A Moeda Mágica - Capítulo único


Havia uma bifurcação no meio do caminho. O velho druida parou de frente a placa de madeira no meio das duas estradas e coçou sua longa barba branca. Cellen à esquerda e Vintas à direita, mostrava a placa.

O druida vasculhou os bolsos de suas vestes de druida e de um deles retirou uma moeda acobreada. Jogou-a para cima e a catou com destreza, levando-a direto as costas da mão. Retirou a outra mão de cima revelando o desenho de uma coroa. Virou para a direita e seguiu.

Meia-hora depois chegou à Vintas. Diferente do que pensava, não era uma cidade, mas uma pequena vila com meia dúzia de casas. Logo ali perto havia uma taverna e o velho druida caminhou direto para lá.

Nas sombras de um beco escuro, duas figuras encapuzadas observavam o forasteiro que acabara de chegar. Uma delas ameaçou se aproximar, mas a outra a segurou, fazendo sinal para esperar.

Enquanto isso o druida se aproximou da porta da taverna e a abriu com um movimento rápido, acertando um garçom do outro lado e fazendo-o derrubar a sopa que servia em um cliente.

− Ei garçom – o cliente elfo começou a falar –, você está vendo algo de errado aqui, além do fato de minha cara estar coberta de sopa?

− Além disso, não senhor – o garçom disse.

− Eu não estou gritando de dor, esse é o problema!

− Não estou entendendo.

− A sopa está fria, seu desgraçado! – Lambeu os beiços. – E está sem sal!

Enquanto o cliente e o garçom discutiam o druida pensou em se aproximar, assumir a culpa e pagar por tudo. Depois riu da sua própria piada e saiu de fininho. Andou até o balcão e sentou-se. Depois chamou o taverneiro, que não estava ciente da confusão.

− Espero que o serviço aqui seja melhor que isso – o druida disse apontando para o elfo que sacara uma espada e agora golpeava o garçom, que se defendia com a bandeja.

− Uma taverna sem uma briguinha aqui e ali não é uma taverna de verdade. O que vai ser? – o homem gordo perguntou dando uma cusparada numa caneca de barro, limpando com um pano sujo e colocando-a em frente ao druida.

− Para começar, outra caneca.

O taverneiro o ignorou, olhando ao invés disso para o garçom que agora golpeava violentamente a cara do elfo com uma colher de chá.

O druida continuou:

− E também quero um almoço... – Abriu um largo sorriso. – De graça!

O homem atrás do balcão estreitou os olhos e encarou o druida como se este estivesse tirando uma com sua cara.

− Você tá tirando uma com minha cara? – perguntou o taverneiro.

− Mas é claro que não, meu caro. Eu só não tenho um tostão. Mas mesmo que eu não possa te pagar em dinheiro, posso providenciar outra coisa. Uma coisa melhor que dinheiro.

− Ouro? – Os olhos do taverneiro brilharam.

− Não – respondeu o druida.

− Joias? – Os olhos do taverneiro cintilaram.

− Não – disse o druida.

− Amor verdadeiro? – Os olhos do taverneiro realizaram uma ação sinônima de brilhar ou cintilar.

− Não. Uma adivinhação – o druida finalmente respondeu.

− Uma adivinhação?

− Uma adivinhação – afirmou o velho. – Olha... Eu não costumo contar isso pra ninguém... É o meu maior segredo, mas é uma emergência. Uma questão de vida ou morte.

O taverneiro se inclinou sobre o balcão curioso.

− E qual é essa emergência? – sussurrou.

− Eu estou com fome – o druida disse.

− Ora! – exclamou o taverneiro. – Eu pensei que era algo importante.

− Mas é importante! – o druida retrucou. – Eu não como faz duas horas!

O homem revirou os olhos e perguntou impaciente:

− Você vai contar seu segredo ou não?

O druida apenas retirou a moeda do bolso e colocou sobre a mesa. O taverneiro a pegou e observou. Uma moeda de cobre com uma coroa desenhada de um lado e uma cara do outro.

− Bem, isso dá um novo significado a jogar cara-ou-coroa, mas ainda não paga seu almoço – disse, lhe devolvendo a moeda.

− Não, homem! Isso é o que eu uso para adivinhar. É uma moeda mágica. O modo como é feita é tão complicado que ela é um dos objetos mágicos mais raros existentes neste mundo.

O taverneiro se interessou com essa afirmação.

− E como são feitas?

− Bem – começou o druida –, o bronze deve provir de uma espada recentemente usada para matar um troll mágico das cavernas. Logo depois, você deve levar a espada ainda embebida em sangue para um ferreiro divino. Conhece Hefesto, o deus-da-forja?

− Sim.

− Então, o primo dele. O Zé.

− Zé?

− Sim, o Hefesto se acha bom demais pra forjar moedas – o druida explicou e depois continuou. – Depois da moeda forjada, você deve levá-la a uma bruxa, mas não uma bruxa qualquer. Ela deve ser nascida no mês de maio, com signo de Touro e ascendente em Libra. E ela deve desenhar as faces da moeda, tornando-a assim mágica.

O taverneiro não sabia se duvidava mais da moeda ser mágica ou do modo como ela era feita e apenas disse:

− Não parece ser tão complexo assim.

− N-não p-p-parece... – o druida gaguejou incrédulo. – Meu caro senhor, eu até entendo que matar um troll mágico das cavernas com uma espada de cobre não é muito difícil. E Deus sabe quão fácil é conseguir um horário com o Zé. Coitado dele, os negócios já são difíceis com essa crise... – disse pensativo e logo retomou o assunto. – Mas você sabe o quão difícil é achar uma bruxa nascida no mês de maio, com signo de Touro e ascendente em Libra?

− Não.

− É difícil pra cacete! E além disso−

− Tudo bem – interrompeu o taverneiro impaciente. – Eu acredito. Só para de falar e adivinha isso logo.

− Ótimo! – o velho falou enquanto rolava a moeda entre os dedos. – Agora... Você já esteve num dilema? Teve de tomar uma decisão e simplesmente não sabia qual escolher?

− Sim – o taverneiro disse entusiasmado –, ano passado mesmo. Eu queria pintar a fachada da minha taverna, mas eu não sabia qual cor escolher: rosa-floral ou verde-menta. E as coisas só pioraram quando as pessoas começaram a me chamar de mulherzinha porque fiquei indeciso...

− Bem, você mereceu.

− O que disse?! – exclamou o homem.

− Nada, nada – o druida disfarçou. – Eu quis dizer algo mais importante que isso. Um dilema que atualmente você esteja enfrentando.

− Vejamos... – pensou o taverneiro. – Ontem eu fiquei indeciso se começava a colocar água na cerveja.

− Não faça isso, por favor – pediu o velho druida.

− Ah! Já sei! Minha filha recebeu uma proposta de casamento de dois nobres de Cellen, e eu não sei qual escolher.

− E isso vem depois da cor-da-tinta e da cerveja aguada?! – O druida não podia acreditar. – Muito bem, isso serve. Como eles são?

− Bem, um deles é estupidamente rico e o outro é podre de rico.

O druida coçou a barba pensativo.

− E você está tendo problema para escolher? – perguntou.

− Só porque eles são ricos não significa que minha filha vai ser feliz! – o homem gritou enciumado.

− Tá certo, tá certo. Você quer o melhor pra sua filha. Muito bem, eu jogo a moeda, ela diz qual o nobre certo a desposar sua garota e você me dá um almoço. E nada de cerveja aguada. Fechado?

− Fechado.

− Mas espere! – o druida advertiu num tom sério. – Há algo que preciso explicar. Se eu jogar a moeda e ela indicar uma coisa e você escolher outra, consequências terríveis irão recair sobre você. Isso já aconteceu comigo e eu quase morri.

O homem engoliu em seco e perguntou:

− O que aconteceu?

− Um belo dia estava eu numa bifurcação na estrada – o velho começou a narrar numa voz austera. – De um lado havia uma bela campina e do outro um bosque sombrio e nebuloso. Eu joguei a moeda e ela apontou para o bosque. Eu a mandei pra puta-que-a-pariu e segui pela campina. Dois minutos depois um enorme dragão pousou em minha frente. Ele urrou e cuspiu um fogo azul sobrenatural. Para desviar da morte certa eu saltei para o lado, rolando em um campo florido e quase morri de espirrar, pois sou alérgico a pólen.

− E o dragão?

− Ah, ele foi embora. Na verdade ele também estava espirrando. Alergia a pólen é muito comum.

− Sei... – O taverneiro não sabia bem o que dizer.

− Mas você entendeu, certo?

− Sim, eu vou escolher o que sair na moeda.

Vinte minutos depois o druida saiu da taverna de barriga cheia e satisfeito por fazer a filha do taverneiro se casar com um nobre podre de rico e não um estupidamente rico. Entretanto algo ainda o perturbava.

O velho possuía aquela moeda há anos e ela nunca o decepcionara (ele estava bem ciente que o episódio com o dragão e o pólen fora culpa dele). Um almoço grátis é muito bom, mas isso nem chegava perto do que já havia ganhado usando a moeda. Será que ele fora mandado para aquela vila só por isso?

Sua resposta chegou na forma de duas figuras encapuzadas que o agarraram e o levaram para um beco escuro. Uma delas sacou uma faca e encostou em seu pescoço.

− Isso é um assalto, velhote. Passe tudo que tiver aí – uma voz masculina grossa ordenou.

− O que você quer dizer com tudo? – o druida perguntou. – Tudo, tudo?

− Sim, tudo! – gritou a voz.

− Até minhas roupas?

− Bem, não...

− Minhas botas e meias?

− Nem tanto assim...

− Até... – o druida fez uma voz meiga ao colocar um dedo na boca – minha virtude?

− Ah, não! Não! Não! Não! Isso nunca! – o homem de capuz gritou com asco.

− Eu aceito a virtude dele – a segunda figura encapuzada falou.

− Cala boca, Fred! – gritou a primeira. – Já conversamos sobre isso!

− Mas...

− Calado! – O homem voltou-se para o velho. – Quando eu disse tudo, eu quis dizer tudo de valor. Ouro, joias, amor verdadeiro...

− Ah, entendi – fez o druida. – Não tenho nada disso.

− Como assim? Não tem dinheiro?

− Nem um tostão.

− E agora, Marc? – a segunda voz perguntou. – Posso ficar com a virtude dele?

− Cala boca, Fred! – Marc tirou o capuz impaciente. Ele era um humano feio e barbudo. Fred o imitou, revelando o rosto de um ogro-anão vesgo. – Olha só, velhote, você está complicando a situação. Estamos tentando te roubar na honestidade e você não está contribuindo.

− Sua mãe não te ensinou que era feio roubar? – perguntou o druida.

− Minha mãe me ensinou a roubar.

− Puxa vida! – o velho se surpreendeu.

− Sim... – continuou Marc. – Meu primeiro delito foi roubar o doce de uma criança.

− Isso não é tão difícil.

− Eu tinha dois meses de idade.

− Ah... – o velho tentou pensar em algo mais. – Bem, mas suas mães não te ensinaram a nunca roubar um druida? Dá muito azar, sabia?

− Minha mãe nunca me disse isso. – Marc sorriu.

− Sua mãe não gostava muito de você, não é?

− Ela... – Marc pausou segurando o choro. – Cala a boca!

− Ah, ah! – exclamou Fred. – Minha mãe também nunca disse isso e ela sempre me disse que me amava muito.

− Era mentira – o druida disse resoluto.

− O que?! – Fred começou a chorar. – Mamãe!

− Cala boca, Fred! – Marc gritou limpando as lágrimas. – Vamos matar esse desgraçado e ir embora. – Ele levantou a faca.

− Olha – começou o velho –, matar druidas dá sete anos de azar.

− Pensei que fosse quebrar espelhos – Fred disse entre o choro.

− Ah Deus! – exclamou o druida. – Espero que não. Semana passada quebrei dois.

− Parem com isso! – gritou Marc. – Olha só, velhote, você está complicando a situação. Estamos tentando te matar na honestidade e você não está contribuindo.

− Muito bem, vamos fazer o seguinte... – O druida tirou a moeda do bolso e começou a girá-la entres os dedos. – Vamos apostar. Cara ou coroa. Se eu vencer, eu levo tudo que vocês tiverem: ouro, joias, amor verdadeiro...

− E se você perder? – Marc perguntou.

− Eu serei seu escravo pelo resto de minha vida.

− Isso não é muita coisa.

− Ora! Como ousa! – exclamou o druida ofendido. – Se eu parar de beber, começar a comer verduras e me exercitar... – Ele pensou no que estava dizendo. – É, você tem razão. Não vou durar muito tempo. Mas é melhor que me matar e não levar nada.

− É verdade – Marc admitiu. – Mas eu escolho a face.

− Muito bem – disse o druida, ciente de que sua moeda nunca o trairia.

− Cara – disse o homem.

− Que foi? – perguntou Fred.

− Cala boca, Fred! Eu estou falando da moeda.

− Ah...

− Muito bem – disse o druida. – Então se cair cara, você ganha. Coroa, eu ganho.

− Espera um minuto – interrompeu Fred. – E como eu ganho?

− Se não sair nenhum dos dois – o druida explicou.

− Ah sim. – O ogro sorriu.

O druida jogou a moeda. Ela girou no ar e caiu em sua mão revelando o desenho de uma coroa.

− Estamos jogando melhor de três – Marc corrigiu a tempo.

− Sim, claro – o druida jogou de novo.

Coroa.

− Melhor de cinco – Marc insistiu.

Coroa.

− Melhor de sete!

Coroa.

− Diabos! – o homem praguejou.

− Tudo bem, Marc – consolou Fred. – Eu também não ganhei nenhuma vez.

− Esta moeda está viciada! – Marc gritou. – Agora quero coroa! Melhor de nove!

O druida jogou e não é novidade dizer que o resultado foi cara.

− Melhor de... de...

− Onze? – o velho perguntou.

− Isso.

Cara.

− Diabos! – o homem praguejou novamente.

Isso continuou por um tempo até o druida se cansar e dizer que não sabia o que vinha depois de uma melhor de 49. Os dois ladrões desistiram e tentaram fugir, mas o velho lhes explicou o que acontecia com quem não pagava a aposta de um druida e mais uma vez aproveitou para lhes lembrar de que suas mães não os amavam.

No final o velho caminhou para fora da vila com ouro e joias, mas nada de amor verdadeiro. Finalmente entendera porque fora guiado até ali. Deu um beijo na moeda de cobre, que corou com um pouco de vergonha, e a guardou no bolso.

Andou por quase uma hora até chegar a uma nova bifurcação. De um lado havia uma linda campina. Do outro um bosque sombrio e nebuloso. O druida jogou a moeda que lhe mandou seguir para o bosque. Ele não hesitou nem por um segundo para obedecê-la.

Ao caminhar para o meio das árvores sombrias e suspeitas o velho suspirou de satisfação. Estava de barriga cheia, tinha dinheiro e uma moeda mágica que não lhe falhava. A vida era boa.

Na campina ali perto um dragão espirrava fogo azul, alérgico ao pólen das flores.


Fim


* * *


Gostou da história? Se sim, aposto que também vai gostar do meu outro conto "Fada e as Traças Mágicas". Há um easter egg especial nele para quem leu "A Moeda Mágica".

Por favor vote e deixe seu comentário para ajudar. Se quiser receber atualizações dos meus próximos contos não se esqueça de me seguir. Obrigado.  


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