|CAPÍTULO 03 • DEIXANDO A EUFORIA I|
Após voltar para o apartamento 201, Ali sentou na banqueta branca de madeira junto à bancada de quartzo da mesma cor, que integrava a sala e a cozinha. Atento, acompanhava o movimento agitado de Luna que vez e outra coçava a testa para se concentrar no que precisava fazer ou o jantar não iria ser feito. Retirou os últimos produtos dos sacos de compras e os guardou.
— Todos esses chocolates são seus? — perguntou surpreso com a quantidade.
— Não consegui decidir qual comprar — admitiu pensativa.
— Comprou praticamente todo o estoque. É indecisa a esse ponto? — estranhou num tom brincalhão.
— É sempre tão observador? — questionou com um sorriso alegre.
— Não dá para ignorar algumas coisas. — Se divertiu, olhando os chocolates amontoados ao lado do fogão.
Os pensamentos de Luna desaceleraram gradualmente e começaram a ficar menos tumultuados. Foi até a bancada e debruçou o corpo sobre a superfície brilhosa, que refletia tudo o que estivesse em sua perspectiva. Apoiada no antebraço aproximou o rosto do dele, baixou o olhar devagar para a boca de Ali, e subiu novamente até o olhar indecentemente magnético.
— Como se sua atenção tivesse sido roubada? — indagou num sopro sensual.
— Exatamente... — murmurou com a voz rouca sem recuar com a proximidade.
A mente dela ficou em silêncio por um minuto. Apenas a barriga queimava, se desmanchando para absorver a atitude ousada. Isso não a impediu, ao contrário, lhe dava mais vontade de ir além do pequeno espaço que os separavam.
Estavam tão perto que ela pôde observar cada minúsculo detalhe do rosto dele. Do pequeno sinal isolado às linhas de expressão mais profundas. Quando ele umedeceu os lábios expondo uma pequena fração da língua, a fez morder suavemente parte da carne dentro da bochecha. Admirou o desenho da boca dele por baixo do bigode, buscando a borda escondida pelos fios grossos.
Uma gata que havia entrado através da janela, subiu na bancada onde ambos se encaravam e testavam seus limites. A felina miou pedindo comida e após ser ignorada, interrompeu o momento buscando carinhosamente a atenção de Luna, desfilando faceira entre os dois. Se afastaram sorrindo com a intromissão inusitada.
Ali acariciou o pelo felpudo da gata, que correu ao ver Luna colocar uma lata de comida para gatos na escada de incêndio, no lado de fora do apartamento. Aproveitou que ela estava ocupada e sorriu incrédulo balançando a cabeça. O encontro com a vizinha se desenrolava de um jeito divertido e diferente. Em alguns momentos simplesmente tudo parava, e a temperatura subia.
— É sua gata? — perguntou quando ela voltou para a cozinha.
— Não. Sempre ofereço comida aos gatinhos e eles voltam pedindo mais. Aprendem rápido — explicou tediosa.
Luna se concentrou na necessidade de preparar o jantar, sem se incomodar em ser observada pelo visitante. Prendeu os cabelos em um coque bagunçado, depois, tirou do braço o relógio colorido e exageradamente grande. Usando sua intimidade com a cozinha, iniciou numa frequência rápida o preparo da refeição.
Retirou da vasilha plástica, que estava na geladeira de aparência moderna, uma porção de macaxeira. Transferiu a raiz cozida para uma pequena panela antiaderente que derretia a manteiga no fogão de indução soltando um vapor quente. Pegou noutra vasilha um grande pedaço de carne de sol e colocou em uma pequena chapa para preparar a proteína acebolada.
A carne assava em temperatura média deixando na cozinha um apetitoso aroma, enquanto ela cortava em pequenos pedaços o tomate, a cebola e o pimentão verde. Pôs os vegetais picados em uma tigela de cerâmica com estilo oriental, em seguida, liberou no ar gotículas de limão numa espécie de aerossol orgânico ao espremer a metade de um sobre a vinagrete, finalizando com a adição de azeite e uma pitada de sal.
Arrumou caprichosamente os pratos de pedra de ardósia com talheres coreanos sobre a bancada. Rapidamente, a refeição estava pronta para surpresa de Ali, que antes de se servir, agradeceu em turco, saudando sua anfitriã com alegria por ter sido convidado.
— Elinize saglik — pronunciou, deixando Luna curiosa. — Significa que Allah abençoe suas mãos, é algo que sempre dizemos a quem preparar nosso alimento.
— É costume muito gentil... obrigada — agradeceu contente. — Bom apetite, espero que goste.
— Afiyet olsun — respondeu em turco.
— Imagino que me disse "bom apetite" — supôs curiosa.
— Exatamente — confirmou, observando Luna tentar reproduzir o som da palavra baixinho.
— Afiyet olsun — repetiu mais uma vez sem dificuldade após um tempo e sorriu, deixando Ali surpreso com a boa pronúncia dela.
Antes de começar a comer, explicou se tratar de uma refeição típica da região nordeste do Brasil. Contou que a macaxeira era uma raiz, que em alguns lugares é chamada mandioca e, em outros, se fala aipim.
Ali tentou pronunciar as palavras em português e se saiu bem, apesar de travar a língua um pouco. Ficou curioso com a carne que foi servida, como as fibras eram secas e saborosas. Luna ficou feliz em continuar a explicação, esclareceu ser aplicada uma camada fina de sal na carne e em seguida, colocada para secar ao sol, por isso o nome carne de sol. Ele explicou que na Turquia faziam esse processo com a linguiça.
Sentados lado a lado, ela inclinou-se ficando bem perto dele, pegou sobre a bancada uma garrafa de vidro com um tipo de óleo amarelo, virou e deixou escorrer um fio sobre a macaxeira no prato dele. Em seguida se serviu explicando ser manteiga da terra, que deixava a macaxeira mais gostosa, e que ela mesmo havia feito com a nata do leite.
— Você cozinha muito bem. Acredito que vou voltar pedindo mais, aprendo rápido — brincou e Luna liberou um riso dentro da sua garganta com a referência que ele fez sobre os gatos.
— Na verdade, não exige muito. Os produtos são de qualidade, então é basicamente levar ao fogo — justificou que não era mérito seu.
— Você não aceita elogios...
— Como assim? — perguntou, virando-se para ele que a respondeu arqueando os cantos da boca e encolhendo os ombros.
— Alguém veio do seu país e te trouxe essa comida? — Mudou o assunto sutilmente.
— Sim, uma amiga da minha tia veio conhecer Nova York e me trouxe esse maravilhoso presente — esclareceu sem insistir no assunto anterior.
Enquanto Ali comia, chegou uma mensagem no celular de Luna. Ao checar a notificação, ela aproveitou e desativou o som do aparelho para fotografar Ali sem que ele percebesse. Em sua aventura furtiva, acabou atendendo uma chamada de vídeo da sua tia Lena que estava no Brasil, a qual pretendia ignorar, pois não queria atrapalhar o jantar com o vizinho.
— Oi, amor! — Cumprimentou animada, a mulher em português, toda carinhosa.
— Falando nela... — comentou com Ali, tapando o fone do aparelho. — Oi, amor! — respondeu com a mesma empolgação e carinho. — Tia Lena, estou com visita, depois te retorno.
— Que visita? — Entonou a voz de um jeito engraçado. — Você não conhece ninguém aí — pontuou sabendo ser conhecedora de todos os aspectos da vida da sobrinha.
— É o meu vizinho, ele me ajudou e acabou ficando para o jantar — esclareceu para a senhora vistosa de aspecto jovial, que estava do outro lado da tela.
— Hmm. Liguei para avisar que está no horário da sua medicação — disse gentilmente.
Luna foi até a bolsa e colocou um comprimido na boca, sem deixar que a visita percebesse. Engoliu o remédio e mostrou a língua para a tia. Os medicamentos que tomava não eram usados de maneira correta para o transtorno, eram apenas paliativos para conter os picos de humor de forma mascarada, que certamente prejudicava no longo prazo, ao invés de melhorar os sintomas. Essas reações eram desconhecidas por ela.
— Muito bem! Quero conhecer ele e dar um oi. Só te vejo sozinha, é um momento histórico — disse animada.
Direcionou a câmera para Ali, e o apresentou para Lena, que cumprimentou o turco com um inglês arrastado. Ela não treinava muito, também não fazia questão de enrolar tanto a língua, apesar da insistência e paciência do professor. Só aprendeu mesmo para agradar à sobrinha.
De qualquer forma, ele compreendeu o que foi dito no diálogo rápido. A senhora achou graça quando o homem mostrou a macaxeira, e a carne de sol dizendo os respectivos nomes com a língua ainda travada.
— Como ele é charmoso... No Brasil não encontro um desse para mim. Ele é de Nova York mesmo? Não parece americano — observou em português.
— Não, ele é turco — informou a tia.
— Turco? E você conheceu esse turco onde, Luna de Deus? Por acaso sabe quem é ele? Se for um homem bomba, minha filha? — Lena ponderou preocupada.
Despediu-se sem dar atenção à desconfiança da tia. Além do comentário infame, achava um absurdo essa generalização desavisada. Colocar todo um grupo no mesmo saco, ainda que individualizar fosse inviável em determinados aspectos, imaginar que uma infinidade de pessoas seria tão uníssona, só a fazia considerar tal constatação racionalmente ilógica.
Ainda que eufórica, a inquietude que por vezes lhe tirava a noção de perigo ou limites, não lhe tirou o entendimento básico de seus valores para tolerar tal atitude. De certa forma, Luna entendia as limitações culturais de sua tia.
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