Capítulo 26 - Tudo deve acontecer hoje: para o bem... ou para o mal.


Olá lindxs,

Estamos entrando na reta final do projeto. Espero que gostem desse capítulo. 

deixe sua estrelinha e seu comentário. e até a próxima att.

na mídia: sakrileg de stoa

**

Capítulo 26 – Tudo deve acontecer hoje: para o bem ou para o mal.

A nova manhã nasceu sobre Moldovan, revelando um céu inteiramente acinzentado. Os sinos da catedral começaram a soar, avisando os crentes e também os ateus, recordando-lhes que aquele era um dia de penitência. Marcus caminhava compassadamente pela ampla rampa ascendente que conduzia à entrada da catedral, seus olhos vasculhando a praça deserta, como se pelo puro poder da vontade pudesse fazer Elazar aparecer. Estava preparado; a esta altura, já se encontrava preparado até demais.

Ansiava por aquele momento. Na noite anterior não havia descoberto o menor sinal de Elazar Bellini; nada lhe fora relatado, nem mesmo remotamente suspeito. No entanto tinha certeza de que o antigo alfa estava na cidade... tanta certeza, como a de ser ele, Marcus, o homem que o mataria.

O Bispo caminhava incessantemente por seu quarto, torcendo o anel de esmeralda no polegar. Elazar estava tentando vir ao seu encontro, obcecado pela vingança, disso tinha certeza. Tudo e todos que enviara contra ele havia falhado. Era quase como se aquele homem estivesse sob alguma espécie de proteção divina...

Contudo, mesmo que assim fosse, o que tinha a temer? O antigo capitão não teria a mais remota possibilidade de transpor o anel de guardas com que circundara a cidade e a si próprio. Por outro lado, não havia maneira alguma dele poder quebrar a maldição. O Bispo disse para si mesmo que sua própria alma estava a salvo do inferno, enquanto Elazar permanecesse amaldiçoado... Elazer e Isaac...

Distraidamente, ele pegou um doce na bandeja de prata sobre a mesa dourada, sob a janela. Examinou o céu, novamente cinzento pelas nuvens. Chovera quase que diariamente nas duas últimas semanas...desde que aquele miserável ladrão escapara dos calabouços.

Talvez a seca houvesse, finalmente, chegado ao fim. As colheitas seriam fartas no ano seguinte. Sem dúvida, este era um sinal de que ele nada tinha a temer. Desta vez, quando aumentasse os impostos, o povo pagaria... O Bispo lambeu os lábios.

Soou uma batida à porta. O Bispo se virou da janela e olhou para o leito. Seu amante emergia de um enovelado de peles e sedas; a seu gesto, ele se ergueu da cama como um gato flexível e, enfiando um robe, desapareceu por uma porta, dando para outro dos aposentos privados do Bispo. — Entre! — ordenou ele.

Dois acólitos entraram no quarto, reverentemente, carregando os pesados brocados e cetins rendados de suas vestes para celebrar a missa. Os sinos da catedral continuaram tocando e ecoando através da cidade, à medida que a manhã ia clareando.

De pé ao lado de sua carroça, Damastor olhou para cima. — Talvez uma hora, mais ou menos... — murmurou, falando para o ar e esperando uma resposta. — Quem pode dizer, com um céu desse jeito? — Ergueu a parte do capuz debaixo do queixo, tiritando de frio, enquanto observava as nuvens nervosamente. Através de suas pesquisas, durante noites e estações intermináveis, convencera-se de que aquilo que acreditava acontecer, só poderia acontecer nesse dia.

Entretanto, se não pudessem ver o sol, como poderiam dizer quando estava começando?

O grasnido estridente do falcão chegou até ele, vindo de muito alto e distante. O monge tornou a olhar para cima.

Elazar saiu de trás da carroça, também olhando para o alto, de cenho franzido, enquanto calçava as luvas. — Hoi! — gritou. Viu o falcão revoluteando muito alto, no céu tomado pelas nuvens. Depois planou acima dos telhados de colmo da cidade e distanciou-se. O shifter olhou para Damastor, a testa franzida pela preocupação.

— Ele voltará — disse o monge, jamais duvidando de que o elo entre eles fosse rompido. — É com Filipe que me preocupo.

— Eu confio nele.

Elazar meneou a cabeça, despreocupado, mas Damastor deixou os ombros caírem ceticamente. Aquele rapaz era muito instável. Chegado o momento de realmente arriscar a vida, que certeza teriam de sua lealdade? — Se ele deu o fora a noite passada, quando teve oportunidade, você é um homem morto — murmurou o monge.

**

Filipe agitou-se na prateleira do respirador, ao perceber que realmente podia enxergar as mãos na frente do rosto. Bebeu o último trago de vinho e levantou-se. A claridade do dia infiltrava-se pelo gradil entulhado de detritos; mais luminosidade se escoava para o subsolo, chegando a uma profundidade maior nos ductos. Ele estirou cautelosamente o corpo dolorido e gelado, em seguida começou a caminhar ao longo da base, rumando para as galerias. Ocorreu-lhe que havia nascido em uma prisão e que agora, provavelmente, morreria em um encanamento.

Murmurou, com uma careta — Eu devia ter dado o fora disso, quando tive oportunidade...

**

Marcus desceu os degraus da catedral e cruzou a praça. Uma tropa montada o esperava — seus melhores homens, a guarda de honra que escoltaria o Bispo e o clero para os serviços religiosos. Com expressão feroz, montou em seu garanhão cinza e guiou a tropa até a Catedral de Moldovan.

Os jardins da mansão episcopal já pululavam com a elite do clero reunido. Padres e frades, monges e monsenhores juntavam-se em grupos, como aves exóticas, envergando suas melhores vestes. Alguns estavam de cabeça baixa e murmuravam preces, enquanto outros vagueavam por entre bacias de frutas e bandejas de guloseimas, acolhendo com risinhos sufocados os últimos mexericos.

Um silêncio repentino pairou sobre o pátio, quando o Bispo emergiu do átrio, uma vistosa figura envolta em branco e ouro. O clero reunido se voltou ao mesmo tempo, quando todos pressentiram a chegada de seu líder espiritual. Ele parou por um instante, estudando seus rostos atentos e nervosos, antes de erguer a mão em uma bênção que tinha mais o significado de uma ameaça. Os religiosos que o contemplavam ajoelharam-se apressadamente, já contando seus pecados.

O Bispo passou por entre eles, indicando a cabeça à direita e à esquerda, enquanto fazia gestos, indicando que todos deviam formar-se para a procissão. Vários frades amontoaram-se em torno dele, erguendo um palio carmesim acima de sua cabeça. O Bispo guiou a fila de seus seguidores até os portões do jardim, onde Marcus o esperava com a guarda de honra — ainda capitão, mas somente por falta de candidatos adequados. O Bispo o recebeu friamente.

O clero reunido atrás do Bispo começou a se organizar por ordem hierárquica, desde monsenhores ricamente vestidos, a humildes freiras e frades. Os portões maciços da mansão episcopal foram abertos de par em par e a procissão ganhou as ruas, fluindo através da cidade em esplêndida exibição, antes de rumar para a catedral. Os cidadãos da cidade flutuante enfileiravam-se ao longo do trajeto ou se debruçavam às janelas para contemplar a passagem da procissão.

A riqueza das vestes, os vivos estandartes e as cruzes douradas, os incensários enchendo o ar de fumaça perfumada, eram muito mais belos e suntuosos do que já vira a maioria dos espectadores durante o ano. O cântico dos religiosos e o badalar dos sinos da catedral enchiam o ar de uma música incomum.

**

Para Filipe, o som dos sinos e o desfile nas ruas da cidade, acima dele, pareciam consideravelmente mais distantes do que os portões do paraíso. Centímetro a centímetro, ele se alçou pela tubulação que ia dar na catedral, enfiando a corda que atara ao redor da cintura por entre os enferrujados anéis de ferro, como uma linha de segurança, enquanto fazia a escalada.

Ele parou a meia altura do cano, respirando com dificuldade e pendurado à corda, quando ousou olhar para cima novamente. Viu a rosácea muito no alto, como uma visão, um súbito e ofuscante jato de brilho e escuridão assaltando seus olhos, exatamente como a vira antes uma vez. Piscou e as cores entraram em foco. Entretanto, ao recordar o que o trouxera de volta àquele lugar, a radiosa ilusão de preto e branco pareceu simbolizar uma promessa. Um dia sem noite, uma noite sem dia.

Içou-se penosamente durante os últimos poucos metros e amarrou a corda no anel mais alto, libertando as mãos para trabalhar. Puxou sua adaga da bota e começou a cavoucar os erodidos parafusos de metal que mantinham o gradil no lugar.

**

Elazar e Damastor ficaram ouvindo, quando os sons da procissão adquiriram intensidade e depois foram diminuindo aos poucos na distância, a caminho da catedral.

Elazar olhou para o céu, onde um dia perfeitamente normal tinha seguimento, por trás de um impenetrável lençol de nuvens. Tornou a baixar os olhos, de mandíbulas crispadas, e caminhou inquieto para junto do garanhão. Começou a soltar as correias que mantinham o cavalo atrelado à carroça.

Damastor consultou as nuvens nervosamente, ao perceber a agitação de seu companheiro. — Ainda deve ser cedo. Assim que as nuvens se abrirem...

Bellini apanhou a sela na carroça e se virou para o monge. — É dia, velho! Pleno dia! Tão dia como foi ontem e será amanhã, se a Deusa me conceder vida para vê-lo! — Afivelou a sela ao lombo de Trovão. Damastor fitou o chão, sem saber o que dizer.

**

Além do amontoado de construções que os separavam da catedral, a procissão do clero penitente serpenteou em passos lentos para a praça aberta. A tropa da guarda montada formou em leque diante da entrada da igreja, em posição de sentido, quando o clero passou pelo meio dela e começou a subir a rampa de acesso. O Bispo fitou Marcus de relance, ao passar por ele, e a expressão de seus olhos distava muito de uma bênção. O capitão da guarda assentiu imperceptivelmente.

**

Logo no interior da catedral, Filipe terminou com o último parafuso para afrouxar o gradil. A peça enferrujada caiu pela grade, ricocheteou ao lado dele e desceu pela tubulação abaixo, perdendo-se na escuridão. Eufórico, ele empurrou o gradil para cima e sentiu que começava a levantar-se.

Um cavernoso bumm ecoou pela catedral, quando as portas esculpidas e maciças foram escancaradas. O som dos cânticos inundou o vasto saguão e a procissão começou a entrar.

Filipe avistou o Bispo, silhuetado à súbita luz do dia, sua figura pequena em comparação a imensa entrada arcada da catedral e das gigantescas portas de madeira. Com uma silenciosa praga de frustração, ele tornou a mergulhar na tubulação, deixando o gradil cair sobre sua cabeça.

**

No beco escondido, Elazar deslizou o freio para a boca do garanhão e ajeitou a rédea no lugar, com fatalista tranquilidade. O falcão se empoleirara na sela, vigiando seus preparativos. O shifter ergueu o rosto subitamente, ao ouvir o barulho de patas contra as lajes do calçamento, quando alguém se aproximava deles a cavalo, vindo da entrada do beco.

Virou-se para Damastor, com o punho levantado, indicando o falcão sobre ele. O monge assentiu, o rosto franzido de preocupação, quando Bellini passou a ave cuidadosamente para seu próprio pulso e se escondia atrás da carroça, desaparecendo de vista.

O guarda montado percorreu a viela e chegou ao fundo sem saída, encontrando-o inesperadamente ocupado por um velho em uma veste encapuzada. — Oh, graças a Deus! — exclamou o velho monge, sorrindo para ele com aparente alívio. — Para que lado fica a catedral, meu filho?

O olhar suspeitoso do guarda abrangeu o monge de pé, com uma ave de rapina empoleirada incongruentemente em seu braço, o cavalo encilhado e sem cavaleiro... a carroça coberta com uma manta. Aproximou-se diretamente da carroça, ignorando o monge, e puxou a manta para um lado.

Elazar o esperava, com a besta carregada. Quando o guarda fez menção de puxar a espada, ele disparou. O homem caiu do cavalo, com o coração perfurado pelo dardo.

Elazar saltou da carroça e caminhou até o corpo do homem caído, cuja espada recolheu. Sopesou-a, testando-lhe o equilíbrio; sentiu seu gume com o polegar e tornou a girá-la, experimentando-a. Damastor estava errado, como ele soubera que estaria, o tempo todo. Já esperara demais, não adiantava esquivar-se à sua sina por mais tempo. Virando-se, tornou a caminhar para o garanhão, com a espada em punho.

O monge bloqueou sua caminhada subitamente. — Não seja tolo, Elazar! Esta chance nunca se repetirá!

O ex alfa da matilha Bellini o fitou com expressão desolada. — Você tem razão, velho. A missa logo terminará. Se Filipe fez sua parte, posso matar o Bispo agora... ou nunca.

Ergueu o braço e o falcão voou do pulso de Damastor para o seu. Elazar passou pelo monge e chegou ao lado do garanhão. De um dos alforjes da sela tirou um pequeno capuz de couro e peias. Ajustou o capuz na cabeça da ave. O falcão deu um grito estridente, subitamente cego, e fincou mais profundamente as garras no pulso enluvado, a fim de sustentar-se.

Elazar se virou para o monge. — Se a missa terminar tranquilamente e os sinos voltarem a soar... você saberá que fracassei.

— E... se eu ouvir os toques de alarme? — perguntou Damastor.

— De um modo ou de outro, serei um homem morto.

— E...então? — perguntou o velho monge, cautelosamente.

Elazar tornou a aproximar-se dele e entregou-lhe o falcão. Entregou-lhe também as peias e a adaga de Isaac. — Tire-lhe a vida — disse. — Faça-o rapidamente e sem sofrimento.

Damastor recuou, chocado. — Não posso fazer isso! — sussurrou. — E Filipe? Ele também é seu companheiro e de Isaac. Não deveria ser consultado dessa decisão?

— Pois então não faça! — exclamou Elazar, furioso. — Filipe não foi marcado por nenhum de nós dois. Quando estivermos mortos ele vai voltar para sua vida anterior. Deixe Isaac viver sem mim, condene-o a uma meia vida de sofrimento e infelicidade eternos!

Damastor o fitou de olhos esbugalhados, abalado pela percepção de que o fim chegara afinal, a despeito de todas as suas preces, apesar de tudo quanto fizera para obstruí-lo. — Você sabe que não é assim que funciona. Filipe já pode sentir os laços que o prende a vocês. Terei que mata-lo também?

Elazar olhou as nuvens, depois encarou o monge de novo. — Já chegou a refletir um dia, velho, que foi assim que o seu Deus Único quis, o tempo todo?

Virou-se abruptamente. Tornou a remexer em um alforje e dele retirou seu capacete de capitão. Tocou brevemente as asas douradas com as pontas dos dedos e depois o colocou à cabeça. A seguir retirou o manto azul de seda de Isaac, uma peça que carregara consigo por tanto tempo, uma promessa fútil e em vão. Entre as dobras do tecido estava uma mexa dos cabelos dele, que também havia guardado. Rasgou uma pequena tira da barra do vestido e a amarrou frouxamente sobre os fios de cabelo. Em seguida atou a tira do vestido em seu braço esquerdo, perto do coração. Subiu para a sela.

Fazendo Trovão dar meia-volta, começou a descer a viela, sem olhar para trás. Às suas costas, o falcão deixou escapar um grasnido agudo e angustiado, quando percebeu que ele se afastava. Elazar pestanejou, com a impressão de que seu coração era dilacerado, arrancado de seu peito. Chegou ao final do beco e dobrou para a rua, encaminhando-se para a catedral.

Depois que Elazar desapareceu de vista, Damastor baixou a cabeça, sozinho no beco. Recordando que aquele era o dia santo de confissão e penitência, persignou-se e murmurou — Oh, Divino Pai, livra-me de meus pecados e livra também estas duas bondosas pessoas da maldição que as aflige. Já que nos conduziste a este extremo, colocamos humildemente nossas vidas sob a misericórdia infinita e de Tua eterna graça!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top