema, não tinha alternativa, tinha que continuar tentando. Forçou o braço para baixo o máximo que suas mirradas forças suportavam e, quando já estava quase se obrando toda, a corda cedeu e a mão escorregou livre, pesada, azulada, insensível, dormente e solta. Mas aquele milagre já era de se esperar: uma corda por mais grossa que fosse, sempre acaba cedendo, além do que os bracinhos da sequestrada afinavam dia a dia e já estavam quase transparentes.

Depois de respirar fundo, não tão fundo, porque o cheirinho do quarto não era dos mais agradáveis, e de desamarrar a outra mão, com muito sacrifício, a primeira mão solta insensível e desobediente, a pobre da sofredora tentou levantar-se da cama. Não deu nem um passo. Tão fraca estava e tanta fome passara esses dias que, assim que se pôs em pé, deu uma piloura e se arriou no chão, tal qual uma sapota madura, inconsciente.


Enquanto isso, na sala ao lado, Lucrécia e Alcione corriam, ele atrás dela, em volta de uma mesa gasta, encardida e de pernas bambas, que servia de móvel principal do casebre clandestino.

– Eu te pego, desgraçada! Te arranco os olhos, a língua, te esfolo e depois te mato.

– Ui! Hahahaha! Cada dia fico mais apaixonada! – Escapou das garras do amante por um triz. – Ui! Ai! Essa foi por pouco.

Cansado daquela brincadeira idiota, sentindo-se o mais infeliz dos homens por ter se metido com aquela jararaca, Alcione parou um instante para tomar fôlego e, quase chorando, suplicou:

– Diz que é mentira! Diz que tu não desgraçou nossa vida, cão dos infernos! Diz que não fez essa merda e jogou para sempre a gente na cadeia.

– Cadeia por quê, ora bolas? E por acaso é crime sequestrar e maltratar a própria irmã? E o direito de família? E os direitos humanos?

– Meu Deus do céu, me segura se não faço uma arte com essa infeliz!

– Escut'aqui, ô banana de pijama! Fiz sim! Pedi o resgaste, ora merda! Afinal de contas, estou fazendo despesas do meu próprio bolso! Vou bem sustentar agora aquela beleza e não ganhar nem unzinho por fora! Rarrái! Só o que me faltava!

– Sustentar o quê, infeliz? Que despesa? Se tu não tem nem pra ti, diabo, não tem nem o que um periquito roa! Gastou com o quê! Hoje já é o terceiro dia que sequestramos tua irmã e até agora não damos nem um copo d'água... – Deu-se conta da enormidade que acabara cometendo com a infeliz, e, ante aquela urgência, já totalmente esquecido da situação terrível em que a megera os havia metido, Alcione correu para a porta do quarto de sua musa.


No quarto, Ludmárcia não tardou a recuperar os sentidos, foi só um passamento. Mas a confusão de sua mente, essa demorou um pouco mais a se dissipar. Sem entender nada de sua periclitante situação, a pobre estranhou o que se passava, seu subconsciente recusando-se a aceitar a dura realidade.

– Meu Deus, que lugar é esse? Onde estou? – E as lembranças vieram de uma vez só, fazendo a pobre estremecer. E então reconheceu as vozes alteradas da irmã e de Alcione na sala ao lado. – Valei-me, Minha Nossa Senhora Desatadora dos Nós, tenho que fugir daqui. Se eles me pegam, estou... Hum, não é bom nem pensar.

A pobre tentou se levantar, mas as pernas não a obedeceram, tão fracas estavam. O jeito seria se arrastar até a janela.

As vozes aumentaram de intensidade. Ouviu passos em direção à porta.

– Meu Deus! Que desespero! – pensou a pobre se arrastando pelo chão rapidinho.

Com muito sacrifício, chegou até a janela. Ficou de joelho fazendo um esforço tremendo. Quando pode examinar de perto a janela, constatou aterrada que, pregada nela em sentido horizontal, com pregos enormes, tortos e enferrujadas, estava uma tranca mais grossa que cano de esgoto. Nem teve tempo de praguejar, a infeliz, pois assim que viu ser quase impossível sua fuga, sentiu mais que ouviu alguém muito devagar mexer no trinco da porta do quarto.


– Ah, mas não vai mesmo! Pensa que eu não sei que você quer tirar é uma casquinha, seu ordinário! – E a megera da Lucrécia correu para interceptar o caminho do amante.

Alcione não contou conversa, deu-lhe um safanão como quem tange um mosquito chato. Nem sequer diminuiu o ritmo do passo.

A megera, por sua vez, não se deu por achada, catou uns dois coquinhos, trombicou ali, caiu acolá, mas logo se aprumou e correu novamente para bloquear a entrada do amante no quarto da irmã. Foi segurar a mão dele quando esta já se encontrava no trinco da porta.

– Aqui você não entra! – Com uma mão, como já disse, segurou a do amante, com a outra, agarrou com toda força, puxou, torceu e espremeu os... bem, o caro leitor(a) já entendeu. Foi um golpe baixo como só Lucrécia seria capaz de aplicar.

– Não admito macho meu se engraçando pro lado de quenga nenhuma.

Alcione quis falar, mas faltou-lhe o ar. Atrevido como só ele, ainda foi homem para delinear com os lábios um xingamento contra sua torturadora.

– Como é? Não entendi. – Dessa vez, além de torcer, a bruxa ainda puxou para baixo.

Alcione se rendeu. Achando força não se sabe de onde, balbuciou um sim espremido.

– Sim, querida! – A jararaca aumentou a pressão das garras.

– Sim, querida... – A voz do coitado saiu mais fina do que a da Tetê Espíndola.

– Ah, bom! – Soltou com uma certa pena, afinal torturar também lhe dava prazer.

O coitado saiu assoprando e se encolhendo todo, a vista escura de dor.

– É bem fácil mesmo dar comida ou água para aquela imprestável... Hum! E eu? Ora, mais! Que estou com um pão seco desde ontem e bebendo água da bica.

– Escut'aqui, sua cretina, – com a voz ainda fina, Alcione retrucou – e se ela morre de fome? Quem é que vai querer pagar o resgate?

– A gente dá um desconto, ora! Bicho burro, não tem nem tino comercial!

Nisso, batem palmas no portão do casebre.

Alcione e Lucrécia se entreolharam sem respirar, os olhos esbugalhados, a boca aberta, o coração em tempo de sair pela boca.


– Mas é só o que me faltava mesmo! – A velha Calô chega sentiu um arrepio na nuca de ódio. – Mas é muita audácia. Vir aqui, na minha casa, me desafiar, querer me botar na parede. Eu não sei onde é que estou que não te boto daqui para correr a vassourada, diabo.

– Mamãe, posso falar? Deixa eu falar. Então, escuta. – Flori desafiou. – Eu vi, mamãe, eu vi a senhora disfarçada de cozinheira lá na mansão Braga de Medeiros na noite da morte do Doutor Epaminondas. Eu vi, mamãe, não foi ninguém que me disse, não, eu vi, eu vi.

A velha ficou mais branca que uma parede recém-caiada. Engoliu em seco.

– Viu, eu não disse? Ficou calada, não foi? Aí tem! Aí tem!

– Tem o quê? Deixa de conversa. Passa já pra dentro, que isso não é coisa para se conversar aqui fora. Se tem uma coisinha que eu não faço é dar assunto para essas fuxiqueiras aqui da rua.

Flori entrou com um ar triunfante.

– O que é que tu está querendo insinuar, hein, marmota?

– Não estou insinuando nada, mamãe. Estou dizendo que eu vi. Até agora não falei nada, porque apesar de a senhora ser uma verdadeira bruxa, antes de tudo é minha mãe. Mas agora que minha amiga está sendo acusada...

– E vai dizer o quê, hein, sua burra? – A velha cravou as garras no braço da filha. – Que me viu numa festa em que a cidade inteira comparecera? É isso? Deixa de ser ridícula. – e a empurrou num sofá.

Flori, o braço machucado latejando, não se deu por achada, levantou-se como se tivesse uma mola na "tampa de farinheiro".

– Não, mamãe, não vou dizer só isso, não. – Tomou fôlego e despejou tudo. – Vou dizer que vi a senhora, uma das mulheres mais ricas e respeitáveis – frisou a última palavra desenhando aspas no ar com os dedos – de Ovelhópolis, disfarçada de cozinheira e servindo o vinho envenenado aos noivos.

A velha titubeou, as pernas fraquejaram, e caiu pesadamente na poltrona.

– Foi a senhora, não foi, mamãe? – Flori desfechou o golpe de misericórdia. – Foi a senhora quem matou o doutor Epaminondas, não foi?


Ao perceber o trinco da porta se mexendo, Ludmárcia chegou às raias do desespero. Sem pensar nas dores, nas privações, nem na debilidade dos últimos terríveis dias, agiu mais ligeiro que tainha de açude, levantou-se, segurou a trava com as mãos, posicionou uma perna na parede e puxou. Tudo isso num movimento só. A trava, que estava mau pregada na janela, despregou-se fácil. E Ludmárcia se arriou no chão de costas. Ficou confusa alguns instantes, até se recobrar da queda. Sentou-se tonta, como se tivesse fumado três e bebido duas. Sentiu uma pontada no polegar, levantou a mão para averiguar e viu que tinha quebrado sua unha bem feita no talo.

– Poxa! Eu sei que desgraça pouca é bobagem, mas isso já é ridículo! – Começou a chorar de puro desespero, quando sentiu um ventinho gostoso no rosto. Olhou para cima e viu a janela aberta para a liberdade.

Nessa hora, ouviu alguém bater palmas. Tão tensos estavam seus nervos que se retesou toda e, como antes, levantou-se de um salto, e, com outro, pulou a janela sem nem tocar nas beiradas.


A velha foi se levantando devagar, olhando por baixo, uma cara de bicho, literalmente bufando pelas ventas.

– Miserável. – Falou grosso, rugiu a bem da verdade. – Eu sei bem o que você quer? Quer que eu me lasque, para poder ficar com todos os meus bens e a guarda da minha neta.

– Mamãe, se foi a senhora, eu não vou permitir que a minha amiga pague por um crime que não cometeu. – A voz de Flori até saiu meio tremida, a velha ainda lhe intimidava.

– Nunca pensei que uma idiota dessa pudesse me chantagear.

– Então, a senhora confessa? Matou o velho.

– Confesso é a mão na cara já já! Me fala, infeliz, o que é que tu quer de mim? É dinheiro?

– A verdade, eu quero a verdade. Por que a senhora matou o doutor?

– Quem é que matou doutor aqui? Estará ficando doida. – A velha se atrapalhou. – Se eu fui lá, foi porque... Vem cá, e desde quando eu te devo satisfação? E outra, você tem alguma prova de que eu estava lá, sua burra? Não tem, não é? Não tem.

Flori estreitou os olhos:

– Não, não tenho, a não ser que uma foto de celular seja considerada prova. – foi irônica.

A velha esmudeceu, desviou a vista, pigarreou.

– Vamos fazer o seguinte, você me vende a porra desse celular. Já passou as fotos para o computador, não, né? Pronto. Pago dois mil reais. É pegar ou largar. E retiro a solicitação de guarda da Branca. Que tal?

Flori respirou fundo:

– Agora já sei o que eu queria saber. – E virou nos calcanhares, deixando a mãe sem olhar para trás, indiferente aos gritos da velha bruxa.

– Ah, sua rapariga de porta de mercado, não pense que vai sair e me deixar aqui falando só. Vem cá, Florípedes. Volta já aqui, sua desgraçada. Olha, escuta, aumento para dois e quinhentos, diabo exploradeira, dá até para comprar um smartphone e ainda sobra. Vem cá, diabo! Florííípedeees!


Nazarena, escondida atrás da escadaria principal, ouviu sombria, rancorosa e enciumada Flori chegar e Ivanir vir recepcioná-la.

– Será que essazinha aí também está querendo dar em cima de meu noivo? – A aprendiz de cascavel tinha ciúme até de poste.

Sem se dar conta de que era espionado, Ivanir sofria a dor de uma saudade e a revolta de ver o nome dea amada achincalhado de forma tão vil.

– Você viu, Flori? Agora me diz se aguento? Todos os jornais, sem exceção, estão dando a notícia-bomba daquele delegado imbecil. Ah, não, mas isso não fica assim! Não fica, não. – Levantou-se furioso e começou a andar de um lado para o outro, pisando forte e bufando pelas ventas.

Flori não sabia como abordar suas suspeitas. Depois de falar com a mãe, viera decretada falar com o maior interessado no caso: o sobrinho do defunto. Veio o caminho inteiro pensando: "Acabo já já com essa palhaçada, quer ver como acabo?" Mas, naquele, momento, vendo o desespero nos olhos do rapaz, seu descontrole e sua enorme preocupação pela sorte da viuvinha, perdera toda a coragem.

– E a Dona Gertrudes, Ivanir? Como reagiu a coitadinha?

– Teve uma piloura, caiu durinha no chão, claro. Tivemos que dopar e tudo. Está lá em cima a pobre. – E esmurrava uma parede. – Ah, mas isso não fica assim. Aquele delegado me paga! Ah, se paga!

– Calma, Ivanir, calma!

– Calma! Flori, você só sabe dizer: "Calma! Calma!" – Fazendo voz de falsete. – Calma é uma pinoia! Ora, calma! Eu tenho que fazer alguma coisa, eu preciso fazer nem que seja alguma merda!

– Mas o quê, homem de Deus?

– Sei lá! Matar aquele infame daquele cafajeste daquele imbecil daquele delegado! Tocar fogo nesses pasquins! – E balançava os periódicos no ar. – Arrebentar a cara dos canalhas que escreveram isso! Enfiar o dedo no meu... – O desespero do coitado era realmente grande.

– Chega, pelo amor de Deus, criatura! A gente tem que pensar em trazer a Ludmárcia de volta.

Com essa verdade o pobre diabo aquietou o facho! Caiu sentado na primeira poltrona que encontrou, completamente arrasado, em prantos.

Floribunda ficou ainda mais nervosa, não sabia se abanava o chorão, se corria para a cozinha a pedir a uma das cozinheiras um copo de água com açúcar, se chorava também, se consolava o infeliz, se corria doida. Por fim, parou entre a sala e a cozinha, respirou fundo e voltou para onde deixara o inconsolável enfermeiro, disposta a despejar todas as suas suspeitas.

– Ivanir. – chamou, decidida. – Tenho uma coisinha para lhe falar.

Antes, porém, de ela falar, pomposo e solene como de hábito, Alfred anunciou.

– Carta anônima e misteriosa para o senhor Ivanir!

– Pois por que você não pega essa carta anônima e misteriosa, faz um rolinho e soca no...

– IVANIR! – Flori interrompeu com um grito quase histérico. E dirigindo-se ao mordomo: – Me dá logo essa carta aqui, Alfred! – Nervosíssima, tomou a carta de Alfred quase arrancando a mão do mordomo junto. Enquanto desdobrava a carta pensava: – Esse abestado vem me interromper logo agora que tomei coragem para dizer tudo na lata.

A carta estava escrita com letras de jornais recortadas e seu conteúdo, já nas primeiras palavras, fez as pernas de Flori fraquejarem, o sangue desaparecer de sua face, e quase a leva a uma síncope.

"Ó, embesil! Nóis tamo cum a rapariga fulera i iscrota da Ludimárcia secoestrada! Si tu qizer vê ela cum vida vai tê que pagá pra nóis 10 milhão de dólar! Sinão, amãiã mando uma urêa da perua de brinde pra ti, Ivani!"

– I-va-Ivan... Iva-vanir! Ai, meu coração! Ai, minha pressão! O inimigo se levantou contra nós, só pode. Cristo reina! Pegaram a Ludmárcia.

– Aquela cínica! Me fala, me fala quem é que está pegando aquela vagabunda! – Ivanir, sempre muito ciumento, entendeu tudo errado.

– Deixa de ser burro, menino! Ela foi sequestrada! – E entregou a carta nas mãos ávidas de Ivanir.

Ele leu, o rosto de um tom branco fluorescente.

– Nossa, quanto erro de Português! – comentou meio abobalhado antes de cair para trás.


– É a polícia! Vieram nos prender! E agora? Eu prefiro fugir! Vamos fugir! A casa já deve estar cercada. Por onde vamos fugir? – Alcione perdeu completamente as estribeiras. Até da dor nos países baixos esqueceu.

Não demorou para a mão pesada da Lucrécia acertar a cara do infeliz com um tapa de arrancar ciso.

– Ó, a frescura! Te cala e me ajuda a pensar, porra! – Lucrécia também estava com a "tripa gaiteira" que não cabia um cabelo, mas não dava o braço a torcer.

Mais palmas no portão.

– Eu vou é me mandar! Pernas para que te quero. – Alcione ricocheteou pela porta dos fundos que foi só um pé de vento.

– Ah, desgraça! Vem cá, seu mela-cueca! – Lucrécia até quis correr atrás do amante, mas foi impedida por batidas na porta da frente. Quem quer que fosse, estava agora mais perto, desistira de bater palmas no portão e, afoito, resolvera bater logo à porta. Se não atendesse, levantaria suspeitas. Respirou fundo, passou a mão nos cabelos desgrenhados e foi abrir a porta.

– Olá, sequestradora de fundo de quintal, tudo azul? – Levitraz, com a cara mais cínica da história desse folhetim, estava parado na porta do barraco.


– Ah, mãe, pra que a senhora quer interrogar essas pessoas, hein? Que trabalheira! – queixou-se Valadão.

Dona Val chegou cedo na delegacia e já foi pondo ordem na zona, como nos velhos tempos do finado seu marido, o Delegado Pio!

– Ô, menino mais preguiçoso! Isso pra comer é um leão, pra trabalhar só aos empurrão! Foi por isso que resolvi eu mesma vir logo fazer o que tem de ser feito. Quem quer faz, quem não quer manda. Anda, menino, faz o que estou mandando! Umbora! Avia! Deixa de vagabundagem! Se eu fosse esperar em casa, esse assassino ia morrer era de velhice.

– Ah, nem, mãe! Que saco! Tudo eu! Tudo eu!

– Olha o atrevimento! Está querendo apanhar? A palmatória está aqui dentro da bolsa, você tome tenência, esse menino! Humpf!

Risadas abafadas vieram do corredor. O Cabo 70 chega estava sufocando de tanto rir.

– Não, não, pode deixar! Já estou indo! – Valadão tinha medo de palmatória que se pelava.

– Ah, e não se esqueça de trazer aquela testemunha.

– Aquela, mãe! Mas pra quê? Não entendo para que a senhora quer falar com aquele traste. Quando a senhora encasqueta com uma coisa! Nunca vi!

– Faz o que eu estou mandando, menino! Anda!


Uma mão misteriosa afastou discretamente uma touceira de peão-roxo, para deixar um olho misterioso vigiar a porta de uma certa casinha grená!

Algum tempo depois, a porta da casinha se abriu com força:

– Sinceramente, Palominha! Você está me sufocando! Acho que a gente precisa dar um tempo! Eu estou porr'aqui com seus ciúmes!

– Quer ir embora, vai, sua bicha pão-com-ovo! Vai, pode ir, meu filho! Que quando eu estiver por cima da carne seca, amorrrr, você vai chorar a dor de uma saudade!

– Você fica com seus mistérios! E ainda vem me cobrar ciúmes! Se estou procurando minha filha desaparecida, é porque eu preciso fazer isso. Sou o pai, o pai! E outra: melhor sair perambulando pela cidade do que ficar aqui com esse seu mau humor. – Com agilidade felina, Desireé se abaixou a tempo de escapar do ferro de passar, que lhe passou raspando a cabeça.

– Sai daquiii! Desaqueeendaaa!

– A casa também é minha, sua cascavel choca! – Desireé, sempre muito calmo, com aquele estorvo, acabou perdendo as estribeiras. – Eu vou porque eu quero, sua horrorosa! Bicha Barroca!

A vizinhança ficou horrorizada com a saraivada de palavras de baixo calão que os dois trocaram. Finalmente, fazendo gestos obscenos, Desireé se afastou.

Mal Paloma bateu a porta com toda sua força de "mulher" ultrajada, a mão misteriosa saiu de trás da touceira de peão-roxo e foi tocar a campainha.

– Quem é, merda? – Ninguém respondeu, só a campainha foi tocada novamente. – Já vai, porra!

Atendeu a porta.

– Você? E o combinado não era logo mais na catedral? Humpf! Trouxe o "faz-me rir"? Hein? Fala, criatura! O gato comeu tua língua, foi?


Lucrécia fez força para se controlar e não ter um derrame de ódio. Respirou fundo e falou com uma voz grave de possuída:

– O que é que você está fazendo aqui?

– Uma visitinha, ora! É crime visitar os amigos? – O cínico respondeu afastando com rude descaro a vilã do seu caminho e entrando no casebre. – Pensei que se considerasse crime somente delitos mais graves, como, por exemplo, sequestro.

– Diabo do meu ódio, tu não tem medo de morrer, não?

Muito bisbilhoteiro, Levitraz já foi passeando por toda casa, assuntando tudo.

– Medo de morrer todos têm! Mas pior é ir para a cadeia por sequestro.

Lucrécia mordeu os lábios e fechou as mãos em punhos, em tempo de ter uma congestão de ódio.

– Oxe, cadê a maninha, Lulu Maloca, que eu não estou achando? Estará naquele quartinho ali.

Lucrécia não se controlou mais: passou a mão numa garrafa de pinga vazia, quebrou no tampo da mesa e, com três longas passadas, interceptou o caminho do folgado em direção ao quarto do cativeiro.

– Bota a mão no trinco dessa porta que tu nunca mais vai poder "soltar pipa", seu miserável.

– Ui, para quê tanta violência? Nossa, estou até com meda! Eheheh! – Mudou o tom e foi implacável. – Escut'aqui, ô Zebu! Vá ameaçar a tua mãe, sua porra! Ora mais, me respeita! – E deu seu preço. – Quero cinquenta por cento do resgate! Ou vou direto na delegacia te denunciar por sequestro.

– Kiakiakia! Tu não aprende, não, ô Mané? Não se cansa de fazer chantagem e nunca ser atendido, não? Kiakiakia! Passou o folhetim inteiro chantageando Deus e o mundo e até agora continua na merda! Certo, Levitraz, eu devo não nego, pago quando puder. Vá para casa e fique aguardando que eu vou mandar seu dinheiro por correio! Prefere SEDEX ou carta registrada? Kiakiakiakia!

Levitraz perdeu o rebolado, ficou vermelho e magoado como nunca ficara em toda sua vida. A bruxa sabia atingir o ponto fraco dos outros. Sem dizer uma palavra, o lábio inferior tremendo, os olhos cheios d'água, o mordomo saiu do casebre, acompanhado pelas risadas histéricas da megera.


O Cabo 69, depois de levar um passa-fora de Valadão, que ia à forra dos pitos maternos nos seus pobres subalternos, se dirigiu a casa de Paloma para cumprir as ordens recebidas à custo de muita humilhação.

Chegando lá, a primeira coisa que estranhou foi a porta escancarada. Seu faro de policial experiente o alertou logo para o perigo. Desajeitado, tentou imitar os tiras dos filmes policiais americanos. Jogou-se no chão, empunhando seu spray de pimenta (nunca gostara muito de armas de fogo), rolou umas duas vezes no chão, arrastou-se até a porta da frente, ficou de gatinhas e pulou para o lado esquerdo da porta, as costas rentes na parede, permanecendo de cócoras, sempre com o spray de pimenta engatilhado. Ao fundo, se se concentrasse, até poderia ouvir a trilha sonora da SWAT. Colocou só a mão para dentro do recinto suspeito e disparou um jato do produto. Silêncio. Nem uma tosse sequer, além da dele mesmo, que não conhecia o quanto era forte o cheiro do troço.

Com os olhos ardendo e lacrimejando, depois de se certificar por quase meia hora de que não havia tanto perigo, o eficiente policial, respirou fundo e se jogou para dentro de casa, rolando pateticamente no chão.

Daí a poucos instantes, ouviu-se em toda vizinhança um urro pavoroso de terror.


Ludmárcia, com seu salto digno de Jade Barbosa, caiu sentada numa moita de cansanção. A coceirinha insistente na sua banguelinha suada e azeda pareceu brincadeira de criança diante da coceira generalizada que se espalhou por todo seu corpo. A pobre, já sem forças (gastara as últimas arrancando a tranca da janela e saltando feito uma atleta olímpica), não tinha mais coragem nem para se coçar. Mas estava tão perto da liberdade... Não poderia perder aquela oportunidade, talvez a última que teria. Foi se arrastando pelo quintal devagarinho.

Na rua passou um caminhão. Quis gritar por socorro, mas cadê força? Só conseguiu miar igual a um gatinho desmamado.

E foi se arrastando.

Na calçada passaram duas velhinhas beatas, vindas da igreja. Era a sua chance. Estava perto do portão, se miasse ao menos elas a veriam. Tentou, mas, de tanto pôr força para se arrastar e de vez em quando se coçar, nem miar conseguiu.

"A calçada! A calçada é minha salvação! Chegando na calçada alguém vai me ver.", pensou a infeliz. Faltava apenas esticar o braço e abrir o portão. Respirou fundo e levantou a mão.

Um tamancão plataforma, colorido, cheio de lantejoulas e de profundo mal gosto pisou na sua mão, quase a esmagando.

– Aonde a maninha pensa que vai? Ia embora sem me avisar, hein, sua catraia medidora de asfalto?


Levitraz chegou na delegacia esbaforido e com cara suspeita. Deu de cara com Dona Val.

– Ops! Errei de delegacia? Ora, ora! Voltou à ativa, Delegada Val?

– Delegada é a mãe! O que você veio fazer aqui, Levitraz? Se for só encher o saco, pode ir dando meia-volta que não estou disposta a perder meu...

– Eu sei onde está a viuvinha!

Dona Val caiu na cadeira boquiaberta.

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