|CAPÍTULO 01 • HIPOMANIA|


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Nova York, Estados Unidos, junho de 2017.

O olhar de Peter a acompanhava Luna por todos os lados da cozinha, como se uma assombração lhe perseguisse. Por vezes, o repelia demonstrando impaciência. Apesar de ser alguém que, possivelmente, daria uma oportunidade de se o conhecesse melhor em outra circunstância, mas na realidade dela, era apenas um grande inconveniente por não desistir, ainda que desprezado educadamente algumas vezes.

Homens bonitos e legais não mudavam o propósito de fugir dos envolvimentos amorosos. A paixão lhe trouxe problemas e despertou os sentimentos mais difíceis de controlar, que o diga sua única experiência. Talvez aquele que desejasse apenas algo casual tivesse mais sucesso, o impedimento para isso era que Luna não saía, tão pouco divagava em sites e aplicativos de relacionamento.

Reprimir uma vida social não era tão difícil. Embora fosse uma tarefa cansativa, mediante infinitas desculpas que eram um tanto quanto constrangedoras e, deixam óbvias a falta de interesse em quem lhe dedicava atenção, gerando mal-estar. "Vou ver e te falo", "outro dia", "infelizmente já tenho compromisso" essas eram desculpas corriqueiras usadas pela brasileira. Pessoas buscam naturalmente se conectar por serem seres sociáveis, o que não se aplicava a ela pela bagagem que tinha.

O apetite por contato físico íntimo existia. Em muitas ocasiões, despertado pelos livros de romance com homens perfeitos, criados para alimentar uma linda fantasia. Certas vezes era preciso neutralizar o pequeno incêndio com um banho gelado da Creamy — nome que usou para personificar sua parte íntima, em alguns momentos, Luna possuía um bom senso de humor.

Por ora, o banho funcionava, no entanto, parecia acumular ainda mais sua libido. Ignorar constantemente e sufocar seu ânimo jovem por tanto tempo, gerava um conflito intrapessoal, mas seu conhecimento profundo de si mesma, não amenizava a necessidade de socializar para atender esse aspecto, dentro dos seus anseios.

Por vezes, entrava em discursão com sua parte íntima, e findava se dando conta do quão esquisito parecia esse debate. Tinha certeza que seus variados sonhos eróticos, eram uma projeção dessa personalidade anexa, o que não impedia o fundo da calcinha amanhecer úmida, sob uma viscosidade liberada durante o sono, fato que inspirou o nome da sua intimidade quando preferiu a individualizar. E, para provar seu ponto, a tal Creamy concluía sua demonstração experimental noturna com a seguinte frase: com um homem é melhor!

Luna não refletia alguém incrivelmente linda e de beleza impecavelmente retocada, onde todos os homens rastejariam a seus pés, mas a simplicidade polida e o olhar marcante, lhe davam um brilho especial. Dotada de uma aparência física comum com um arredondado bumbum, que segundo sua tia esse seria o único destino de todo o brigadeiro que comia, pois era o único lugar em que engordava.

Quem olhasse com atenção, não deixaria que passasse despercebido, admirar a mulher de cabelos longos e sedosos na cor castanho médio, com o rosto adornado por traços finos, onde sempre ostentava uma expressão demasiada séria, desproporcional ao conjunto completo. Luna era uma incoerência em vários aspectos.

Alguns, que encontraram nela um interesse amoroso como o pobre Peter, não chegaram a ser tão insistentes, fazendo poucas tentativas frustradas. Outros, que apenas admiravam sua beleza sutil, ela nem havia percebido, pois, está sempre centrada em pensamentos aleatórios ou contemplativa com relação ao ambiente e o próprio ritmo.

Trabalhava como ajudante de cozinha em um restaurante conceituado de Nova York, estabelecimento que não admitia erros dos seus funcionários, tudo tinha que ser feito com precisão e rapidez. A experiência em cozinhas de outros países, atraiu o interesse do renomado Chef, que comandava o lugar, em contratá-la. Ele sempre a perguntava sobre os preparos de pratos típicos dos lugares por onde havia passado.

O emprego a ajudou com o visto, embora houvessem outros caminhos para permanecer no país, essa opção foi a escolhida. Um visto de trabalho atendeu a sua necessidade pelo fato de que no final do ano mudaria outra vez de cidade, ou quem sabe de país. Inclusive, já era tempo de pensar na próxima parada. Nos últimos meses, mergulhou na missão de conhecer a cidade por completo em qualquer tempo livre, e isso lhe tirou o foco de outras coisas.

Cozinha de restaurante é um lugar barulhento por natureza, todos estão sempre falando algo, indo de um lado para o outro, marcando seu passo numa dança agitada sem esbarrar no colega, ou poderia desencadear um desastre. Ela, porém, conseguia a proeza de falar o mínimo, mesmo atenta a todos os movimentos, mas concentrada em suas tarefas.

Procurava emprego em restaurantes exigentes não pelo bom salário, e sim, por trabalhar o suficiente para não ter tempo de pensar em nada. Deixar o seu corpo pedindo descanso, era uma estratégia para a sua mente não ter oportunidade de aborrecê-la. Não se tratava de uma brasileira imigrante buscando qualidade de vida nos Estados Unidos, e o dinheiro há muito tempo não estava entre seu foco principal, pois o único objetivo era manter o próprio estilo de vida.

Em pouco tempo, Luna se tornou uma das responsáveis pelo preparo da mise en place do almoço, devido sua atenção a cada detalhe, atendendo o exigido por seu superior. Assumir aquela posição era gratificante, a fazia sentir como alguém capaz de executar tarefas mais importantes em uma rotina comum.

Ao final do serviço, Peter, que era o Sous Chef, cotidianamente lhe oferecia carona na bela moto BMW, embora fosse dispensado com pouca cerimônia. Terminado o expediente, conseguiu sair do serviço sem que ele percebesse, as desculpas estavam repetitivas, acima de tudo, já não sobrava muita paciência para o colega.

Gostava de andar nas ruas com os fones no ouvido. Era uma estratégia para evitar ser abordada, o que tinha chances de ocorrer quando encontrava um brasileiro, porque os nova-iorquinos não tinham o hábito de "puxar conversa". Não que seus compatriotas fossem desagradáveis ou algo do tipo, o motivo era apenas se manter reclusa. Para ela, era mais fácil viver assim. Fora isso, ouvir música era, realmente, um dos passatempos preferidos.

Em dias intercalados, antes de retornar para o antigo prédio suntuoso onde morava, passava pelo mercado. Fazer suas compras era terapêutico, descontraía até sua feição sisuda. Relaxada, vagava pelas gôndolas avaliando cada produto disponível, curtindo seu mundinho paralelo com trilha sonora.

O cantor preferido soltava a voz nos fones, e a batida contagiante coincidiu com um pico de humor. O que liberou aquela vontade de dançar que muitos sentem em lugares aleatórios. Com a grande diferença de conseguir controlar o mal súbito chamado: balançar o quadril. Muitos evitam por se sentirem ridículos, pois, agitar o corpo em locais públicos pode gerar incômodo, como também censura das pessoas em volta.

O mérito dessa questão não é o ponto, e sim, saber que o caso de Luna não era bem esse. A questão é que ela não controla suas ações, quando se desencadeia um estado de hipomania, uma das curvas da bipolaridade. Tagarelar, super disposição, ficar extremamente sociável, usar roupas duvidosas ou até mesmo perder total noção de perigo, estavam entre os sintomas da falha em suas conexões nervosas. A falta de inibição para dançar e cantar em pleno mercado, é resultado do transtorno. Deixando de mencionar tantas outras consequentes possibilidades.

Relutar em fazer o tratamento, em definitivo, não é a melhor escolha, e Luna tinha total consciência disso. Erroneamente, permitia que sua personalidade moldasse seu comportamento atual, assim como a forma que encarou vários episódios na sua trajetória, e também, o transtorno. Transgressora de si mesmo, ousava desobedecer às recomendações médicas não para fugir, mas, para de maneira ilusória, se definir por completo em uma revolução pessoal na sua própria existência.

Passou por maus bocados, e pagou um preço alto por suas escolhas inconsequentes. Ainda que tenha vivido um verdadeiro inferno, conseguiu estabelecer seu objetivo principal: a própria independência como indivíduo e uma vida isolada de familiares e amigos.

Vivia aventuras solo no auge da sua introspecção, amadurecendo e se delimitando constantemente, tal qual uma mãe severa vigia sua filha donzela para que não seja envolvida em relacionamentos furtivos. No caso dela, para que não englobe pessoas em sua realidade, assim, evitava sentir culpa ou qualquer outro sentimento, além das possíveis consequências.

Regia sua vida social controlando esses pontos, pois supostamente, trariam mais conflitos do que os quais já está obrigatoriamente exposta. Seja por hipomania ou depressão, as alternâncias básicas do seu humor bipolar. O que poderia ser evitado sem tantas manobras, apenas com o tratamento médico.

Pelo quinto dia consecutivo, ela permaneceu vibrando animação total. Dormia poucas horas por noite e vivia de pura felicidade, apesar de nem sempre a hipomania ser sobre sentimentos agradáveis, os aspectos são variantes e imprevisíveis.

Nos últimos dias tagarelava com todos no trabalho, mal dando oportunidade das pessoas falarem, menos com Peter. Na sua mente turbulenta e repleta de armadilhas, de alguma forma o subconsciente dela, enxergava nele uma ameaça, muito mais do que o normal, praticamente congelando a cada tentativa de aproximação dele.

O dia no trabalho foi esquisito. O clima entre os colegas de cozinha ia bem, mas Peter a evitava com um jeito dolorido. Em seu humor natural, incomodaria ver a situação entre os dois chegar a tal ponto, mas, causava alívio o afastamento dele.

Saiu do restaurante. Antes de ir para sua casa, passaria no mercado, sentia uma vontade incontrolável de comprar chocolate. Da moto, no lado oposto da rua, Peter a olhava por dentro do capacete, e pensava o quão doloroso pode ser gostar de alguém que, sem dúvidas, é o seu par ideal para viver um romance único em vários cenários das suas fantasias. Ela nem parecia se dar conta disso e só se afastava dele sem a menor justificativa plausível.

Ligou a moto que vibrou ao girar o acelerador no guidom, o que também fez o motor roncar e exibir pelo som um pouco da sua potência. Guiou a motocicleta em baixa velocidade até ela, que estava prestes a virar na esquina, e parou desacelerando completamente ao seu lado na calçada.

— Carona? — ofereceu na expectativa que Luna aceitasse.

— Sei que sou a única da equipe que não tem veículo próprio — disse forçando um tom agradável —, mas é porque gosto de andar e carona tira o propósito disso. — Subir na moto era tentador, mas abraçar Peter era um precipício.

— Você parece diferente nos últimos dias — observou.

— Achou? — Sorriu misteriosa, o que fez o colega entender como uma oportunidade única para um convite.

— Amanhã é sua folga, gostaria de te levar para conhecer um pouco da cidade — ofereceu. — O que acha?

— Já tenho compromisso — mentiu. — Preciso ir agora. Tchau! — Saiu fugindo descaradamente do colega.

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