07- Além da Superfície

A única coisa em que pensei antes de atender a porta foi vestir um roupão azul clarinho que me lembrava o céu de Prian pela manhã e esconder uma adaga no bolso, por precaução. O tecido macio roçava levemente minha pele, trazendo uma sensação de calma momentânea que logo seria interrompida.

O chão de madeira range sob meus pés descalços enquanto me aproximo da porta. Um leve cheiro de umidade e madeira velha permeia o ar. Quando a porta se abre, sou imediatamente empurrada para o lado, e o ar frio da noite invade o espaço aconchegante.

Ele entra sem qualquer autorização, sua presença agressiva rompendo a frágil serenidade do ambiente. Minha ideia inicial é enfiar a adaga em suas costas pela ousadia de entrar sem convite, mas no último instante, me contenho. Minhas mãos agarram seu braço, puxo-o com força para trás, enquanto minha perna direita passa uma rasteira. Ele cai contra a parede, derrubando uma pilha de livros desarrumados, e eu o seguro com firmeza.

— Que merda é essa, Nathan? — A pergunta sai por entre os dentes, seu nome quase soando como um rosnado.

— Eu? Você ficou louca, Ellara? Roubar do Raposo? — Ele se contorce, tentando me olhar, e um gemido de dor escapa, me fazendo sorrir involuntariamente. — Me solte, droga.

— Não sei do que está falando, e na próxima vez pergunte se pode entrar, seu brutamontes estúpido.

 — Não sabe? Você me acha mesmo estúpido, não é mesmo? — Nathan diz enquanto eu o solto. — Você era a única que sabia dos documentos de Lorde Alden.

— Eu não era a única. Você também sabia!

— Não tente virar o jogo para mim. Você não gostou do que o Raposo faria. Você é a única suspeita dele. — Ele caminha até a cama, seus olhos percorrendo tudo. Uma parte de mim quer o mandar parar, tendo um espaço tão íntimo invadido. — Vim te avisar, ele virá atrás de você.

As lanternas a óleo projetam um brilho morno, mas insuficiente para esconder as imperfeições da minha casa. As paredes de gesso têm manchas de umidade, e os móveis de madeira mostram sinais de desgaste pelo tempo.

— Sabe, Nathan, o que supostamente fiz contra o Lorde… — solto com desdém. — O povo está bem irritadiço. Sinto que qualquer coisinha poderia explodir de novo.

— O que isso significa?

— Significa que, se algo acontecer comigo ou com qualquer pessoa próxima a mim, manchetes bem parecidas com as que saíram sobre Alden vão circular toda Hiveria.

— Você só pode ter perdido a maldita cabeça, Ellara! — O assombro em seus olhos é impagável.

— Achou que eu entraria lá e roubaria provas contra Alden sem qualquer garantia? — Balanço a cabeça em desaprovação. — Acredita que supostamente cometi tal crime sem o mínimo de planejamento?

Minha voz soa segura e confiante, e tento não pensar que era exatamente o que eu faria se não tivesse pensado nessa alternativa no último minuto, roubando também provas contra o próprio Raposo. Se os Deuses realmente existem, algum deles deve ter me abençoado naquele momento.

— Isso n-

— Isso é o recado que você deve dar para ele — digo, interrompendo sua fala. — Agora vá fazer o seu serviço, como o bom garotinho de recados que você é.

Seus olhos se acendem, e não consigo decidir se o que vejo é raiva ou mágoa. Tento ao máximo ignorar qualquer simpatia que possa ter, esmagando-a até que minha consciência deixe de ser um incômodo.

Não sei ao certo qual é a história dele, mas sei que Raposo o pegou ainda criança. Um garotinho de rua, órfão, que roubava para sobreviver. A maioria veria a situação como a tragédia que era e teria o coração tocado, mas o maldito ganancioso viu o que o pobre menino poderia fazer por ele.

Desde então, ele é seu braço direito, o que pode ser resumido como faz-tudo. Nathan o olha com admiração e claramente o vê como pai, mas nunca consigo perceber se é recíproco.

— Você está se metendo em um caminho sem volta, por favor, tome cuidado — seu tom é baixo, quase um sussurro, mas suas mãos seguram as minhas com firmeza.

Ele parece terrivelmente sincero e, novamente, minha consciência volta a incomodar, dessa vez com muito mais força. Finalmente olho em seus olhos e decido segurar sua atenção antes de dizer:

— O que o Lorde fez foi um absurdo, ele merecia pagar. Não consegui simplesmente ignorar. — Gostaria de terminar assim, mas me obrigo a dizer uma última coisa. — Obrigada por vir me avisar.

— Você nunca serviu para esse trabalho mesmo. Pode esconder o quanto quiser, lá, no fundo, tem um coração mole. E não precisa me agradecer, se precisar, farei de novo — Nathan não diz o motivo, mas ele parece implícito no ar entre nós.

Quando ele enfim sai, sento na minha cama e finalmente me dou conta do que fiz.

Se tivéssemos roubado apenas as provas contra Alden, nesse momento estaríamos em uma situação complicada que provavelmente acabaria comigo e meu amigo fugindo de mais um reino. Ainda assim, sei que Raposo não se dará por vencido.

Fico preocupada por meter Isolde e Thorne nessa cilada, mas agora não adianta chorar pelo que já foi feito. Teremos que ser inteligentes e ficar atentos a tudo.

Nathan pode estar certo, talvez eu não tenha nascido para esse trabalho, mas a renda com o criminoso faria muita falta. Apenas as faxinas não são o suficiente. Começo a pensar no que farei para me virar, já totalmente acordada.

Meus olhos correm pela minha casa. Pode ser pequena, com alguns pedaços da parede caindo, mas é minha. Trabalhei muito até finalmente conseguir. Antes disso, Thorne e eu morávamos juntos, pulando de buraco em buraco, nunca parando por muito tempo em lugar algum. Quando ele conheceu Raposo, o criminoso lhe ofereceu um pequeno apartamento próximo de seu escritório. Fiquei com ele por algum tempo, mas decidi que queria ter o meu próprio espaço, deixar de ser um estorvo e deixá-lo viver finalmente a própria vida.

Não que tenha dado muito resultado, ele continua cuidando de mim como se eu fosse um bebê. Na época, realmente acreditei que bastaria sair de suas asas para que ele pudesse ter as próprias coisas. Juntei o dinheiro da faxina por meses a fio e, quando finalmente o convenci a me arrumar um emprego com Raposo, consegui o restante da quantia que precisava para comprar este lugar.

Ainda não sei ao certo o que meu amigo faz para o criminoso, ele nunca quis me contar. Não foi simples convencê-lo a me deixar participar de algo assim. Demorei muito tempo. 

Ele não gostou de me ver fazendo essas coisas, mas aceitou porque precisávamos de mais renda. O que consigo com as faxinas nesse reino é um absurdo, não há como me manter apenas com isso. Foi com um maravilhoso discurso cheio de persuasão, ideologias e críticas sociais que convenci meu amigo a me meter nesse meio. Agora nós dois perderíamos o trabalho extra, que com certeza rende mais que o outro.

Durante o dia, Thorne trabalha em uma biblioteca, uma paixão que herdou de seu pai, mas sei que não ganha o suficiente também.

O espaço, embora pequeno, sempre foi o suficiente. A cama de madeira escura ocupa o canto do quarto, coberta por lençóis de linho desgastados pelo tempo. A poltrona ao lado da janela está visivelmente desgastada, com o estofado desbotado e algumas partes remendadas, mas ainda oferece um conforto acolhedor depois de um longo dia.

O armário de carvalho, com sua superfície marcada por arranhões e manchas, guarda mais armas do que roupas. Espadas, adagas e até um arco com um conjunto de flechas estão meticulosamente organizados, prontos para qualquer eventualidade. As poucas roupas que tenho são simples, práticas, e pendem tristemente de alguns cabides.

A pequena cozinha, no canto oposto, é composta por uma bancada de madeira áspera e uma prateleira com meia dúzia de louças desiguais, todas de cerâmica, algumas com lascas nas bordas. O cheiro do chá de camomila mistura-se com o aroma persistente de ervas secas penduradas acima do fogão a lenha.

No banheiro, escondido atrás de uma porta de madeira que range, encontra-se minha parte favorita da casa: uma banheira de madeira, grande e profunda, onde posso me submergir e esquecer o mundo lá fora. A água quente, frequentemente perfumada com óleos de lavanda que minha amiga me dá, proporciona um refúgio de paz.

Olhando agora para meu lar, me lembro da insistência de Isolde para decorar o lugar, dar alguma vida. O grande espelho, que barganhei com um vendedor do mercado de pulgas, é talvez o maior toque pessoal no espaço, se não, o único. Todo ornamentado em bronze, a moldura é uma obra de arte em si, com intrincados relevos de hortênsias, minha flor favorita. As pétalas parecem quase reais, com detalhes minuciosos que capturam a delicadeza das flores, não resisti quando o vi. 

O espelho fica encostado na parede, refletindo a luz das lanternas a óleo e trazendo uma sensação de profundidade e elegância ao ambiente modesto. Gosto de passar horas em frente a ele, seja para treinar, observando cada movimento com precisão, ou simplesmente para me encarar, imaginando quem eu seria se não tivesse perdido tudo.

As armas no armário são importantes para mim, talvez fossem um toque pessoal e eu devesse usar algumas como decoração. Uma mulher com armas penduradas pela casa, rio só de imaginar o quanto alguns ficariam horrorizados.

Se tivermos que partir, não deixarei muito para trás, o que me pareceu a estratégia perfeita, mas agora que a situação quase se tornou real, me sinto vazia. Lutei muito para ter esse lugar, e talvez Isolde esteja certa. Deveria ter um toque de quem sou, mesmo que normalmente só venha aqui para descansar. Apesar de simples, é inegavelmente meu.

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