✧ Ailton ✧
Ailton Arautra estava nervoso.
Beijou a esposa, cumprimentou os dois filhos com olá destituído de qualquer afeição e estatelou-se no sofá.
— Que dia! Aconteceu o diabo naquele escritório. Imagina você que um dos assistentes derramou um vidro de álcool bem em cima do processo que estávamos datilografando. Foi um deus-nos-acuda dos diabos! Ah, como seria bom ter meu próprio negócio. O Jofre e o Abílio é que são felizes, trabalham para si. E não sei por que eu e o Abílio fomos por esse caminho. Quer dizer, eu sei, sim. Pressão do velho, claro, que seguiu a profissão do pai e depois quis que todos os filhos homens fizessem o mesmo. O Tiago não aguentou, é claro, e desistiu (e agora se afundando na bebida de vez). E até concordo, esse negócio de ser escrevente no fórum não tá com nada mesmo, só que para eu fugir desse troço preciso logo me formar advogado, senão vou acabar mais um oficial de justiça na família. Santo Deus!, por falar em Tiago, passei na casa dele. Tava num fogo só, não se aguentava em pé. É um caso perdido...¹
Catarina explodiu:
— Ô home, quer calar essa boca! Tá parecendo um disco riscado. Deus me livre!
Catarina tirou as meias e os sapatos do marido. Ele estranhou a gentileza, depois do fuzilamento.
Sua beleza era comum. Não tinha nada de especial. Os cabelos pretos já um pouco grisalhos; um rosto meio quadrado, mas um sorriso cativante. Falava rápido e arrastado. Julgava-se uma grande mulher, dessas que nada temem.
Sempre dizia que Ailton se restabelecera porque ela se empenhara nisso. O que, afinal, não deixava de ser verdade.
Catarina fora fundamental na vida de Ailton, que na verdade, não parara de beber, mas estudava estudara e tinha agora uma posição de respeito perante a sociedade e a família.
Ailton levara uma vida errante. Bebera muito ao lado de Tiago; começou a trabalhar com quase vinte anos; e só foi estudar pra valer depois do casamento, com o apoio da esposa. Estudava Direito.²
Ailton era bem mais dominado pela mulher do que Abílio. Ilda, pelos interesses do marido, trabalhava com sutileza. Catarina não. Botava a boca no trombone, se fosse preciso. Houve época em que ia buscá-lo no bar com uma cinta.
— Você andou bebendo? Também, pudera, foi visitar o irmãozinho. Os dois caíram no gargalo. São da mesma laia, mesmo. Êta familiazinha complicada, essa dos Arautra. Se Sofia tivesse dado duro com o Tiago, ele não tava nessa situação. Devia ter feito como eu. Tá pra chegar o dia em que vou ter medo de um bunda-mole que nem você.
Ailton já estava acostumado com aquela ladainha. Essa era a tática de Catarina: desprezá-lo para que ele se esforçasse em mostrar o contrário.
— Você fala demais. Queria ver você endireitar o Tiago.
— E não? Ele que levantasse a voz pra mim que eu lhe sentava a mão na orelha.
Ailton riu. O sorriso era o mesmo de Abílio. Os dois tinham o mesmo formato de rosto, a mesma altura, só que totalmente diferentes em questão de personalidade. Ailton não tinha nem um pouco da seriedade do irmão. Era um relaxado, na acepção da palavra.
Ailton voltou-se para a filha:
— Por isso eu te digo, minha filha: escolha bem seu marido.
Rita deu de ombros:
— E quem disse que vou me casar? Nem sou louca!
Rita possuía os traços da mãe. Muito alegre e descontraída. E faladora também.
Havia largado os estudos e não pretendia voltar tão cedo.
Rogério, pelo contrário, prestara vestibular para ingressar na área de Educação Física e passara. As aulas começariam em março.
— Seria bom se papai tivesse emprestado aquele dinheiro que pedi. Seria ótimo ter meu próprio negócio.
Catarina replicou:
— Se forme primeiro, mas seu pai nunca lhe daria um tostão e você sabe muito bem disso.
Uma expressão de indignação estampou-se no rosto dele:
— Onde já se viu pedir um fiador para emprestar dinheiro para o próprio filho!
— Só na cabeça dele mesmo!
Ela sentou-se ao lado dele:
— Não se preocupe. Ele não vai longe mesmo...
— O que você quer dizer com isso?
Ailton captou no seu olhar um brilho estranho.
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¹ Texto original: "— Que dia! Aconteceu o diabo naquele laboratório. Imagina você que um dos assistentes derramou um vidro de ácido clorídrico sobre si. Foi um deus-nos-acuda dos diabos! Ah, como seria bom ter meu próprio negócio. O Jofre e o Abílio é que são felizes. Trabalham para si. Não têm que prestar satisfações para patrões chatos e capitalistas, que nem sabem o que significa NACL. Santo Deus! Passei na casa do Tiago. Tava num fogo só, não se aguentava em pé. É um caso perdido..."
² Texto original: "Se formara Químico de nível superior."
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