✧ Timóteo ✧

A

O nome Arautra, caso não fosse conhecido, não deixava de ser conceituado. E Timóteo Arautra gabava-se de sua raridade:¹

— Provável é que existam nomes semelhantes, mas Arautra não.

As origens da família, dizia-se, remontavam a Minas Gerais, mais precisamente à cidade de Pitangui, onde, no início do século XXVIII, Francisco Lourenço Arautra, natural de Estombar, Algarve, casara-se com Helena de Moraes, nativa da própria Pitangui. O casal residira ali por algum tempo, porém, no tempo da decadência daquelas minas, mudara-se com a família para São Paulo, estabelecendo-se em suas culturas na Conceição dos Guarulhos, mais tarde em São João de Atibaia, de onde Francisco era freguês, quando então morreu no município de São Paulo em 1791. Timóteo Arautra, contudo, sempre se colocava reticente quanto à história da família, pouco falando de sua história.²

Timóteo apreciava, por vezes, uma antiga foto que trazia duas pessoas: Teotônio Arautra, um homem robusto e forte. E Anita, uma pequena e frágil mulher.

Teotônio aparecia montado num puro-sangue, vencedor de muitas corridas no Jóquei, e Anita alisava a crina marrom, enquanto o cavalo inclinava a cabeça em sinal de agradecimento ao gesto afetuoso.

Teotônio era mineiro de Jaguari (anteriormente Jaguary, atual Camanducaia), nascido em agosto de 1873, vindo a óbito em setembro de 1940.

Teotônio e Anita geraram dois filhos: Timóteo e Tadeu. Este último, o caçula, falecera em combate quando da participação da FEB (Força Expedicionária Brasileira) na tomada de Monte Castelo, no ano de 1944. Não se casara.

Timóteo casou-se com Altina Corrêa, por volta dos anos 20, do século XX ³. Quebrando uma tradição involuntária da família, que sempre se mantivera em pequeno número, tiveram sete filhos.

E foi pensando nesses filhos, que Timóteo Arautra sentou-se numa poltrona que considerava inóspita ao velho e cansado corpo. As rugas eram muitas; um enorme "papo" sob o queixo; cabelos finíssimos, parecidos com os fios de uma teia de aranha; e quase escassos.

Arautra tinha um rosto redondo e sereno. Sua altura era atenuada pela ligeira curvatura das costas.

Era um homem seguro em suas ideias. E com certeza, mesmo que estivesse errado, não daria nunca o braço a torcer.

Oficial de justiça! Vaidoso e egoísta, muito comedido em relação ao dinheiro. Se pudesse evitar de gastar, evitava! Se pudesse pechinchar, não deixava por menos! 

O telefone tocou.

Levantou-se com dificuldade e, com passos lentos, dirigiu-se à mesinha do telefone:

— Alô?

— Alô? Timóteo Arautra?

— Ele mesmo. Quem está falando?

— O Dr. Ernesto Alender...

— Ah, Alender... que bom ouvir sua voz.

Ele não pensava o mesmo, mas não tinha outra alternativa:

— Telefono para lembrar que amanhã você tem hora marcada comigo.

Arautra zangou-se:

— Alender, saiba que eu tenho ainda a memória muito boa. Não venha dizer que estou caducando. E foi bom você ter ligado. Eu precisava mesmo falar com você. Será que dá pra vir até aqui?

— Até sua casa? Mas estou trabalhando...

— Não quer que eu vá aí, não é mesmo?

Alender compreendia bem as idiossincrasias do velho. Certamente iria inventar que estava à beira de um colapso nervoso ou então de um infarto, o que complicava as coisas, pois poderia realmente ser verdade.

Como ele não atenderia mais nenhum paciente naquele dia, resolveu ir:

— Está bem, eu vou.

— Ótimo.

B

Arautra cochilava há um bom tempo, quando o som estridente da campainha quebrou o silêncio.

Abriu a porta. O médico ofegava; colocou no sofá uma maleta que trazia por precaução:

— Olá, Timóteo. Desculpe o atraso. Houve um acidente na radial leste e o trânsito estava um inferno.

Arautra indagou-se que radial seria essa. Realmente sua memória já não estava tão boa, embora ele não admitisse que alguém lhe dissesse isso.

Ernesto Alender jogou-se no sofá. Limpou o suor do rosto com o lenço:

— Qual o problema, afinal?

O ancião encarou Alender. Fitou-o por instantes. Tinha uns cinquenta anos. Vasta cabeleira grisalha embelezava-lhe o semblante, dando-lhe um ar encantador. Se um médico deve inspirar confiança nas pessoas, Alender não teria problemas. Seu porte atlético, trajar impecável e cabelos grisalhos tornavam-no adorável. A firmeza de sua voz dava-lhe autoridade, que tanto necessitava na sua profissão.

— Sabe, é um assunto delicado... tão delicado que nem sei como abordá-lo. A vida é uma constante de problemas, mas há determinadas coisas que nunca se deve adiar para o dia seguinte.

— Sim, eu sei.

— Você sempre soube que minha vida inteira foi dedicada aos meus filhos. Trabalhei muito, sacrifiquei-me por eles. Nunca rateei um só segundo. É claro que se algum deles tomou um caminho errado, isso não foi por culpa minha. Agiu por livre e espontânea vontade. Sendo um adulto, teve total liberdade para tomar atitudes que lhe aprouvessem.

Alender pensou:

"Será que ele se refere a alguém em particular? Talvez Tiago".

Mas o que Alender sabia com certeza era que o sacrifício de Arautra não fora por amor e sim por imposição de sua própria consciência, metódica demais para suportar qualquer peso.

— E você deve concordar comigo, Alender: quando os filhos se tornam adultos, o pai assume papel de conselheiro, não sendo mais sua função zelar por seu bem-estar, assumir suas responsabilidades, comprar suas roupas, dar-lhes o que comer. Depois que se tornam adultos, o pai recosta-se na cadeira e os deixa seguirem suas vidas, não concorda?

— Sim, sim.

Timóteo prosseguiu, sem dar atenção à impaciência do amigo:

— E note que meus filhos já não precisam mais de mim. Agora são eles que assumem o papel de pai, e passam a cuidar de sua prole. Tiago abandonou a esposa e os filhos; mas num rebanho há sempre uma ovelha desgarrada.

— Ou negra!

Timóteo não prestou atenção ao comentário:

— Até hoje, ele foi o único na família Arautra que rompeu os laços matrimoniais. É, o que se pode fazer?

— Nada, nada.

Ernesto percebeu que seu diagnóstico de idiossincrático deveria passar para idiossincrático contumaz.

— Creio que você esteja cansado dessa lenga-lenga. Vamos ao assunto que lhe trouxe aqui.

"Finalmente."

— Diga o que lhe atormenta.

"Ah, que paciência tem que ter os médicos."

— É difícil dizer... mas também não se pode deixar para amanhã... talvez devesse... mas aí já pode ser tarde...

— Arautra, seja mais claro, por favor.

Alender não deixava de ser prático.

— Foi algo que eu senti... senti da última vez em que me reuni com meus filhos...

— E o que foi exatamente que você sentiu?

— Eu poderia dizer que pressenti...

— Mas, afinal, o que foi que você pressentiu ou sentiu, seja lá o que for?

Timóteo esfregou as mãos. Inclinou o corpo para a frente, aproximando-se do médio. O tom de voz tornou-se confidencial:

— Pressenti que... que um deles quer me matar.

Alender arregalou os olhos:

— O quê?!

— Isso mesmo. Falo em assassinato!

Ernesto recostou o corpo no sofá, boquiaberto:

— Nesta reunião... encontravam-se lá apenas seus filhos?

— Não, não! Estavam também meus genros e noras, e também meus netos. Nem todos... Tiago e a família não! Mas a impressão pode ter sido causada por alguém que não seja meu filho, se é isto que quer dizer.

— Exato, foi justamente minha intenção.

Coçou o queixo:

— Alguma coisa, em especial, o fez pensar assim?

Timóteo meditou:

— Não sei ao certo. Pode ter sido um olhar despretensioso... ou talvez uma palavra sugestiva, dita numa hora imprópria... O que me agonia é que não lembro quem me causou essa impressão.

— Todavia, sentiu que um deles quer te matar...

— Isso mesmo!

Alender colocou as mãos sobre os joelhos:

— Neste caso, não acho que tenha sido um fato concreto, como um olhar ou uma palavra.

— E por quê?

— Porque um olhar, uma palavra, são fatos de momento, isto é, que se percebe no exato momento em que alguém os realiza. Assim, qualquer que fosse o fato, você o associaria imediatamente a uma pessoa. Mas não foi o que aconteceu. Dessa maneira, só pode ter sido um pressentimento, essas coisas que parecem pairar no ar, sem que a gene saiba o porquê. E você mesmo disse: "Pressenti que um deles quer me matar..."

Timóteo concordou:

— É, só pode ter sido isso mesmo. Sugeri um fato concreto, apenas por sugerir.

— Sabe de uma coisa: talvez tenha sido esse tal de sexto sentido... ou poder de premonição.

Timóteo suspirou:

— Precisaríamos de algo mais concreto do que o abstrato poder de premonição, se quiséssemos provar alguma coisa. E o que você acha que devo fazer?

— Você deve compreender que sou apenas um médico. Receitar algo para se evitar um assassinato não me foi ensinado na faculdade.

Timóteo Arautra contorceu os lábios, tamborilando nos joelhos.

Alender olhou bem para ele:

"Mas afinal, Dr. Alender, o que é que o senhor pensa estar fazendo? Você é ou não é o médico particular desse homem? Não lhe compete tranquilizá-lo? O que diria Hipócrates se o visse dizendo a um homem cardíaco, com úlcera crônica, quase caduco, que não pode receitar nada contra um assassinato? Ah, tenha a santa paciência"!

— Escute bem: você deve esquecer isso. Tudo não passou de uma bobagem. Teus filhos te adoram. Vamos! Bola pra frente! E além do mais, amanhã você tem consulta comigo e não pode morrer: é o cliente que me dá mais lucro!

Os dois riram. Alender continuou:

— Procure tomar os remédios direitinho, é o que você deve fazer.

Falava como se o fizesse a uma criança. Arautra sentiu-se reconfortado. Sorriu com o gracejo:

— Obrigado, meu grande amigo, foi tudo uma tolice. E pensar que tomei seu tempo à toa...

— Quem tem um amigo não deve se importar com o tempo que leve para ajudá-lo.

Apertaram-se as mãos. Alender retirou-se.

Caminhava distraído pela rua:

"Que coisa mais estranha. Esperava tudo, menos um assassinato. Realmente, Timóteo está cada vez mais criativo".

Uma brecada brusca o tirou do transe:

— Quer morrer, seu filho da puta?

Quando deu por si, encontrava-se estático no meio da rua. Um carro parara a meio metro dele.

Pensou em responder, mas olhou bem o brutamontes sentado ao volante. Certamente apanharia.

— Obrigado por não ter me matado.

Ah, vai te catar! 

E arrancou com violência.

Alender entrou no carro pensando como pessoas desligadas como ele não morriam.

"Só pode ser o anjo da guarda."
----------
¹ Texto original:
     "O nome Arautra, caso não fosse conhecido, não deixava de ser conceituado. Era, sem dúvida, um nome brasileiro. E Timóteo Arautra gabava-se de sua raridade:"

² Texto original:
     "É claro que poderia estar redondamente enganado, mas nunca cogitaria tal possibilidade.
     'Timóteo Arautra nunca soubera exatamente quem haviam sido seus bisavós e tataravós. Conheceu os avós, mas quase nem se recordava deles. Tornara-se tudo muito vago em sua mente cansada, exaurida pelos 84 anos de vida.
     'De uma coisa, pelo menos, ele tinha plena certeza: as raízes da família Arautra encontravam-se na cidade de São Paulo. Também era de seu conhecimento que ela nunca fora numerosa e que não havia ramificações em nenhuma outra cidade, Estado ou País."

³ Texto original: "(...) por volta de 1923."

 Texto original:
     "Um grande advogado! Vaidoso, egoísta, muito comedido em relação ao dinheiro. Se pudesse dar um calote, dava! Se pudesse pechinchar, não deixava por menos!"

⁵ Texto original:
     "Ernesto percebeu que seu diagnóstico de idiossincrático deveria passar para debilitado mental."

Texto original:
     "Ah, vá pra puta-que-o-pariu."







Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top