XIV.




“Não está me reconhecendo? Vamos, Timmy, eu nem mudei tanto assim.”

   Tim sabia quem era, mas mesmo assim não conseguia acreditar. Falar que não havia mudado tanto era modéstia.

   Ainda tinha o mesmo timbre de voz, o mesmo cabelo loiro penteado para um lado só, mas agora era Tim que o via de cima, pois seu tamanho também não havia mudado.

   Ele ainda era o mesmo garoto de que se lembrava.

   “Damien,” Ele falou em voz alta, nunca achou que falaria aquele nome em voz alta de novo. “Mas como… então você é…”

   “Você já sabe, não é? Sabe que consegue ver os mortos?” Tim somente balançou a cabeça em resposta, ainda em choque com o que via. “Eu sabia que uma hora iria descobrir por conta própria.”

   “Há quanto tempo... você sabe, quanto tempo está morto?”

   “Muito tempo.” Damien deu uns passos para se aproximar dele. “Eu já havia morrido muito antes de você me conhecer.”

   Tim baixou os olhos para o chão. Era tão… desconfortável olhar para ele, era como se ele tivesse sido transportado para os seus oito anos de idade; mas agora, sentia que a voz de Damien tinha um tom mais maduro, parecia que ele era um adulto preso no corpo de uma criança, mas ao mesmo tempo, ainda mantinha uma certa inocência.

   “Eu estava ouvindo você,” Damien continuou. “Lá atrás, você estava chamando seus pais.”

   “Queria saber se eles ainda estavam aqui. Não sei se você se lembra, mas eles morreram no incêndio que aconteceu aqui cinco anos atrás,” respondeu, se lembrava agora do porquê havia ficado com raiva dele naquele dia.

   “Eu tentei ajudar, eu juro,” disse ele, olhando em seus olhos Tim conseguia ver culpa neles. “Eu estava lá, entrei na sua casa para tentar tirar seus pais.”

   “M-mas como? Achei que fantasmas não conseguiam sair do lugar onde morreram.”

   “Como sabe disso?”

   “Eu… bom, digamos que você não é o único amigo fantasma que eu já fiz,” revelou. Damien se mostrou satisfeito com a resposta.

   “Há muitas coisas sobre fantasmas que você não sabe ainda, Timmy,” contou ele.

    “Por que nunca me contou? Eu poderia ter sabido de tudo isso muito antes, por que não me disse já naquela época?

   “Você tinha oito anos, não queria que tivesse medo de mim,” explicou, e por mais que Tim quisesse ficar bravo por causa disso, sabia que não havia um cenário em que ele, sendo tão pequeno, não se assustasse com a revelação. Mesmo cinco anos depois, todas essas descobertas ainda conseguiam fazê-lo não dormir à noite.

   “E como foi?” Tim resolveu voltar ao assunto. “O que aconteceu no incêndio?”

   “Seus pais se assustaram comigo no começo, mas disse que não tinha muito para explicar. Sua mãe estava muito machucada, seu pai insistiu em carregá-la desacordada, mesmo comigo dizendo que era melhor que ele se salvasse” ele baixou a cabeça, desapontado. “Não consegui salvar nenhum dos dois, me desculpe.”

   “E por que você não voltou? Eu estava lá fora sozinho, você devia ter ido até lá!” Tim esbravejou, seu coração descompassado no peito. “Devia ter tentado mais, devia…”

   “Ei, Timmy, me escuta!” Damien o pegou pelo ombro, fazendo Tim se recompor. “Isso já faz anos, não tem como eu trazer eles de volta, não tem como você trazer eles de volta…” ele se afastou novamente. “Me perdoa, tá legal? Eu não consegui, mas você tem que deixar isso no passado!”

   “Eu sei, eu quero deixar, mas eu só queria uma última oportunidade para eu me despedir deles, entende? Só pra eu conseguir esquecer isso de uma vez.”

   Damien pensou por um instante, depois sorriu para ele, tinha acabado de ter uma ideia.

   “Acho que isso ainda é possível fazer.”

   Tim limpou uma lágrima de seu olho.

   “O-o que está dizendo…”

   “Nem todos os fantasmas acabam ficando no lugar em que morreram.” Damien o interrompeu. “Eles não ficaram presos aqui, por isso você não os encontrou. Eles estão em outro lugar agora, mas você ainda pode vê-los.”

   “Como?”

   “Vem comigo.”

   Damian o pegou pelo braço e o levou de volta pelo caminho que ele havia feito. Tim achou que voltariam para a casa, mas ele parou de andar mais rápido do que esperava, assim que chegaram de volta ao riacho.

   “Por que paramos aqui?” perguntou Tim enquanto olhava seu reflexo na água. Damien se aproximava atrás dele.

   “Porque esse riacho é o meio de se comunicar com eles” o reflexo de Damien o respondeu.

   Tim se ajoelhou na margem. Olhava confuso para a água corrente, observando seu reflexo balançando com as pequenas ondas, sendo coberto várias e várias vezes por algumas folhas que a correnteza arrastava.

   Procurou no reflexo algo que se assemelhasse ao rosto de seus pais. Será que era isso que Damien queria dizer? Ou esse riacho era algum tipo de portal?

   “Eu não estou enten-”

   “Como você vem se sentindo desde o incêndio?” Damien o interrompeu. “Você costuma pensar muito neles?”

   “Eu já havia parado de pensar há uns anos, mas depois que meu tio morreu, eu não consigo evitar.”

   “Você se sente culpado pelo que aconteceu, não é?”

   “É, mais ou menos isso. É como se…” ele desviou o olhar de Damien, envergonhado pelo que iria dizer. “como se eu soubesse que era para ser sido eu.”

   “Eu entendo isso. Você se sente sozinho, desamparado, não sente que a vida faz mais sentido, não é?” ele perguntou. Tim não entendia por que estava falando tudo aquilo, não era o que esperava ouvir nesse momento.

   “É, bom, quando você coloca dessa forma…”

   “Mas talvez não precise fazer sentido.”

   Seus olhos poderiam estar enganados, mas Tim via o rosto de Damien mudar no reflexo. Sua voz era fina como a de uma criança, mas suas sobrancelhas estavam para baixo, completamente sério.

   Tim já não estava mais com vontade nenhuma de ficar ali.

   “O q-que quer dizer?”

   “Sabe, é uma coisa que eu aprendi muito cedo. Aprendi que às vezes, o melhor remédio para curar uma vida de sofrimento…” Damien colocou a mão em sua nuca. “É acabar com ela de uma vez.”

   Antes que pudesse reagir, a mão de Damien afundou seu pescoço na água. Sua força era sobrehumana, Tim debatia as mãos para tentar empurrá-lo, ou então se agarrar em alguma coisa, mas elas só seguravam o ar. Ele tentava gritar em desespero, mas seus gritos só saiam em forma de bolhas na superfície, impossíveis de ouvir.

   Não conseguia mais segurar, logo ele não teria mais fôlego e água iria invadí-lo por completo.

   Era essa a sensação de estar morrendo?

   Quando a dor em seus pulmões já estava insuportável, Tim só conseguiu ver um clarão que vinha da superfície, e instantaneamenre, a pressão que Damien fazia em seu pescoço se cessou.

   “Meu Deus, você está bem? O quê estava acontecendo aqui?” Norman perguntou em espanto enquanto olhava para Tim de joelhos no chão.

   “Cadê ele? pra onde ele foi?” perguntou Tim enquanto olhava frenético para os lados.

   “Ele sumiu, desapareceu no ar.”

   Tim tossiu um pouco da água para fora.

   “Espere, você conseguiu vê-lo?” Perguntou, surpreso.

   “Por quê? Ele era um…”

   “…um fantasma. Sim, era” Tim adiantou sua fala, sua voz ainda fraca tentando se recuperar do quase afogamento. “Ele… ele estava tentando me afogar.”

   “Eu achei que você estava demorando muito e vim aqui ver porquê, foi assim que vi quando ele tentava te afogar, então eu fiz a primeira coisa que me veio à mente” explicou Norman, que deu um sorriso ao se dar conta do que havia feito. “Eu consegui, Tim, eu soltei fogo de verdade, sem espirrar dessa vez!”

   “Você chegou na hora certa, se não tivesse chegado naquele momento, eu teria morrido” Tim sorriu de volta para ele, que o ajudou a se levantar. “Obrigado.”

   “Ele foi embora? O fantasma?” Norman falava enquanto dava uma rápida examinada nos arredores. “Eu matei ele?”

   “Não acho que ele morre assim” Disse Tim, se lembrando da história que Damien lhe contou há poucos minutos sobre ele ter estado na casa na hora do incêndio, mas depois de ele ter quase o matado, não sabia se Damien sequer tenha pisado lá. “Ele deve ter só se escondido. O fogo deve ter machucado ele de alguma forma.”

   “Então vamos sair logo daqui” Norman já se prontificou a andar na frente. “Não quero correr mais nenhum risco.”

...


Embora o tempo que tenham ficado na casa parecesse ter sido uma eternidade, no fim, eles chegaram segundos antes de todos serem mandados de volta para suas salas.

   Norman estava com as calças um pouco sujas de terra, mas a cor marrom fazia a mancha ser quase que imperceptível. Já Tim tentou ao máximo secar seu cabelo antes de voltar, mas não havia como disfarçar o molhado, então ele só torceu para que ninguém comentasse. E, de fato, ninguém comentou.

   Afinal, não era como se alguém ali se importasse muito com ele.
 
   E ele não se importava com eles também.

   Ocasionalmente, no meio da aula, Tim levava a mão à nuca. Ainda doía um pouco, provavelmente deve ter ficado uma marca por baixo do cabelo. Seu coração não havia se acalmado totalmente da experiência de quase morte, já havia pensado sobre isso antes, mas depois de hoje, ele tinha certeza de que afogamento não era um dos jeitos que queria morrer.

   Ele ainda não entendia como Norman o salvou. Como é possível que ele tenha visto Damien? Não havia dúvidas de que ele era um fantasma; se Norman não conseguia ver Eliza, ele não deveria ter visto Damien.

   Pelo menos Damien havia falado a verdade sobre uma coisa: realmente havia muito sobre fantasmas que Tim não sabia ainda.

   O dia de calor culminou em uma chuva forte no final da tarde, fazendo com que suas idas para o jardim depois da lição de casa ficasse fora de cogitação. Tim então se contentou em ficar na sala de brinquedos com as outras crianças, brincava de serpentes e escadas com Norman enquanto de vez ou outra encarava a janela, na esperança de que a chuva parasse antes que escurecesse de vez.

   Mas o sol se foi muito rápido, e a chuva persistiu. Até que, na hora em que foram dormir, somente alguns pingos de chuva ainda insistiam em cair.

   Já era a terceira vez que Tim ajustava o travesseiro, não entendia como Norman conseguia dormir tão rápido depois do que aconteceu hoje, sendo que toda vez que ele fechava os olhos, a imagem do fundo do riacho vinha de novo em sua mente, ele  respirava mais forte só para lembrar a si mesmo de que podia

   Aquilo já foi, você está bem agora.

   “Tim” ele ouviu uma voz baixa o chamar. “Tim.”

   Ele deixou de olhar para a parede para olhar para Eliza, parada em frente a sua cama.

   “Estava acordado?” Perguntou ela.

   “Eu não durmo tão rápido assim” Tim falou cochichando.

   “Desculpe, eu só estava curiosa em saber e não queria esperar até amanhã para conversar com você” disse ela. Era bom saber que ela compartilhava do mesmo sentimento. “Como foi lá hoje? Conseguiu ver seus pais?”

   Ah, ele ainda teria que falar sobre isso.

   “Não, não consegui” ele suspirou. “Eles não estavam lá.”

   Ele recolheu os pés para Eliza se sentar na cama.

   “Eu sinto muito.”

   Ele apertou a mão em um punho. Não dizia nada, somente encarava seu lençol revirado, sua mandíbula tensa.

   “O que foi?” Eliza percebeu sua inquietação.

   “Eu só… antes eu só estava decepcionado, mas agora só consigo sentir raiva” confessou ele, tentando conter sua voz para não soar alto. “Eu odeio o fato de ter ficado tão animado com uma coisa somente para depois saber que não seria possível.”

   “Oh, Tim…”

   “Mas eu não quero falar sobre isso agora,” ele cortou a conversa. “Tem outra coisa. Na época em que o incêndio aconteceu, eu tinha um melhor amigo, o nome dele era Damien. Nós éramos praticamente vizinhos, por isso costumávamos brincar todo dia, fiquei triste quando meus pais contaram que íamos nos mudar de lá. Hoje eu me encontrei com ele de novo.”

   “Mas… isso seria uma coisa boa, não? Encontrar seu amigo de novo depois de anos.”

   “Não se esse amigo tentar te matar”

   Eliza franziu sua sobrancelha, não estava esperando por essa resposta.

   “Como assim? Por quê?”

   “Eu não sei, não sei direito” disse ele. “, mas ele é um fantasma, disso eu tenho certeza. Ele não envelheceu nada, Eliza, continua com o mesmo rosto e tamanho de uma criança de nove anos.”

   Eliza passou uns segundos encarando o chão, pensativa, como se tentasse resolver onde encaixavam peças de um quebra-cabeça.

   “Você disse que o nome dele era qual mesmo?”

   “Damien,” ele respondeu confuso. “Isso é importante?”

   “Damien…” ela repetiu para si mesma, testando o som que o nome fazia em sua voz. “É um nome familiar.”

   “Conhece ele?”

   “Não, nunca o vi, mas acho que ouvi falar sobre ele,” contou ela. “É uma história que costumavam contar para as crianças do vilarejo. Dizem que ele foi morto pela própria mãe e que ela depois se matou, ele era um menino sozinho e agora seu fantasma passeia pela floresta procurando por outras crianças para se juntar a ele. Era o que diziam para manter as crianças longe da floresta onde os pais não as viam, tenho quase certeza que era esse o nome dele.”

   “Nunca ouvi falar sobre nada disso.”

   “Sua família é daqui?”

   “Não,” ele lembrou. “Fui criado aqui, meus pais moravam mais ao norte da Inglaterra, vieram morar aqui no final da Grande Guerra.”

   As sobrancelhas de Eliza franziram.   

   “Espere, houve uma guerra?” ela perguntou.

   “Ah, esqueci que você não sabia disso. Aconteceu há algum tempo, acabou quando eu tinha três anos, então não me lembro de nada.”

   “Bem, então isso faz sentido”, ela voltou ao assunto. “Essa é uma história meio antiga, mesmo quando eu estava viva já era antiga, não tinha como eles saberem se ainda eram novos por aqui.

   Nesse momento, Tim ouviu um som de bocejo vindo da cama à sua frente onde Edmond dormia. Por um segundo, ele achou que o menino tinha acordado, mas seus olhos ainda estavam fechados, ele só havia mudado de posição.

   “Acho melhor a gente continuar conversando amanhã,” sugeriu Eliza. “uma hora alguém vai acabar acordando.”

   “Tudo bem,” ele concordou. Embora preferisse conversar até de manhã do que tentar dormir aquela noite, não iria ser legal caso Stephen acordasse e ele tivesse que explicar mais uma vez o porquê falava sozinho, dessa vez no meio da madrugada. “Acho que é o melhor mesmo.”

   “Então boa noite, Tim.”
 
   Eliza estava se despedindo, mas ele não queria que ela fosse, não ainda. Poderia aproveitar só uns últimos segundos antes que tivesse de encarar o silêncio entediante que se precedia o sono.
  
   Se sentia confortável quando conversava com Eliza, não sabia como descrever direito, queria ter lido mais livros para conseguir encontrar palavras para descrever o que sentia, mas isso era o mais próximo do que ele sentia ser algo familiar.

   Era tão simples, tão seguro, era como estar em casa.

   Teria que pensar rápido. O que poderia dizer pra ter só mais uns segundos de conversa?

   “Espera, só…” ele a pegou pelo braço antes que ela desaparecesse. “Antes de você ir embora, só queria perguntar: Quando você não está falando comigo, o que faz o tempo todo? Onde você dorme?”

   Esse foi o máximo que conseguiu, mas parecia ter dado certo, e era uma dúvida genuína que tinha.

   Eliza riu.

   “Você é engraçado, sabia? Mesmo que não seja sua intenção.” Tim riu também para disfarçar seu nervosismo com o elogio. Ser engraçado não era algo que costumava ser dirigido a ele. “Não é nada que você já não saiba, na verdade. Eu fico no jardim o tempo todo, nunca me canso de ver as flores.”

   “Entendi,”  disse. “Mas e onde você dorme? É num caixão que nem vampiro ou…”

   “Boa noite, Tim.” 

   “É sério, queria saber... é pra fins de pesquisa,” disse ele. Eliza riu de sua fala.

   “Eu não preciso dormir se eu não quiser,” ela respondeu.

   “Tem uma menina aqui no orfanato, a Anne, ela também não precisa,” Tim se lembrou. “Eu sempre achei que isso seria como estar morto.”

   “É quase isso mesmo,” disse ela. “Pronto, já te respondi, feliz agora?”

   “Sim,” ele brincou.

   Infelizmente, não havia mais como tentar alongar a conversa.

   “Boa noite, então.”

   “Boa noite,” ele cedeu, e na fração de segundo enquanto ele se virou para deitar, ela já havia sumido.

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