V.
Tim se aproximou lentamente, seus passos faziam barulho em meio a galhos e folhas no chão, mas a garota não havia se virado ainda, parecia que não havia o ouvido chegar, ou então talvez não se importasse o suficiente para olhar o que quer que fosse que estivesse fazendo barulho.
Ele parou quase ao seu lado, uns passos para trás, somente, e olhou para o chão, para o que ela estava vendo, tentando entender o que ela observava exatamente em meio às folhas secas.
Era uma trilha de formigas.
“Interessante, não é?” disse ela sem olhar para ele. Tim se perguntava se ela sabia que era ele que estava ali e que havia a seguido até lá.
Ela continuava concentrada nas formigas, sua longa trilha se estendia até uma árvore próxima e desaparecia em algum buraco embaixo da raiz torta. A maioria das formigas carregavam consigo pequenos pedaços de folhas, alguns muito maiores que o seu tamanho, mas a menina estava mais atenta às formigas que carregavam um inseto morto, uma espécie de besouro.
Embora fosse pequeno para um ser humano, ele era como um gigante para elas, que o levavam em grupos, andando lentamente pela fileira até o formigueiro.
“Esse besouro morreu e agora vai servir de comida para manter as formigas vivas" disse ela.
“Sim, estou vendo.”
Seu rosto se virou para ele.
“Não acha que isso faria dele vivo de alguma forma?” Indagou ela. Tim não sabia exatamente o que a garota queria dizer ou o motivo de ela estar dizendo tudo isso pra ele assim tão de repente. Ela não parecia bater muito bem da cabeça.
"Não, ele só é um pedaço de carne agora."
A menina se sentou de joelhos, as pontas dos seus dedos se aproximaram calmamente do besouro e o agarraram, as formigas rodopiavam desesperadas por cima dele.
“O que vai fazer?” Ele quis saber.
“Estou ajudando elas.”
Ela se levantou e se agachou novamente perto da árvore, posicionando com cuidado o besourinho perto do buraco do formigueiro, e eles observaram enquanto as formigas o empurravam lentamente para dentro.
“Se mesmo depois de morrer esse besouro ainda teve algum propósito, mesmo que seja só de alimentar as formigas, então ele de alguma forma ainda está vivo” ela divagou. Uma brisa fraca passou por entre seus cabelos. “Eu gosto de pensar que a alma de todos os seres vivos ainda esteja viva em algum lugar”
“Não acho que é bem assim que funciona” disse ele. “As criaturas morrem, e depois o que sobram delas são só restos que se decompõem com o tempo. Nada além disso.”
“Sério? Que sem graça, ainda prefiro a minha teoria.”
“Você acredita nisso?”
“Todo mundo precisa acreditar em alguma coisa, Timothy.”
Ela se levantou. A frente de seu vestido agora continha alguns galhinhos presos que ela tentava tirar, o laço em seu peito estava mal amarrado, mas ainda assim, sua aparência parecia quase que angelical.
E ela se lembrava do seu nome.
“Você se lembra do meu nome" ele disse ao mesmo tempo em que percebeu. A garota soltou um risinho.
“Sim, você me falou ontem, e não é como se eu tivesse muitos nomes para decorar.”
É, ela parece ser meio esquisita, pensou ele, e pelo visto também era solitária. Seus olhos cerúleos o encaravam. Um azul frio, quase cinza diante da fraca luz do bosque, o tipo de olhar que não o deixava ver nenhum sentimento por trás deles.
Ela poderia ser solitária e um pouco estranha, mas não parecia que ela se importava muito com isso.
“Você ainda não me disse o seu.”
“Eliza” ela sussurrou, as mãos sujas de terra se esfregando uma a outra. Ela combinava com o nome, o som que ele produzia na sua voz era tão harmônico quanto seu rosto.
Tim ficou pensando nas perguntas que poderia fazer, mas nenhuma parecia ser a mais adequada.
O sol havia acabado de se pôr por completo agora, deixando algumas nuvens com tons de rosa e laranja próximas ao horizonte. O azul do céu se escurecia a cada minuto, e estrelas começaram a ficar visíveis.
Ele tinha que voltar logo.
“Eu achei que você não iria mais aparecer, não depois de ontem. O que faz aqui a essa hora?”
“Você não contou a ninguém, contou?”
Tim negou com a cabeça, Eliza deu um sorriso.
“Obrigada, Tim.”
Ela se virou e começou a andar na direção oposta.
“Espera, aonde você vai?”
“Para casa” respondeu, seu rosto ainda virado de costas para ele. Mesmo com o dia quase acabando, ela tinha ficado por tão pouco, nem houve tempo para poderem conversar sobre o que quer que fosse.
“E onde você mora?” ele fez outra pergunta, antes que ela desaparecesse como da outra vez.
Eliza hesitou um pouco, e depois se virou para ele.
“Minha casa não é muito longe daqui.”
“E os seus pais deixam você estar aqui a esta hora?” ele perguntou mais uma.
“Eles não se importam muito onde eu estou.”
Isso era… confuso. Que tipo de pais deixariam a filha ficar sozinha fora de casa durante a noite? Ele sabia que não havia muitos crimes na vila – afinal, lá não era Londres – mas poderia haver animais selvagens naquela floresta, talvez eles devessem ser mais cuidadosos.
E ele deveria também.
“E você…” ele ficou sem coisas para perguntar “você vai voltar aqui mais tarde?”
“Eu sempre volto”
Ela se virou novamente, dando um último sorriso antes de sumir através dos arbustos floridos, e Tim ficou observando até que os galhos por onde ela passou parassem de balançar.
…
O barulho de conversas misturado com o som do rádio ligado lhe tirava a concentração, não sabia há quanto tempo estava tentando ler o mesmo parágrafo.
Fazia somente alguns minutos que ele estava sentado ali, havia pego um livro fino que tinha achado na estante para passar o tempo. Era uma capa chamativa, eram poucos os livros que tinham alguma imagem na capa, esse era de uma árvore grande com uma toca de coelho embaixo, era algo diferente, e isso o fez querer ler para saber do que se tratava.
Do lado direito da sala, em frente à poltrona onde ele se sentava, uma estante exibia várias bonecas de tamanhos diferentes, umas de pano e outras de porcelana, repousadas uma ao lado da outra. Ao lado da estante, encostada na parede, estava uma casinha de madeira com umas almofadas na frente, onde Sally, Anne e Beatrice brincavam com pequenas bonequinhas de crochê.
A parede de trás da casinha era aberta, dando visão a todos os seus cômodos, com móveis em miniatura que muito se asemelhavam aos móveis do próprio orfanato. A disposição dos cômodos também era quase igual à casa original, suas paredes eram divididas em madeira escura na parte inferior e um papel de parede bege na superior. Tim achava tudo muito bizarro, era como se as meninas fossem gigantes causando um terremoto no mini orfanato.
Atrás delas, um tapete grande e redondo estava embaixo de vários brinquedos espalhados. Algumas bonecas, carrinhos de madeira, um pião e uns bloquinhos de construção. Edmond estava lá minutos antes empilhando os blocos com Peter, mas eles saíram para tentar encontrar Stephen e Charlie e acabaram deixando-os montados ali.
Tim segurou o livro mais para perto de seu corpo em uma tentativa de se concentrar mais no que lia, ele já havia virado a página algumas vezes, mas o capítulo 1 não acabava, sua linguagem ainda era muito rebuscada para ele entender.
Do jeito que ele segurava o livro, acabou não vendo quando Norman chegou na sala.
“Até que enfim você apareceu, achei que ia ficar lá fora a noite toda” Norman abaixou o livro que cobria o rosto de Tim, ele estava com uma espécie de tabuleiro nas mãos. “O que você tá lendo?”
“Não sei muito bem, parece ser fantasia.”
“Ah, então você não vai querer jogar comigo” Ele colocou o tabuleiro na mesinha ao lado da poltrona.
Era uma edição do jogo de serpentes e escadas, um dos jogos que ele costumava jogar com sua mãe às vezes. Ele sempre achou incrível como sempre conseguia ganhar — ou então, ele pensou agora, era sua mãe que sempre o deixava ganhar.
“Você está melhor do seu resfriado?”
“Ainda não, né? mas não vai ser nenhum problema, eu vou segurar o espirro ao máximo, prometo!”
Tim ainda tinha receio de ficar perto de Norman, e não era por menos, mas não conseguia recusar uma oportunidade como essa, ninguém nunca o convidava para jogar nada.
Desde quando tio John adoeceu, tudo o que fazia para se manter ocupado era sempre algo que fazia sozinho. E agora, ele tinha alguém que estava disposto a passar um tempo com ele.
“Na verdade, eu não estou conseguindo ler direito, então adoraria jogar” ele fechou o livro. Norman sorriu.
“Ah, que bom, por que esse é meu jogo favorito!”
“Achei que fosse futebol” Tim se lembrou.
“Jogo de tabuleiro favorito” corrigiu ele. “Você lembra das coisas, hein? Gostaria de ser assim.”
Norman pegou o tabuleiro e o colocou no tapete do chão, tirando os bloquinhos montados do lugar. Em uma das mãos ele segurava um dadinho branco. Os dois se sentaram de pernas cruzadas no chão.
“Esse jogo é legal, você nem precisa pensar muito. Vai, vamos jogar o dado pra ver quem começa.”
Ele jogou o dado por cima do tabuleiro e caiu no número 4. Tim jogou em seguida, caindo no número 5, o que significava que ele iria começar a jogar.
O jogo não tinha nenhum pião, uma das crianças devia tê-los perdido anos antes, então os dois decidiram pegar um dos blocos de construção, um bloco azul e outro vermelho, para poder substitui-los.
Em somente alguns minutos de jogo, Norman já estava nos últimos quadradinhos perto da chegada. Era quase impossível de Tim vencer naquela altura, o único jeito seria se Norman tivesse o azar de cair na última casa que tinha uma cobra que o levaria mais para baixo no tabuleiro, isso lhe daria tempo para conseguir se aproximar dele.
Era só ele tirar três, se não tirasse, já poderia se declarar vencedor.
Norman girou o dado, e para a sua surpresa, havia caído exatamente no número que ele estava pensando, o número 3.
“Eu não acredito!" Esbravejou ele. “Nem quando eu acho que eu estou ganhando eu ganho” Tim riu, nem ele esperava que ainda restasse um pouco de sorte com ele.
Eles estavam tão concentrados no jogo que não estavam percebendo a conversa das meninas atrás deles, pelo menos não até aquele momento. As vozes de Anne e Sally ficaram mais altas, elas reclamavam com Beatrice, que choramingava.
“Deixa eu ficar com essa!” dizia ela, tentando puxar a boneca das mãos de Sally, seu rosto vermelho estava prestes a gritar.
“Eu quero brincar com a Dorothy agora, você pode ficar com a Abby” Sally apontou para a boneca no chão.
“Essa eu não quero, ela é feia!” protestou a menina. “me dá a sua!” ela se virou para Anne, que segurou com força sua boneca.
“Mas eu acabei de pegar essa!” argumentou Anne. “Acho que você só está com sono, Tris, por que não vai dormir logo?”
O rosto de Beatrice se apertou e ela se pôs em lágrimas. Anne e Sally continuaram a brincar como se não estivessem ouvindo seus lamentos, na esperança de que parasse, e depois de um tempo, o choro parou.
Parou de repente, um silêncio muito estranho o seguiu. Tim e Norman continuaram a jogar, mas estranhando o silêncio repentino, Tim decidiu olhar para trás, foi então que viu Beatrice pendurada na estante de bonecas, tentando escalá-la para pegar uma boneca com rosto de porcelana que estava na última prateleira.
Ela era provavelmente a boneca mais bonita de todas elas, era por isso que Beatrice queria tanto pegá-la. Seus cabelos dourados e longos estavam presos com uma presilha ao lado da cabeça, e seu vestido longo e rosa cobria seus pés.
Sally e Anne olharam na mesma hora em que Beatrice começou a se desequilibrar, a primeira reação delas foi soltar um grito que ecoou por todo o orfanato. Norman se levantou correndo para tentar pegá-la, mas Sally pensou mais rápido e conseguiu amortecer a queda com sua telecinese antes dela chegar ao chão.
O que ela não tinha visto, porém, era a boneca que Beatrice estava tentando pegar quase saindo da estante. Seu rosto de porcelana havia tombado para frente, e seu peso estava levando a boneca abaixo. Tim havia sido o único a perceber isso, e mergulhou no chão para pegá-la antes da queda.
“Eu consegui, vocês viram?” exclamou Sally depois de se recuperar do susto. “Nunca tinha conseguido com algo tão pesado antes.”
“O que aconteceu aqui?” a Sra. Parsons apareceu aflita à porta, acompanhada de Stephen, Charlie e Edmond que tentavam espiar atrás dela.
“Não foi culpa minha, Sra. Parsons!” adiantou Sally.
“Nem minha” disse Anne, apontando para Beatrice. “foi ela que—”
“Eu só queria a boneca lá de cima!” Beatrice disse com uma voz de choro. A Sra. Parsons olhou imediatamente para cima da estante, ficando desesperada ao ver que o lugar onde a boneca estava agora era só um espaço vazio.
“Onde ela está, cadê ela?" Perguntou ela, procurando com os olhos pelo chão.
“Aqui, eu consegui pegar antes que caísse no chão” Tim a entregou nas mãos da mulher, que suspirou de alívio.
“Desculpa, Sra. Parsons...” Beatrice colocou as mãos nas costas, olhando para o chão de vergonha.
“O que eu falei pra você sobre essa boneca? Sobre todas as bonecas da estante de cima?” ela a fuzilou com o olhar. Tim nunca tinha visto ela ficar tão séria.
“Que não era para eu pegar” Beatrice murmurou baixinho.
“Isso, ela quebra muito fácil nas mãos de uma criança pequena, então não quero mais ver episódios como esse acontecendo, estamos entendidas?"
“Mas por que essa não? Eu queria ela, ela é tão bonita—”
“Ah, ah, ah” ela a interrompeu. “E sem mais perguntas, se lembra?” Beatrice fungou, concordando com a cabeça. “Ótimo. Não tem mais nada para ver aqui, meninos. Vão, vão!”
Stephen, Charlie e Edmond, que espionavam toda a conversa, saíram correndo da porta no mesmo instante. As meninas voltaram a brincar enquanto Beatrice ainda enxugava suas lágrimas.
A Sra. Parsons ainda segurava a boneca, seus dedos apertavam a roupinha com força como se tivesse perigo de a boneca cair se não o fizesse.
“Vai, vamos voltar a jogar” Norman lhe chamou a atenção.
Tim assentiu, ainda observando enquanto a Sra. Parsons devolvia cuidadosamente a boneca para seu lugar na prateleira.
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