XII.

“Quer que eu vá com você?” repetiu Norman, sem acreditar no que ele mesmo dizia. “Tim, isso é loucura.”

   O garoto o olhava com descrença, a mecha ruiva colada em sua testa suada. Tim já imaginava sua reação, sabia que jogar toda essa informação agora e depois pedir para que ele o acompanhasse seria muita coisa para absorver. Talvez ele só precisasse acalmá-lo, mostrar que não havia nada para se temer, mesmo nem ele sabendo se esse era o realmente o caso.

   “Eu sei, nem eu estou conseguindo acreditar em tudo.”

   “E os seus pais, eles realmente estão lá ainda? Você tem certeza disso?” perguntou ele. Tim baixou o olhar para a grama, utilizando o silêncio como resposta.

   Mas ele queria comprovar, não iria conseguir viver sabendo que existia alguma possibilidade, mesmo que mínima, de ver seus pais de novo.

   E se ele estiver enganado, se seus pais não estivessem mesmo lá, pelo menos a presença de Norman - a presença de qualquer pessoa, na verdade - o impediria de querer correr as lágrimas que certamente estariam retidas em sua garganta.

   Se contentando com a resposta vazia, Norman prosseguiu:

   “E outra coisa: como a gente iria até lá? Consigo contar nos dedos as vezes que saí desse orfanato para fazer outra coisa que não fosse ir para a escola.”

   “A gente iria de noite, tomando cuidado para não fazer nenhum barulho,” respondeu.

   “E a sua amiga fantasma, ela não poderia ir com você?” quis saber ele, tentando olhar em sua direção, mas naquele momento Eliza já havia mudado de lugar.

   “Ela não pode, ela está presa a este orfanato, não consegue sair dos limites daqui.”

   Norman levou a mão ao queixo. Tim sabia que ele queria dizer não e não o culpava por isso. O que ele havia dito antes sobre não ter medo de fantasmas pode ter sido verdade, mas ele provavelmente não tinha medo somente porque acreditava que não existiam. Talvez chamá-lo não tenha sido uma ideia tão boa, afinal.

   “Mas t-tudo bem se não quiser ir.” Ele o acalmou. “Eu não quero te...”

   “Eu vou.” Norman de repente se decidiu. “Seria bom ser útil pelo menos uma vez na vida. Mas… eu não quero ir à noite.”

   “Mas se não for de noite, quando vai ser?”

   Nessa hora, Eliza tocou em seu ombro.

  “Vocês poderiam ir no horário que estão na escola.” Sugeriu ela. “De noite seria mais seguro de ninguém ver vocês, mas ainda assim pode dar certo.”

   Tim parou para refletir sobre a ideia. Embora fosse mais fácil à noite, não era tão impossível assim ir de dia. Teria que ser em algum momento onde todos os alunos e professores estivessem distraídos, como a hora do almoço, assim conseguiriam aproveitar a oportunidade para sair.

   Os 30 minutos que tinham para almoçar talvez fossem o suficiente, o único problema era que ainda não tinha certeza do caminho a seguir para chegar da escola até sua casa, e também não fazia ideia de como passariam pelos portões da escola.

   “Eliza teve uma ideia.” Ele resolveu repassar para Norman. “há uma forma de irmos de dia.”

   “Qual?”

   “O único jeito seria enquanto estamos na escola, durante o intervalo do almoço.”

   “Eu não sei, não.” Norman mordeu o lábio. “Se algum professor pegar a gente...”

   “Você sabe de alguma forma de ultrapassar os portões da escola?” perguntou Tim.

   “Não muito bem, mas sei que tem um jeito. Outros alunos já fugiram de lá antes, só não sei como fizeram isso, deve ter alguma passagem pela cerca, eu acho.”

   “Pode ser isso mesmo.” Ele pensou em voz alta. “Amanhã a gente tem aula, podemos ver sobre isso, e então no dia seguinte a gente foge.”

   Norman soltou uma risada cômica.

   “E eu achava que você que era o certinho desse orfanato.” Disse ele. Tim não pôde evitar um sorriso.

   “Mas então, o que acha?”

   Ele hesitou por um instante, mas sorriu.

   “Com alguém inteligente como você orquestrando o plano, não vejo como poderia dar errado.”

...


O tempo estava um pouco encoberto quando foram para a escola no dia seguinte, mas para o gosto de Tim e Norman, não caiu um pingo de chuva apesar de tantas nuvens.

   Eles ficaram o intervalo todo do lado de fora, vasculhando pelas laterais da cerca para ver se havia alguma passagem, até que, depois de uns minutos procurando, acharam uma perto do chão. Folhas e galhos haviam sido cuidadosamente postos ali como que para camuflar a fenda, eles nem teriam notado se não fosse Norman, que sem querer tropeçou ali.

   O arame estava quebrado e fazia uma pequena abertura que, olhando de longe, parecia impossível que alguém conseguiria passar por ali, mas era relativamente fácil de passar se eles empurrassem os arames para o lado, principalmente para crianças tão esguias como Tim e Norman. As marcas de botas na areia gasta também presumia que muitos outros garotos haviam feito o mesmo.

    O caminho de volta para casa foi um pouco mais difícil. Voltavam sempre juntos, em fila, sempre seguindo o mesmo caminho até o orfanato. Tim e Norman, porém, naquele dia desejaram ficar um pouco mais atrás, eles fingiram estar distraídos conversando enquanto Stephen, Charlie, Edmond e as meninas andavam mais à frente, só para que Tim pudesse olhar em volta, entrar em algumas ruas e tentar se lembrar o caminho para sua antiga casa.

   Uma rua atrás da deles ficava a loja de doces que ele frequentava com os pais. Não havia como ele não reconhecer aquela placa verde musgo com letras roxas. Era a loja mais colorida do bairro. Ele passou por ali correndo e subiu a rua por onde sempre passava o carro do pai na volta para casa.

   Esse era o caminho, ele tinha certeza disso.

   “Você encontrou o lugar?” Norman perguntou, metros atrás dele, enquanto tentava observar a rua por onde os outros órfãos caminhavam.

   “Sim”, ele disse, sorrindo. “Acho que posso descobrir o resto na minha cabeça.”

   “Ótimo, agora se apresse, temos que voltar rápido, eles estão bem à nossa frente!” ele gritou. Os dois então aceleraram o passo e, em poucos segundos, já haviam alcançado as outras crianças.

   “Onde vocês estavam?” Charlie se virou imediatamente. Tim e Norman pararam logo atrás, com as mãos nos joelhos, tentando controlar a respiração.

   “Nós nos distraímos”, disse Norman entre respirações. “Vimos uma loja de doces lá atrás.”

   "Sério? Onde?" Ele ficou na ponta dos pés, tentando olhar para trás enquanto bloqueava o sol com a mão.

   “Não dá mais pra ver mais ver, já foi”

   “Ah.” Ele suspirou. “Stephen, podemos voltar um pouco? Eu queria ver a loja de doces.

   “Oba, doces!” Edmond pulou de excitação.

   “Stephen, podemos ir, por favor?” Beatrice implorou, puxando sua camisa.

   “Não, não deveríamos ir a lugar nenhum depois da escola”, ele repreendeu, fazendo Beatrice soltá-lo. As outras crianças vaiaram, todas menos Anne.

   “Ele está certo, sabiam?” ela se colocou ao lado dele. “Além disso, as lojas de doces nem são tão interessantes.”

   “Fácil para você dizer!” Charlie respondeu de volta.

   “E nem temos dinheiro, o que faríamos lá agora?” Stephen argumentou.

   “Mas eu só queria ver. Certo, Eddie?”

   “Isso mesmo, só para ver! Por favor!”

   “Vamos!” gritou Beatrice atrás dele.

   Caminharam dois ou três quarteirões discutindo com Stephen, que permaneceu rígido em sua decisão, até que depois de um tempo finalmente pararam, já estavam muito longe para voltar atrás.

...


Suas mãos estavam suadas, ele as esfregava uma a outra enquanto olhava pela janela. Os galhos balançavam do outro lado do vidro, de onde estava não conseguia ver o buraco da passagem na cerca, mas sabia que estava em algum lugar para a direita, depois daqueles galhos.

   Ele se virava para frente toda vez que sentia que seu professor olhava em sua direção, nem tinha certeza de que estavam no mesmo tópico de dez minutos atrás. Na verdade, poderiam ter trocado de professor nesse meio tempo que ele provavelmente nem teria notado.

   Pensava em como Norman estava nesse momento em sua sala, se também estava tão ansioso quanto ele. Imaginava como estariam vinte minutos no futuro, provavelmente já estariam correndo do lado de fora do colégio, indo em direção à casa. Ou então, poderiam estar na sala do diretor, recebendo uma punição bem rígida pelo que estavam prestes a fazer, e esse pensamento o fazia estremecer, mas não tinha mas tempo para desistências.

   Somente quinze minutos agora.

   Dez.

   Cinco.

   Um.

   O sinal tocou e todos os meninos se levantaram. Tim se apressou para ser um dos primeiros na fila até o refeitório, tentando andar o mais rápido que conseguia. Estava se segurando para não sair da fila e começar a correr, afinal, eles tinham não tinham muito tempo até o almoço acabar.

   Chegaram no refeitório quase que ao mesmo tempo que a sala de Norman, ele logo encontrou sua cabeça ruiva e apressou o passo até ele.

   “Finge que você está indo ao banheiro.” ele disse baixinho. “Eu vou indo logo atrás de você.”

   Tim assentiu e assim o fez. Felizmente, a porta do banheiro era próxima à porta de saída, ele andou tranquilamente até lá e ao virar o corredor, saiu pela porta em vez de entrar no banheiro. Já do lado de fora, ele se permitiu correr.

   Norman o alcançou rapidamente, ele o ajudou a tirar as folhas e os galhos que eles haviam colocado anteriormente para esconder o local e ambos se esgueiraram pela passagem, tomando cuidado para não se sujarem, pois ainda teriam que voltar depois dessa pequena aventura.

   Tim encarou a frente do colégio através da cerca sem acreditar no que havia acabado de fazer. Se os pegassem, eles estariam condenados, arruinados...

   “Por que você tá parado aí? Vamos logo!” gritou Norman. Eles não tinham tempo para pensar em nada agora. Se ele não corresse, o que ele temia iria se tornar realidade.

   Eles subiam a rua em um estalo, Norman metros a sua frente, até passarem por um cruzamento. Norman atravessou correndo antes que o carro pudesse passar, mas Tim teve de esperar na calçada. Não estava conseguindo correr tão rápido, suas pernas já não o obedeciam mais, era impossível correr por tanto tempo sem uma pausa.

   O carro já havia passado por ele, mas Tim não havia saído do lugar. Tentava acalmar seu coração, respirar o quanto podia, pois quando voltasse a correr, tinha que compensar o tempo perdido.

   “Tim, vem logo!” gritou Norman do outro lado.

   Na mesma hora, ele saiu em disparada, passando na frente do amigo. Ele faria suas pernas o obedecerem, correria como nunca antes havia corrido, não queria perder o tempo que poderia estar falando com seus pais.

   E ele já tinha perdido tempo demais.

   Sentia que havia desaprendido a respirar quando chegaram na casa. Havia sido mais rápido do que ele imaginava, por isso, se permitiu parar por uns segundos para recuperar o fôlego.

   Ele ainda olhava para o chão de pedras, mas não deixou de levar um susto quando se virou para frente. Era aquela a casa, ele não tinha dúvidas, não havia como não reconhecê-la quando tão pouca coisa havia mudado desde a última vez que esteve ali.

   Tirando o mato que havia crescido no jardim e obstruia toda a parte da varanda da frente, o resto da casa ainda estava igual ao dia em que a deixou. O esqueleto dela ainda era visível, algumas ripas de madeira ainda estavam de pé, assim como a parede lateral onde estava a escada, que agora estava faltando uns degraus. Somente uma parte do telhado do lado esquerdo ainda estava de pé, o direito havia se perdido completamente, os pedaços que sobraram haviam caído no que antes era a cozinha.

   A porta da frente havia sido derrubada, ele conseguia ver pedaços de madeira vermelha em meio à grama alta. Tim subiu os degraus rangentes da entrada, se desviando dos destroços para que conseguisse passar pelo vão da porta.

   Ele conseguia imaginar como a casa era antes em cada móvel que olhava. O sofá marrom ainda estava ali, agora mais preto que sua cor original. A moldura dos quadros que sua mãe adorava estava caída no tapete que havia sido recortado pelo fogo. A poltrona favorita de seu pai ainda estava no mesmo lugar, ele nunca deixava ninguém se sentar ali, somente se Tim se estivesse em seu colo. Mas agora ela estava cinza de poeira, e no lugar em que sentava seu pai, um pedaço enorme da madeira do telhado a atravessava no meio.

   Era tudo tão bonito antes, ele queria que Norman pudesse ter visto, pois sabia que era. Mas era difícil de descrever, difícil de lembrar, era só um sentimento que havia ficado, sentimento esse que sempre dava lugar à agonia depois que o fogo começou.

   E ele se lembrava exatamente com o que os móveis se pareciam enquanto as chamas os destruíam.

   “Eu sinto muito, Tim.” Norman falou parado no vão da porta. Somente naquele momento que ele percebeu que seu rosto estava um pouco molhado. Não sabia que estava chorando.

   “Eu estou bem.” Ele enxugou o rosto rapidamente. “Vamos, se eles forem fantasmas, vão estar por aqui em algum lugar.”

   Norman permaneceu parado na entrada enquanto ele andava pelo lugar. Será que seus pais conseguiam vê-lo ali? Ele sabia que podia ver os mortos, mas Eliza era a única que ele tinha visto, não sabia se todos os fantasmas se comportavam da mesma forma.

   “Mãe, pai!” ele os chamava, talvez pelo som funcionasse melhor. “Sou eu, é o Tim.”

   “N-não acha melhor a gente voltar agora?” Norman dizia enquanto encarava uma teia de aranha que havia na parte do teto que havia sobrado, seus dentes rangendo.

   “Não, só... espera, a gente ainda não viu no jardim.” Tim passou por ele e saiu pelo vão da porta, Norman o acompanhou rapidamente para sair de lá.

   O mato alto dificultava a caminhada, mas Tim os afastava conforme andava até a parte de trás da casa. Era ali que ficava seu balanço, agora quebrado, mas uma das cordas ainda permanecia amarrada na árvore, o vento crescente movimentando o pedaço de madeira que ainda pendia ali.

   “Mãe, pai...” ele dizia, baixinho dessa vez, enquanto se aproximava da árvore.

   Tim quase foi para frente quando seus pés tombaram com algo duro entre a grama. Era seu aviãozinho de brinquedo, a tinta amarela estava desgastada, mas tirando isso, ele ainda estava inteiro.

   “Tim, eu... eu não acho que eles estão aqui,” Norman falava alguns passos atrás dele. “Se não você já teria encontrado...”

   “Eu não vi perto do riacho ainda.”

   “Mas a gente não tem muito tempo!”

   “Eu volto logo!” Tim disse por fim, largando o brinquedo no chão e correndo até o meio das árvores.

   “Tudo bem, eu... vou ficar aqui... então,” respondeu Norman, abraçando o próprio corpo para expulsar os calafrios.

   Tim diminuiu o passo ao adentrar, lembrando do mesmo caminho que fazia por ali quando criança, reconhecia a forma das raízes das árvores, sabia que chegaria até o riacho se seguisse naquela direção. Agora, quando olhava para trás, não conseguia mais ver Norman que havia ficado parado na entrada o esperando.

   Tim ouviu um som de folhas sendo amassadas, passos se aproximavam dele. Olhou para trás achando que Norman havia decidido seguí-lo, mas não havia ninguém, não parecia que os passos vinham de trás dele. Olhou para os lados, pensando que poderia ser seus pais ou algum animal, como uma raposa, esquilo ou coelho, mas agora que estava atento, não ouviu mais nada.

   Ele parou de andar ao ouvir o som da água escorrendo, e percebeu estar próximo à margem do riacho. Nessa hora, o peso do que estava fazendo chegou a sua consciência. Ele já havia procurado em todo lugar, não havia mais para onde olhar. Eles já teriam aparecido se soubessem que o filho estava ali, não teriam?

   Norman estava certo, era ele quem não queria enxergar.

   Aquele lugar estava vazio há muito tempo.

   O barulho voltou novamente e o fez assutar. Ele se virou na mesma hora que viu de relance a bota de alguém correndo para se esconder atrás das árvores.

   “Quem está aí?” ele perguntou enquanto corria na mesma direção, mas após passar a árvore que estava em sua frente, qualquer rastro havia sido perdido.

   Ele andou mais uns passos, tentando enxergar mais ao longe para onde a pessoa tinha ido, mas não havia nada em vista além de mais árvores, e nada para ouvir além do som dos pássaros.

   Não era possível isso ter sido uma alucinação.

   E ele descobriu que não era quando ouviu uma voz conhecida atrás dele:

   “Timmy, é você mesmo?”

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NOTAS DA AUTORA:

EU VOLTEI!

Eu sei, eu sei, tinha falando que ia postar uma semana depois, mas não consegui, gente. Errei, fui moleca.

O segundo ato de uma história é sempre a parte mais difícil pra mim, eu tento escrever sem ficar muito lento e ao mesmo tempo sem apressar muito as coisas pra não chegar no terceiro ato rápido demais, e quando eu acho que tá ruim, eu não sinto vontade de escrever. Mas tomei vergonha na cara e terminei esse capítulo que tava pra terminar há 2 meses (mds que vergonha kkkkk)

Mas saibam que essa demora não significa que tô desistindo da história, eu vou terminar isso nem que seja a última coisa que eu faça.

Beijinhos, e até o próximo capítulo!

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