✧ Abílio ✧

Abílio Arautra era o segundo filho de Timóteo Arautra. Cinquenta e oito anos de idade, dois a menos que Anita, não era muito ais alto que a irmã. Os cabelos ainda se mantinham pretos, mas as reentrâncias da calvície já estavam bem adiantadas. Ele tentava dissimular, trançando os fios, mas não obtinha muito sucesso.

Se não tinha sucesso com os cabelos, suas frustrações estendiam-se também para o campo profissional. Pressionado pela família a seguir a mesma carreira do pai, houve época em que a dúvida pairara em sua mente: ser oficial de justiça ou pintor? Sim, um artista! Telas magníficas na juventude impressionaram muitos mestres. Entrara, certa vez, numa escola e em menos de dois meses, já ajudava o mestre a ensinar.¹

Abílio era um pouco parecido com o pai. Ambos eram homens vaidosos, procurando sempre se impor aos outros. E realmente conseguiam.

Ilda Pinhal Arautra, sua esposa, tinha um certo domínio sobre o marido. Não era de falar muito, mas sempre agia na hora certa. E o amava muito; e por ele faria qualquer coisa.

Baixa, de cabelos loiros e olhos castanhos claros. Apesar dos cinquenta anos — que procurava esconder — estava bem conservada. Tinha um rostinho delicado e uma voz fina, muito meiga.

— Chegou cedo em casa, amor.

Abílio beijou a esposa, que brincava com o neto.

— Que coisinha mais lindo do vovô.

Camilo chorou.

— Por que esse garoto me estranha tanto?

— Ora, Roseli e Caio quase não o trazem aqui.

Caio era o filho de Abílio. Quase formado em Direito.² E  Roseli Lins era um moça muito delicada; constantemente doente; quase morrera no parto. Mas em compensação, Camilo possuía uma saúde de ferro.

O casamento fora realizado às pressas, já que Caio a engravidara antes do enlace.

— Parece que as pessoas não procuram mais os advogados particulares. Se podem arrumar um do Estado, por que iriam querer os particulares? Não sei como vai ser, o Caio nessa profissão.

Ilda retrucou:

— Mas querido, os clientes dele vão ser da classe rica, afinal, ele vai ser um advogado da elite. Os ricos estão procurando advogados do Estado? ³

— Você está particularizando a questão. Eu não falava do caso dele. Generalizava a situação. Os advogados que atendem mais à classe média estão perdendo a vez.

— Então que se tornem advogados do Estado.

Abílio sorriu da facilidade com que Ilda resolvia os problemas.

— O problema talvez seja que não haja dinheiro para os honorários. A classe média vem sendo achatada por esses desgovernos.

Abílio tirou os sapatos e as meias, e colocou os pés no almofadão:

— Eu sempre digo ao Caio que não seja a sombra do pai da Roseli. Que tenha independência e estilo próprio. Mas, com o tempo, é natural que encontre seu próprio caminho. A sociedade e seus padrões, bem como as leis, mudam muito e isso nos força a reformular nossos conceitos; o que nos dificulta a ação. Caio já faz parte deste mundo novo e será o advogado do futuro, quando o pai da Roseli já estará ultrapassado. As próprias necessidades da sociedade o farão encontrar seu próprio estilo. É o que espero, mesmo o pai da Rô tendo sido um verdadeiro mito na advocacia em São Paulo.

Como Ilda adorava o marido! Por mais que ele se considerasse ultrapassado, ela nunca o veria dessa maneira. Para ela, ele sempre seria atual.

— Seu pai esteve aqui hoje.

Era como se anunciasse a morte de dois assaltantes.

— Ah, é?

— Sim, e estava preocupado. Não me disse qual era o problema. Anita disse que ele anda muito estranho, mas não sabe o que está acontecendo.

— Anita estava com ele?

— Estava. Tinham ido ao consultório do Dr. Alender.

Abílio dirigiu-se à escada:

— E o que o médico falou?

— Que, aparentemente, seu pai está bem. Pulsação e pressão normais. Os resultados dos exames feitos na semana passada também não revelaram nada.

— Ainda bem. Mesmo assim, ele está preocupado. Com o quê? E ele fez alguma fofoca de Anita e Roberto?

Ilda acariciou a cabecinha loira do bebê, que tentava morder a gola de sua camisa:

— Por que é que você implica tanto com ele?

— É que papai anda com certas manias que me deixam nervoso. Se vem aqui, fala mal de Anita. E quando volta pra casa dela, fala mal de nós. O mesmo acontece na casa de Ailton.

— Coisa de velho, querido.

Olhou complacente para ele. Sua voz meiga o cativou:

— Tome um banho. Relaxe um pouco. Temos batata frita pro jantar...

— Oba! Espere que eu venho já já!

Ilda balançou a cabeça, rindo sozinha. Abílio parecia uma criança e isso  era a mostra da simplicidade que habitava naquele homem importante.

Caio e Roseli entraram na sala. Ilda olhou para a esposa do filho. No início, tivera certas prevenções contra ela. Ainda mais quando sua gravidez antecipada fora descoberta. "Que indecência", dissera a Abílio. "Onde já se viu ir ao altar grávida"?

"Querida, não sejamos tão radicais. Não esqueçamos que Caio também errou".

"As mulheres conseguem virar a cabeça dos homens..."

"Sabe, eu sempre quis que você tivesse virado a minha..."

E acabou concordando e aceitando a situação. E agora começava a gostar dela. Era uma moça que vinha de família de pais separados e que precisava de muito carinho, ainda mais por sua fragilidade física.

— Mamãe, papai já chegou?

— Já. Está tomando banho.

O garoto começou a chorar. Roseli foi até a sogra:

— Acho que Camilo quer mamar...

— É mesmo. Já está na hora. Camilo, vá com a mamãe.

O sorriso de Camilo parecia dizer: "Até que enfim".

Ficaram os três no sofá, esperando por Abílio, para jantar.
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¹Texto original:
     "Se não tinha sucesso com os cabelos, não se poderia dizer o mesmo do aspecto profissional. Abílio era um dos melhores advogados de São Paulo e administrava a firma de advogados 'Arautra Advogados', fundada por ele mesmo. Se resolvera optar pela advocacia, o fizera mais por estar impressionado com a carreira do pai, pois houve época em que dúvida pairara em sua mente. Ser advogado ou pintor? Sim, pintor. Telas magníficas na juventude impressionaram muitos mestres. Entrara, certa vez, numa escola de pintura. Em menos de dois meses de aula, já ajudava o mestre a ensinar."
      'Mas as atuações do pai o impressionavam tanto que não teve dúvidas. E, além do mais, na advocacia encontrou uma arte fabulosa: a de defender uma causa, algo semelhante a pintar a verdade em cores claras e objetivas, mesmo sendo a paisagem, por vezes, obscurecida."

² Texto eliminado: "(...) já ingressara na firma do pai."

³ Texto original:
     "— Mas querido, seus clientes sempre foram da classe rica, afinal, você é um advogado da elite. Os ricos estão procurando advogados do Estado?"

Texto original:
     "— Posso ter talento, mas se sou um advogado da elite, devo isso ao nome do meu pai.
     '— Nunca diga isso! Você tem fama, porque 'tem talento', e não porque seu pai foi um grande advogado. Você venceu devido à sua força de vontade, dedicação e altruísmo.
     '— Mas que o nome do meu pai tem força, isso lá tem. 'Você não é o filho do Arautra? Seu pai foi o melhor. Que explanações! Que clareza, firmeza e objetividade'! E coisas assim.
     '— Pense que um dia falarão a Caio o mesmo a seu respeito."

Texto original: "— Eu sempre digo a Caio que não seja a sombra do pai e do avô. Que tenha independência e estilo próprio, embora eu deva admitir que, assim como me espelhei em papai, no início, ele deve proceder da mesma maneira."

Texto original: "(...) quando eu e papai já estaremos ultrapassados."

⁷ Texto original: "Um advogado da elite que adorava batatinha frita."


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