VI.
A corda não parecia se incomodar com seu peso enquanto Tim balançava.
Sua cabeça estava baixa, observando suas botas rasparem no chão gasto de terra toda vez que mergulhava para então subir de novo, desacelerando a cada segundo até parar completamente.
O céu acima dele estava escurecendo, uma imensa nuvem de massa cinzenta pairava sobre todo o orfanato, não havia quase nenhum espaço para o azul ou a claridade, que já havia sumido há algumas horas.
As crianças que estavam ali brincando anteriormente já haviam entrado de volta para a casa com medo da chuva, mas não Tim, ainda havia algum tempo até que começasse a chover, e ele não se importava se fosse tomar um pingo de chuva ou dois. Por conta disso, ainda não havia saído do balanço.
Se isso fosse há mais ou menos cinco anos atrás, poderia ser que estivesse fazendo a mesma coisa no quintal de casa, provavelmente enquanto brincava com seu aviãozinho, um presente de seu pai que ele adorava.
Ele queria ter mais lembranças dessa época, e embora muitas memórias já estejam sumindo, essa era uma das coisas que se lembrava perfeitamente.
Ele nem sabia que fim havia levado esse brinquedo. Talvez se ele tivesse o esquecido no quintal naquele fatídico dia, ele ainda pudesse estar lá no mesmo lugar, deitado na grama perto de seu balanço. Talvez alguma criança pudesse tê-lo encontrado e levado para casa, era bem possível que, em quase cinco anos do acontecido, alguém já o tivesse tirado de lá.
Ou então ele estaria dentro da casa, onde o fogo teria o consumido por inteiro.
“O que ainda está fazendo aqui fora?”
Tim levou um susto quando olhou para o lado e viu Eliza sentada no outro balanço. Ela havia chegado ali em algum momento, mas ele tava tão concentrado em seus pés que sua mente distraída não havia notado até então.
“Desculpa, eu te assustei?” perguntou ela com sua voz doce. Suas mãos seguravam as duas cordas do balanço, seus pés descalços empurravam seu corpo lentamente.
“Um pouco” ele respondeu. “Eu estou aqui até a chuva começar, depois eu já vou voltar para dentro. Mas o que você faz aqui?” Ele quis saber. Não era arriscado ela vir tão para perto do orfanato? As cortinas estavam todas fechadas agora, mas qualquer um poderia abrí-las naquele momento e então certamente a veriam.
“Eu estava procurando você.”
Tim ficou sem reação por uns instantes. Por que ela queria vê-lo? Eles conversaram um pouco por duas vezes somente. Ela não teria outras pessoas, alguém mais importante com quem falar?
“Por que eu? Você não tem nenhum amigo?”
Eliza pensou um pouco, colocando uma mecha dos cabelos loiros atrás da orelha.
“Bom, eu tenho você” respondeu.
Tim arqueou a sobrancelha.
“Me considera seu amigo?”
“E por que não consideraria?” ela abriu um sorriso, dando um pulo de seu balanço. Seus pés descalços e cheios de terra dançavam pela grama, ela tinha novamente uma pequena margarida presa atrás da orelha.
Por algum motivo, ela combinava muito com aquele jardim, era quase como se ele fizesse parte dela, como se todas as plantas fossem perder sua cor se ela não estivesse por perto.
“Você é novo aqui, não é?”
“Eu cheguei faz alguns dias” Tim respondeu. "Por que a pergunta?"
“Ah… é que eu nunca tinha te visto por aqui antes. Fazia tempo que eles não tinham alguém novo, achava que nem recebiam mais crianças.”
“Você observa muito aqui, não é? Há quanto tempo você brinca por aqui?”
“Eu conheço aqui desde pequena, na verdade." Eliza se virou de costas a ele e foi até algumas flores lilás que cresciam sobre a grama. Ela agachou para sentir seu cheiro e pegou um corte, trazendo o ramo até ele.
“Olha, sinta o cheiro desta aqui” ela esticou a mão e Tim se inclinou para cheirá-la. Ela tinha um cheiro doce e limpo, era tão gostoso que Tim queria que Eliza não tivesse abaixado a mão tão rapidamente. “É lavanda. Tirando as margaridas, essa é a minha flor favorita. As margaridas tem um cheiro quentinho e amarelo, já a lavanda tem cheiro de tranquilidade e de dias de garoa, mais ou menos como o clima está agora.”
“Como algo pode ser cheiro de amarelo ou de tranquilidade?”
“Não sei explicar, elas só tem. Toda vez que cheiro alguma flor, sinto algo diferente” explicou ela. “Você combina com a lavanda, sabia? tem o mesmo cheirinho de chuva.”
O que Eliza dizia parecia a maior loucura, mas de alguma forma, ele conseguia entender o que ela queria dizer, não sabia explicar direito o motivo. Era um jeito diferente de enxergar as coisas, com certeza, mas soava quase como poesia. Tim queria poder sentir pelo menos um pouco do que ela sentia ao cheirar as flores.
“Do que você gosta de brincar?” ela perguntou de repente.
“Não sei, não costumo mais brincar tanto assim.”
“Eu gosto de pique-esconde,” ela respondeu a pergunta em seu lugar. “Tenho saudade de brincar disso, faz tempo que não tenho alguém pra brincar."
“Quantos anos você tem?”
“Treze.”
“Eu também. Digo, vou fazer treze mês que vem” ele sorriu.
Ela era mais velha do que ele — um ano mais velha, no máximo — mas seu jeito de andar e sua voz meiga a fazia parecer mais nova. Ao contrário disso, seu tamanho e seu rosto mais maduro entregavam que ela realmente tinha a idade que dizia.
“Então, você brincaria comigo? Só uma vez?” pediu ela.
“Aqui mesmo no jardim?”
“Claro, onde mais seria?” ela zombou. “Vamos, eu duvido que você vai conseguir me achar, eu sou extremamente boa nisso, conheço muitos esconderijos por aqui.”
“Foi assim que você conseguiu se esconder de todo mundo aqui até agora?” Tim brincou. Eliza soltou uma risada.
“É, isso aí. Então, você vai querer brincar ou não?”
Tim hesitou um pouco, mas fez que sim com a cabeça. “Tudo bem, mas não vale se esconder muito longe lá perto do bosque, tem que ser por aqui.”
“Fechado.”
Eliza saiu correndo enquanto Tim fechava os olhos, apoiando a testa na parede de fora da casa. Eles não haviam estipulado nenhuma contagem, então ele resolveu contar somente até dez. Se ela fosse realmente boa em se esconder como dizia, então já conseguiria fazer isso nesse tempo.
Ao abrir os olhos novamente, ele encontrou o jardim vazio. O chão repleto de grama não indicava para onde ela poderia ter ido, não havia nenhuma pegada que ele pudesse seguir, mas sabia que ela não devia ter ido longe.
Não havia muitas árvores para se esconder por ali, se Eliza fosse para aquela direção, o melhor lugar para se esconder seria mais para longe onde começava o bosque, mas eles haviam combinado de não irem para lá.
Ela teria que estar ali perto, e nessas condições, o melhor lugar seria na lateral da casa onde havia mais árvores e arbustos para se esconder.
Tim foi pelo lado direito primeiro, andava devagar para observar cada arbusto e tronco de árvore que ela poderia estar escondida atrás, mas não havia nada.
Do lado esquerdo também não foi diferente, havia somente uma torneira com uma mangueira na parede da casa e uma pequena casinha onde provavelmente eram guardados alguns equipamentos de jardinagem e outras bagunças, mas ela não poderia estar lá dentro pois a porta estava trancada.
Decidiu então procurar no quintal de trás, embora achasse pouco provável que fosse encontrá-la lá. Subiu na casinha da árvore, mas não havia nada além dos brinquedos que já estavam lá.
Ela tinha sumido. Como conseguiu desaparecer dessa forma em somente 10 segundos? Era muito pouco tempo para sequer pensar em onde se esconder, ele já deveria tê-la achado se ela estivesse ali perto.
Ou talvez, ela nem estivesse mais lá.
Ela poderia já ter ido para casa, talvez toda essa ideia de pique esconde fosse só para mantê-lo ocupado e fazê-lo de bobo, já que, levando em conta tudo que ele sabia até agora sobre ela — o que era praticamente nada — era bem capaz de isso acontecer mesmo.
Ele não a conhecia, não fazia ideia do que se passava em sua cabeça, nem sabia o que havia feito ele concordar com aquela brincadeira para começo de conversa.
Correu até o lado esquerdo da casa de novo, passou correndo dessa vez, já não estava mais com paciência para procurar, era melhor que desistisse e voltasse para dentro de uma vez antes que a chuva começasse de verdade.
“Ei, eu desisto!” ele gritou, caso ela ainda estivesse ali para ouvir. “Já pode sair de onde quer que você esteja agora."
Se ela não respondesse nada agora, ele voltaria para casa.
Porém, segundos depois, ele ouviu passos atrás dele, e a voz dela lhe chamou:
“Já desistiu, Tim?”
“Onde você estava?” ele perguntou, surpreso. Não viu de onde ela havia saído. “Achei que você tinha ido embora.”
“Por que eu faria isso? A gente combinou de brincar, lembra?” ela sorriu. Eliza tinha um sorriso convidativo, era impossível não sorrir de volta, Tim nem percebia quando o fazia.
“S-sim, mas—"
“Eu disse que era boa” ela colocou as mãos na cintura. “Estava escondida o tempo todo e você nem percebeu.”
“Posso saber onde?”
Eliza levou o indicador aos lábios.
“Uma boa escondedora nunca revela seus esconderijos” sussurrou.
Tim soltou uma risada inesperada. “Tenho certeza de que essa palavra nem existe!”
Ele parou de rir quando, logo atrás da menina, em meio a flores e arbustos, ele viu algo se mexer. Estava balançando todos os galhos, parecia correr bem rápido, indo na direção deles.
Antes que a coisa aparecesse, Tim gritou:
“Ei, cuidado, tem alguma coisa atrás de você!” Eliza deu um pulo para o lado, mas o susto passou na mesma hora em que viu o que realmente era.
“Calma, é só um coelhinho.”
Eliza se agachou no chão. Era um coelho marrom, suas orelhas levantadas se abaixaram e seus olhos negros de fecharam para receber carinho na cabeça. Pelo que ele sabia, coelhos não eram animais tão amistosos assim, eles eram medrosos e poderiam atacar se um estranho chegasse muito perto, mas este não se importava em ser tocado por Eliza. No mais, eles pareciam ser bons amigos.
Eliza se sentou no chão e o coelho foi para seu colo, onde recebeu mais carinho nos pêlos.
“Quer por a mão?” perguntou ela. “Ele não vai te machucar, ele é bonzinho."
Tim se agachou ao seu lado, aproximando sua mão com cuidado para acariciar o pequeno animal. Seu pelo era macio, mais do que o de um bichinho de pelúcia. Ele estava quente e ronronava baixinho, Tim conseguia sentir seu coração batendo rápido, apesar de aparentar estar tranquilo. Ele nunca tinha tocado em um coelho antes, era tão... fofo.
“Eu acho que ele gostou de você.”
“Você acha?"
“Ele está feliz. Coelhos ronronam quando estão felizes e querem carinho, assim como os gatos fazem” explicou ela, tirando o coelho do colo e o segurando no ar. “Quer colocá-lo no seu colo?”
Tim assentiu e ela o posicionou no espaço entre suas pernas. Imediatamente, seu colo ficou mais quentinho. O coelho abaixava a cabeça toda vez que ele o acariciava, suas orelhas caídas atrás do corpo. Seu focinho não parava de se mexer, e Tim colocou o dedo para que ele pudesse cheirá-lo.
Eles ficaram em silêncio por um tempo. A chuva ainda não havia começado, antes parecia que iria chover a qualquer momento, mas agora ele não tinha mais certeza, talvez o céu só tivesse o enganando e tempo só iria ficar nublado mesmo. De qualquer forma, Tim não sentia que queria sair de lá agora.
“Você disse que conhece aqui desde pequena” ele quebrou o silêncio. Preferia não ter feito isso, mas havia se lembrado de algo de repente. “, então acho que já deve ter visto algo estranho nas crianças daqui, não?”
“Você está querendo dizer sobre os poderes delas?” disse ela sem cerimônias. “Sim, eu sei disso. Este lugar fica mais isolado do resto do mundo por esse motivo, mas qualquer um que investiga um pouco mais acaba descobrindo.”
“E você... está bem com isso? Não tem nenhum medo?”
“São só crianças, não consigo ter medo delas” respondeu. “, mas nunca tentei falar com nenhuma, não quero arrumar problemas, é melhor assim.”
“E o que te fez falar comigo então?” perguntou ele. Eliza deu um risinho.
“Bom, é diferente, você que me descobriu.”
“Você poderia ter deixado pra lá e nunca mais ter aparecido aqui, mas você me procurou depois.”
“Que diferença isso faria? Você já tinha me visto mesmo, pelo menos agora eu tenho alguém pra conversar” Ela disse enquanto acariciava o coelho que ainda repousava tranquilamente no colo de Tim.
Ele queria perguntar mais sobre ela, talvez saber o porquê ela era tão sozinha, mas decidiu que não faria isso, ele também não gostaria de perguntassem algo do tipo para ele, com certeza havia algum motivo para ela ser assim também.
Em vez disso, mais silêncio os seguiu, até o coelho levantar as orelhas e pular de seu colo indo em direção a um arbusto próximo, provavelmente atraído por algo que estava ali.
“Você tem alguma habilidade também, não tem? Já que está nesse orfanato” perguntou ela.
“Não, eu sou o único aqui que não tem, é uma longa história,” respondeu, desejando não entrar em mais detalhes. “Na verdade fico feliz de encontrar alguém que também não tenha.”
“Já pensou em qual habilidade você teria? Acho que se eu tivesse nascido com uma, provavelmente seria a habilidade se fazer crescer plantas em qualquer lugar, ou então de falar com os animais, algum desses.”
Tim ficou pensativo por um tempo. Qual poder combinaria mais com ele? Não conseguia encontrar algo que o definia, não do jeito que Eliza era com as flores e animais.
Não havia nada sobre ele que poderia se tornar uma habilidade, a não ser se considerasse sua capacidade de perder todos a sua volta, ele já imaginou que isso pudesse ser um tipo de superpoder.
Mas ele não diria isso a ela. Em vez disso, ele respondeu:
“Não sei qual eu teria, mas se eu pudesse escolher, escolheria o poder de controlar o tempo, passado ou futuro.”
“Esse deve ser muito legal, mas não sei, acho que algo poderia dar errado, o tempo parece ser uma coisa muito fragil para ficar mexendo.”
“É, talvez sim, mas escolheria esse poder do mesmo jeito, assim pelo menos eu conseguiria reviver algumas memórias de novo."
“Mas onde fica o presente?" Ela indagou.
“Quê presente?”
“Você disse que queria poder controlar o passado e o futuro, mas e o presente?”
“O presente não existe" explicou ele. “, só existe o que foi e o que vai ser, o presente é só um mísero segundo entre o futuro e o passado, ele mal acontece e já vira passado de novo.”
“Hum, nunca havia pensado dessa forma.”
“Eu conversando com você, por exemplo, tudo que eu digo vai virando passado conforme eu chego na próxima palavra.”
Eliza levou a mão ao queixo, pensativa.
“Mas ainda assim, se o presente se tornar passado tão rapidamente como você diz, é a única coisa que podemos controlar, não é? Eu, pelo menos, gostaria de ter a capacidade de parar o tempo,” disse ela. “Não é melhor aproveitarmos ao máximo o pouco tempo que ainda temos no presente?”
Tim entreabriu os lábios, a boca ligeiramente aberta, pensando no que diria a seguir. Ele pensou que poderia dar uma resposta imediatamente, mas não conseguiu. Em vez disso, ele apenas olhou para ela. Seus olhos azuis olhavam para ele, pareciam ver mais do que apenas sua superfície.
Nesse momento, um pingo de água caiu em sua testa, depois outro em seu ombro. A chuva, que até agora só ameaçava cair, começou justamente quando ele achava que não choveria mais. Em segundos, os pingos viraram uma garoa fraca, o chão terroso se umidecia aos poucos e o vento fazia algumas das folhas caírem.
“Desculpe, eu vou precisar ir agora" Ele fez menção de sair, mas virou-se para ela novamente. “V-você vai ficar bem? Saindo na chuva assim?"
“Eu vou sobreviver," ela sorriu. E novamente, ele não conseguiu não sorrir de volta.
...
Não olhou para trás para ver quando Eliza tinha ido embora, a chuva estava apertando e a qualquer momento alguém poderia aparecer para chamá-lo, por isso precisava voltar o quanto antes.
Suas últimas palavras ainda ecoavam em sua cabeça. Eliza parecia ser alguém inteligente, talvez mais inteligente que ele, apesar de seu jeito de criança.
Talvez ela estivesse certa no que disse sobre aproveitar o presente, mas isso não se aplicava a sua situação. Não havia nada que o presente pudesse oferecer a ele, não enquanto ainda fosse uma criança presa naquele orfanato.
Sabia mais ou menos o que aconteceria quando saísse. Seu tio não havia tido nenhum herdeiro, seu dinheiro e a casa em Londres ficariam para ele, e embora ainda não soubesse qual seria seu destino depois disso, parecia algo melhor do que ficar preso ali.
Ao virar para o lado para entrar pela porta dos fundos da casa, Tim se assustou quando deu de cara com Stephen. Ele estava com o braço acima da testa, tentando se proteger da chuva.
Os cachos de seu cabelo ainda estavam para cima, ele praticamente não estava molhado, deveria ter ido lá para fora há pouco tempo.
“O que estava fazendo aqui fora ainda?” o menino perguntou.
“N-nada, eu só me distraí" disse ele, e vendo que Stephen fez uma cara estranha para a sua resposta, ele continuou: “Sabia que tem coelhos aqui por perto? Eu estava seguindo um pela lateral da casa, mas ele sumiu."
“Sim, às vezes aparecem alguns coelhos por aqui, mas já apareceram raposas também, eu teria mais cuidado se fosse você.”
Sua explicação pareceu ser convincente para Stephen, que não fez mais perguntas e nem estendeu a conversa.
Dentre todos os orfãos, Stephen era o que mais o intrigava. Mesmo depois do que ele viu no banheiro aquele dia, Stephen nunca mais tocou no assunto, ele não explicou o que tinha acontecido, só fingia que não tinha sido nada. E para falar a verdade, Tim tinha medo até de perguntar.
Em vez disso, eles somente entraram em silêncio de volta ao orfanato, e o barulho da chuva se cessou assim que Stephen fechou a porta.
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