McIntosh
15 de abril de 2017
Abri os olhos e encarei o teto. Não me levantei da cama. Não me mexi. Por uma. Duas. Três horas. Quem sabe?
— Dalila — ouvi o tom exigente de Gabriel, seu rosto aparecendo no meu campo de visão. — Você quer me explicar por que fugiu da escola na quarta-feira?
Pisquei apática, observando Gabriel pelo canto dos olhos, ajoelhado ao lado da minha cama, sua cabeça inclinada para o lado, olhos cerrados e lábios apertados em uma linha.
— Manda ele ir pro inferno — Iddie resmungou do seu lugar no meu travesseiro, sua voz baixa e cansada.
— Vai para o inverno — resmunguei, fechando os olhos na tentativa ingênua de fugir da vida.
Já era sábado e desde então, todos os dias, Gabriel fazia a mesma pergunta, procurando um motivo. Um motivo para eu tentar impedir um assalto. Um motivo para eu ter fugido da escola. Para eu não estar indo à escola. Para eu não sair da cama. Para eu não me alimentar. Não sorrir mais. Não falar. Para eu não parecer mais eu.
E o motivo para todas essas perguntas tinha nome e sobrenome: Catarina... E eu não sei o sobrenome dela, então, sim, definitivamente tem um nome, mas não um sobrenome conhecido por mim.
— Você está soando como o papai — Gabriel disse exasperado, sem segurar um suspiro frustrado. — Dal, o que está acontecendo? — pediu com certo desespero na voz, sua cabeça caindo para frente, a cara amaçada no colchão. — Sabe que pode me contar, não é?
Não respondi, incapaz de colocar em palavras o que estava acontecendo, o que estava sentindo. Os pensamentos indo e vindo na minha cabeça como as ondas indomáveis de um mar revolto, batendo e batendo e batendo no casco de um navio.
— Eu nunca vou te abandonar — Gabriel segredou, levantando a cabeça e estendendo uma das mãos na direção do meu rosto. — Eu sei que muitas vezes você não entende o que está acontecendo, o seu corpo está mudando...
— Gabriel — abri um olho para desferir um tapinha em sua mão. — O problema aqui não é a puberdade.
Gabriel soltou um gritinho, esfregando a mão com uma expressão exagerada de dor.
— São drogas? — ele sugeriu com um sorriso de quem sabe das coisas.
Abri os olhos apenas para revirá-los, desejando que o teto manchado acima de mim me engolisse. Egor se encolheu no meu ombro, as penas de suas asas me fazendo cócegas.
— Diga a verdade, diga que tudo está uma bosta porque você é uma assassina — Iddie voltou a resmungar, sua voz saindo abafada por ter a cara enfiada no travesseiro, seus pés batendo de propósito na minha cabeça quando os balançava.
— Tudo está uma bosta porque eu sou uma assassina — repeti, porque Iddie estava certa e Egor não estava dando conselhos melhores, porque Gabriel não entenderia e dizer alguma coisa era melhor do que não dizer nada.
Algo na minha fala fez sentido para Gabriel, porque seus olhos se arregalaram e ele pareceu entender todas as palavras que eu não havia dito. Por um momento, tive esperanças, uma vaga e ingênua sensação de que ele entendeu tudo que havia para entender. Gabriel se curvou um pouco mais na direção da cama, braços fortes me puxando para um abraço, ignorando os sons de protesto que fiz.
— Isso é por causa dos alunos que morreram no mercado? — perguntou com tanta preocupação que trouxe lágrimas aos meus olhos. Uma preocupação que eu não merecia. — Eu sei que é difícil Dal, um deles era meu amigo também.
Passei os braços pela cintura de Gabriel, não resistindo a abraçar a única pessoa que parecia perceber que alguma coisa estava errada, mesmo comigo o afastando. Gabriel não sabia de muitas coisas, talvez se soubesse não estaria ao meu lado. Mesmo sabendo que não merecia esse carinho, me permiti sentir algum conforto no meio de tantas perdas.
— Vamos conseguir colocar a Primazia na cadeia, tudo bem? Aquelas mortes não vão ser em vão.
Gabriel depositou um beijo no topo da minha cabeça, apertando mais o abraço. E eu chorei, porque tudo estava ruim e eu não queria sair da cama, apenas encarar o vazio do teto, tentar superar a culpa, o arrependimento e a impotência.
🍎🍎🍎
Não vão ser em vão.
Foi a frase que me fez levantar da cama assim que meu pai adormeceu e Gabriel se escondeu atrás do computador. Era de tarde quando isso aconteceu, dessas tardes onde todo a rua parece ter se trancado em casa para cochilar depois do almoço, sem crianças brincando ou carros passando, apenas os sons do silêncio presente.
Torci o nariz para a louça acumulada na pia e para as lições que não estavam sendo feitas. Minha situação escolar decaiu desde que Iddie e Egor surgiram e eu nem podia culpá-los, não era eles quem estavam falando para eu não ir à aula ou para me fechar para o mundo, quer dizer, Iddie estava dizendo exatamente isso, mas a decisão final era minha.
Felizmente Gabriel foi compreensivo. Não sei por que a direção da escola avisou a ele e não ao meu pai ou qual desculpa ele usou para aliviar minha situação. Também não estava interessada em descobrir. Eu só sabia que ninguém ligou para reclamar das minhas faltas e Gabriel não demonstrava preocupação com meu deplorável estado acadêmico. Aproveitei o tempo livre para apreciar o luto e me envolver na minha bolha de autopiedade, uma névoa de culpa e depressão pairando ao meu redor.
— Alguém pode explicar por que estamos na Casa das Rosas? — Iddie balançou seus bracinhos em confusão.
Ignorando Iddie, sentei-me em uma das cadeiras posicionadas em fileiras no meio de uma das salas da Casa das Rosas, tendo visão completa do palanque vazio poucos metros à frente. Aos poucos a sala começava a encher, as pessoas deixando os jardins de rosas do lado de fora para se reunirem na sala onde, em poucos minutos, haveria uma palestra com poetas, psicólogos e modelos, aproveitando o mais recente ataque de uma supervilã para falarem sobre união e cidadania. E havia muitas pessoas, o suficiente para me deixar inquieta com as inúmeras paranoias que surgiram, como se a qualquer momento Primazia pudesse vir atrás de mim e atingir toda essa gente inocente.
— Eu quero vingança — comecei de forma obstinada, pronta para falar tudo que vinha rondando meus pensamentos nos últimos dias, o que me deixou bastante frustrada quando Iddie me interrompeu.
— Não acho que você consiga, você é uma civil se metendo em assuntos que não são seus — sua voz saiu desgostosa, me olhando de soslaio por cima do ombro enquanto flutuava na frente do meu rosto de costas para mim.
Revirei os olhos para a pequena entidade, inclinando meu corpo para frente, tentando evitar que minha voz fosse audível para qualquer um que não fosse Iddie e Egor, este que estava sentado no meu joelho esquerdo.
— Por isso eu apreciaria se me ajudassem — resisti à vontade de dar um peteleco em Iddie. — Quero saber quem é Primazia e como ela estava envolvida com Catarina — mal podia acreditar que estava mesmo me envolvendo com isso em vez de apenas me trancar no meu quarto para sempre, onde era seguro de vilãs cor-de-rosa e demais ameaças.
Iddie deu de ombros, voando para longe antes que eu pudesse protestar. Egor olhava a cadeira à frente, que se estendia sobre ele como uma grande muralha, seus pensamentos distantes, provavelmente em Catarina.
— Egor? — chamei incerta.
O silêncio dos dois me inquietou, eu sabia que não poderia fazer o que queria sem ajuda deles, não quando eu não sabia absolutamente nada sobre Primazia ou esse mundo de heróis, vilões e superpoderes. Egor fez um som para eu saber que ele estava ouvindo, mas ainda estava imóvel. Levei um dedo até suas asas, tentando oferecer algum conforto com o toque.
— Por que Primazia matou a Catarina quando não conseguiu os poderes? — perguntei baixinho, temendo estar indo rápido demais, mas eu precisava de respostas.
Egor engoliu em seco, respirando fundo antes de falar: — Ela é filha da Catarina.
Senti meu peito apertar, as emoções indo de cima a baixo, sem acreditar no que tinha acabado de ouvir. Matricídio.
— Filha da mãe — amaldiçoei recebendo olhares irritados das pessoas em volta. — Por que ela fez isso? — sussurrei estarrecida, pensando em como alguém poderia fazer isso... Em como eu vi alguém fazer isso.
Observei Egor encolher os ombros, sem saber como responder ou sem querer responder. Tudo era tão recente, eu conseguia entender o silêncio de Egor. O silêncio diz muito.
— Cat se envolveu com um supervilão — foi Iddie quem respondeu, voando de volta para perto da minha cabeça. — Ela achou que ele poderia ser bom, mas então ele voltou a matar e a querer dominar o mundo, essas coisas de vilão.
— Isso não explica muita coisa — comentei, sorrindo pequeno quando Iddie.
— Eles tiveram uma filha — a pequena diaba contou, seus olhos rosados concentrando-se em suas unhas. — Alice.
— Aline — Egor corrigiu.
— Quem se importa? Eles se separaram e a garota sumiu — Iddie voou até Egor, roubando sua auréola para usá-la como coroa, tentativa atrapalhada pelos chifres em sua cabeça. — Acontece que Alice queria ser uma heroína igual a Cat, mas quando ela descobriu que não foi escolhida para ganhar os poderes da mamãe, ela surtou e correu para a casa do pai.
— O nome dela era Aline! — Egor se levantou do meu joelho, arrancando bruscamente a auréola das mãos de Iddie. — E pare de brincar com isso, será que você sempre tem que agir como uma criança? — sua voz estava alta e cheia de tensão, as sobrancelhas franzidas, os dentes cerrados.
Iddie e eu nos entreolhamos, surpresas com a explosão de Egor. O barulho das pessoas em volta preencheu o clima desconfortável entre nós, as risadas e exclamações alegres fazendo um fundo desencaixado para a nossa conversa.
— Desculpa — Egor falou com um suspiro. — Não é culpa de ninguém — seus punhos apertados ao redor da auréola, a cabeça baixa quando confessou: — Só... dói tanto.
Não precisava de muito para saber do que Egor estava falando. Iddie correu para puxá-lo para um abraço. Eu também suspirei, a morte de Catarina não estava sendo fácil para nenhum de nós. Eu podia não a conhecer tão bem, mas sentia o peso da sua morte, a responsabilidade e a revolta. Ela apareceu e se foi tão rápido.
Engoli o nó que se formava na minha garganta e pigarreei, alertando Iddie e Egor para voltarem à conversa. Egor se separou de Iddie com um pequeno sorriso, seus ombros um pouco menos tensos. Ele colocou a auréola de volta em sua cabeça e voou para sentar-se no meu ombro esquerdo.
— Nunca mais ouvimos falar da Aline — sua voz soou mais firme, ainda que ele parecesse inseguro. — Mas Catarina sabia que um dia ela voltaria e tentaria achar uma forma de roubar os poderes, eles eram tudo o que Aline mais queria e ela nunca conseguiu ganhá-los, não importa quantas situações foram armadas, ela nunca se arriscou o suficiente para salvar Catarina — Egor se encolheu com isso, lembranças passando por trás dos seus olhos verdes.
— Situações armadas? — indaguei confusa.
— O que vale é a intenção, mas as de Aline nunca foram puras.
Foi a vez de Iddie subir no meu ombro, seus chifres espetando meu pescoço quando ela inclinou a cabeça para o lado e balançou seu rabo pontudinho.
— Temos que achar essa garota — concluí, sentindo o peso das minhas palavras no instante em que elas saíram da minha boca. — Agora, como eu vou fazer isso?
Não fazia ideia de por onde começar, afinal, como se encontra uma supervilã? Eu nem mesmo sabia que existiam super-heróis que não eram monitorados pelo governo. Como eu, uma adolescente preguiçosa e com inteligência mediana, poderia encontrar e me vingar de alguém?
Vingança. Eu teria que matar alguém? Teria que matar Primazia como ela matou Catarina? Como matou a Roberta? Como matou o Carlos? Como matou a Fernanda? Como matou Felipe? Como matou Ingrid? Como matou Nicoly? Como matou Natalie? E todos as outras vítimas que fez.
— Com certeza não vai ser vendo palestras motivacionais — senti Iddie revirar os olhos. — O que estamos fazendo aqui?
Passei a mão pelo rosto, tentando voltar a focar no que acontecia à minha volta e não na corrente de desespero crescente acontecendo na minha cabeça.
— Vingança não é o único plano, lembra? — falei devagar, tentando sorrir e manter a calma. — Ainda tenho que me livrar de vocês.
— Na verdade, os dois planos são terríveis — Egor disse humildemente.
— Vocês estarão melhores com alguém digno — ignorei Egor, voltando minha atenção para o que realmente importava, apontei na direção do palco — Alguém como ela.
A pessoa a quem me referia estava no palco introduzindo a palestra, a ilustre Emilly Diniz tinha a voz harmoniosa, cessando a maioria dos cochichos restantes e ativando inúmeros flashes de fotógrafos atentos.
— Sua ideia é nos dar para a senhorita Perfeição? — Iddie balbuciou assustada, sem acreditar no que eu estava insinuando. — Por que não o Gabriel? Ou o Júnior? Seu pai?
— O quê? Não vou envolver meu pai nisso! — protestei, mais alto do que o adequado para o assunto delicado da palestra. — Emilly é a melhor escolha, foi ela quem realmente salvou Catarina — defendi meu ponto, fazia sentido que Emilly fosse a escolha mais óbvia.
— Egor, diga que ela está maluca — Iddie exigiu em seu tom mandão, mas Egor não respondeu, uma expressão dolorida apareceu em seu rosto. — Isso é dor de estômago ou essa é sua cara de confusão mental?
— Emilly é uma boa opção — confessou com um suspiro, eu estava prestes a comemorar quando ele completou: — No entanto, devemos respeitar a decisão da Catarina, ela escolheu a Dalila por um motivo.
— Com certeza não foi pelo visual — Iddie provocou com uma risada maldosa.
— Qual o problema com as minhas roupas?
Vi Iddie arquear uma sobrancelha, como se o gesto respondesse tudo.
— As duas salvaram a vida da Catarina de alguma forma — Egor continuou a falar, ignorando as provocações minhas e de Iddie. — Se a Dalila está tão insatisfeita, talvez ela devesse passar adiante, Catarina não gostaria de forçar esses poderes a ninguém — concluiu com um sorriso trêmulo, como se estivesse incerto do que acabou de dizer. — Embora eu ainda gostaria de tentar convencê-la do contrário.
Fiquei aliviada com isso, Egor me apoiar já era metade do caminho para colocar em prática minha operação de tornar Emilly a próxima herdeira.
— Egor! — Iddie gritou indignada, afastando-se de nós para voar mais perto de Emilly. — Podemos escolher qualquer pessoa e vocês querem a Emilly?
Desviei minha atenção para o teto do lugar, já cansada da conversa. Eu sabia que seria complicado convencê-los, Iddie apoiava a ideia de vingança contra Primazia, mas não estava nem um pouco engajada com o plano de ser passada adiante, o que tornava meu trabalho de achar um novo portador ainda mais difícil, sabendo que estaria jogando a diabólica e bastante cruel, insensível e assustadora, Iddie nas mãos de algum pobre coitado. Já Egor, Egor podia estar começando a considerar a ideia da troca de portadores, mas eu não conseguia imaginar um cenário onde ele apoiasse meus planos de vingança.
— Se... — me interrompi, percebendo que essa conversa duraria mais que o esperado, decidi ir para o lado de fora. — Venham — mandei quando me levantei bruscamente, segurando o riso quando Iddie foi forçada a voar até mim, ouvindo-a reclamar sobre ter feito isso de propósito.
Respirei fundo quando cheguei ao lado de fora da Casa das Rosas, indo em direção ao lindo bosque perto da entrada. Estruturas curvas de ferro se ergueram em um extenso corredor, cobertas por folhas e algumas poucas rosas, grandes, vermelhas e teimosas, pois estávamos no outono.
— O outono é uma ótima época para se plantar rosas — Egor contou enquanto caminhávamos.
— Egor, se eu e Emilly salvamos Catarina — comecei incerta, essa era uma pergunta que vinha rondando minha cabeça há um tempo. — Isso significa que posso passar meus poderes sem precisar fazer Emilly salvar minha vida, certo?
Egor considerou, seu cenho se franzindo.
— Não tenho certeza — esfregou o queixo de forma pensativa. — Mas suponho que sim, você poderia fazer isso.
Bom, não era uma solução definitiva, mas me pouparia parte do trabalho.
— Ótimo! Problema resolvido — Iddie comemorou rodopiando ao meu redor. — Vamos falar com Emilly! — e voou de volta para a palestra, sendo puxada para meu ombro quando eu permaneci parada onde estava.
— Ainda não — a cortei antes que ela tentasse voar para longe — Ainda preciso ter certeza de que Emilly é uma boa pessoa.
— Ela é perfeita, você mesma disse — Iddie foi rápida em justificar e eu ergui uma sobrancelha questionadora para sua ansiedade repentina.
— Agora a pouco você estava chateada por eu ter escolhido Emilly como portadora — relembrei.
— Bom, é que entre você e ela... — Iddie nem mesmo teve a decência de terminar a frase. — Diga a ela, Egor, diga que agora é a hora perfeita.
Egor ergueu os braços em defesa, surpreso por voltar a ser envolvido na conversa.
— Eu não disse que aprovo essa ideia, negação, vingança, mudanças de usuários… — o anjinho suspirou de novo, ele andava fazendo muito isso, eu notei. — Parece que nunca temos um momento de calmaria — sua voz saiu pesada quando disse isso, um tom depressivo e quebrado que eu reconhecia dos dias mais sombrios do meu pai, quando o encontrava durante as tardes perambulando pela casa ou encarando as contas não pagas fixamente, como se isso pudesse fazê-las desaparecerem.
— Mas você é um super-herói, o Superegor — Iddie acrescentou prestativa, voando até ele e passando os braços por seus ombros. — A vida monótona não tem graça.
Isso foi algo que chamei de Iddie Não É Um Monstro, pequenos momentos em que, com Egor e apenas com Egor, Iddie era engraçada sem ofender ou gentil sem ironias.
— Que seja — Egor afastou-se da sua colega entidade. — Acho que Dalila deveria ficar com os poderes.
— Não deveria não, a morte de Catarina é prova o suficiente disso — fui rápida em discordar. — Costumo não saber o que estou fazendo...
— É mesmo? Eu nem tinha percebido — Iddie debochou com um sorriso de escárnio.
— Costumo agir sem pensar e acabo tomando péssimas decisões na maioria das vezes — a ignorei, seguindo para perto da casa onde a palestra acontecia, quando notei Emilly sair para falar com um dos homens de terno que a acompanhava, seu segurança, chutei. — Mas não vou passá-lo para alguém que não mereça, antes disso vou me certificar de que Emilly será boa para você — o tranquilizei, supondo que era essa ideia de ser jogado nas mãos de qualquer um que deixasse Egor tão deprimido.
— Não pude deixar de notar que você não falou no plural.
— Por que será, Iddie? — sorri quando vi sua expressão perplexa. — Além disso — continuei a tranquilizar Egor. —, preciso dos poderes para minha vingança, então você ainda vai ter que me aguentar por um tempinho — sorri quando vi o anjo sorrir, parando de andar para observar Emilly.
Cerrei os olhos para a jovem estrela, com seu jeito sorridente, ela parecia sempre tão feliz, suas mãos voando para arrumar os cachos loiros que escorriam pelos ombros. Ela terminou de falar com o homem de terno, seguindo para fora e entrando em um carro preto, provavelmente indo em direção ao próximo compromisso da sua agenda.
— Confie em mim, eu sei o que estou fazendo dessa vez.
🍎🍎🍎
— Você vai matar a gente — foi o que Iddie disse quando viu meus métodos de pesquisar sobre a índole de Emilly. — Concursos de beleza são todos falsos! Ninguém desejaria realmente a paz mundial.
Me aconcheguei entre o monte de travesseiros que fiz no canto da cama, meu notebook repousando no colo, enquanto tentava desembaraçar os fones de ouvidos. Havíamos acabado de chegar da Casa das Rosas, meu pai estava dormindo e Gabriel gritava na sala, após morrer pela oitava vez para a mesma pessoa em uma partida online.
— Eu também não entendi a ideia — Egor coçou a cabeça.
— Emilly participou desse concurso no ano passado — sorri quando terminei de desembaraçar os fones, apenas para perceber que não poderia usá-los se queria que Iddie e Egor escutassem também. Que idiota.
— E como isso deveria ajudar para sabermos se ela é ou não uma boa pessoa? — Iddie perguntou em tom impaciente.
— O fato dela ter salvado a vida da Catarina não é uma prova? Catarina soube que eu era boa o suficiente assim.
— Você ser boa é questionável — Iddie rebateu.
Resisti à vontade de espantar Iddie para o outro lado do quarto, decidindo por iniciar o vídeo do concurso para que ela tivesse alguém além de mim para insultar. Alguma música pop da época começou a tocar, a filmagem mostrando modelos desfilando pela passarela em vestidos brancos e exibindo seus sorrisos esbeltos, luzes piscando e causando essa aparência glamurosa que os desfiles sempre têm.
— O tema era anjos — apontei para as asas que as modelos usavam, contextualizando meus dois companheiros de pesquisa. — Para manter o tema em certa parte elas tiveram que contar um desejo altruísta, aquilo que elas mais desejam para a humanidade — ouvi Iddie bufar ao meu lado. — É um dos melhores da Emilly, embora eu ache que ela estava particularmente deslumbrante no desfile da Chilique, o tema foi bebidas tropicais e ela foi de água, acreditam?
— Achei que não fosse fã da Emilly — Egor provocou com um sorrisinho. — Como sabe de todos esses desfiles?
— Eu... Só sei — me amaldiçoei por gaguejar quando vi Iddie e Egor trocarem risadinhas. — De qualquer forma, é aqui que nossa pesquisa começa.
Egor se sentou na ponta do notebook para assistir ao desfile comigo, Iddie, por outro lado, achou mais divertido ficar apertando teclas aleatórias no teclado.
— É a primeira vez que alguém tenta passá-los para outra pessoa? — questionei em algum momento, apesar da minha atenção estar no caderno onde escrevia tudo de novo que descobria sobre Emilly.
— Acontece o tempo inteiro, as pessoas não são muito receptivas a vozes e entidades que só elas podem ver — Egor, sempre o prestativo, respondeu. — Outras vezes elas apenas não sabem como lidar com os poderes.
— É só não pedir para sair lendo o pensamento dos outros — tirei meus olhos do caderno para encará-lo, sem entender o que tinha de tão difícil nisso.
Claro, Iddie era um problemão para lidar, mas ler pensamentos, depois de aprender a controlar, era bem legal.
— Você não acha que tudo o que a gente faz é fazer você ler a mente das pessoas, acha? — Iddie debochou, seus olhos brilhando em um rosa divertido. — O que estou falando? É claro que acha, inteligência não é sua maior qualidade.
Dessa vez eu realmente espantei Iddie, seu pequeno corpo quicando nos cobertores entre grunhidos de indignação e a risada discreta de Egor.
— A telepatia é mais do que ler a mente de alguém, com ela você pode acessar e manipular memórias, controlar sentimentos e emoções, se comunicar com alguém em qualquer lugar do mundo e até por sonhos — Egor citou distraído, seus olhos focados nas modelos desfilando com asas e auréola feitas de plástico. — Eu não me pareço com isso — apontou para a tela claramente indignado.
— Parece sim — Iddie e eu falamos juntas, recebendo uma careta do anjo como resposta.
— E ainda nem falamos da manipulação de energia — Egor prosseguiu sem se afetar.
— Espera, eu posso manipular energia também? Por que não disseram isso antes? — parei de escrever no meio da frase, interessada pela novidade.
— Achei que seu cérebro não aguentaria tal informação — explicou Egor, sua voz sem qualquer tom de sarcasmo.
— É péssimo pros negócios quando os portadores enlouquecem — Iddie se cansou de voar, decidindo pousar em cima da minha cabeça, bagunçando meu cabelo com suas mãozinhas intrometidas. — Mas sim, você pode, por exemplo, fazer um chapéu com a projeção de energia e, ao contrário da telepatia e da gente, todos podem ver.
— Você por acaso tem alguma obsessão por chapéus? — balancei a cabeça, tentando tirar Iddie de cima. — É como o poder do Lanterna Verde?
— Sim? — Egor considerou, sua cabeça se inclinando de forma pensativa. — Exceto que você precisa acreditar para funcionar e não de imaginação e força de vontade.
— Toque esse dedinho em mim e eu vou te morder — Iddie protestou quando tentei pegá-la para tirá-la da minha cabeça. — Gabriel! — exclamou quando meu irmão entrou no quarto.
Voltei minha atenção para o alvo da animação de Iddie, encontrando Gabriel em mais uma de suas regatas e com o olhar de quem passou o dia na frente de uma tela. Ele andou até sua própria cama, pegando sua mochila que estava jogada entre uma pilha de roupas usadas.
— Dal — saudou com um aceno de cabeça, jogou a mochila nas costas e em seguida pulou à janela.
— Você sabe que temos uma porta, né? — gritei em sua direção, revirando os olhos com os gritinhos histéricos de Iddie sobre como meu irmão é incrível e melhor do que eu.
— O meu maior desejo — Emilly começou a falar, sua voz fazendo meu foco retornar ao que realmente importava. — É a paz mundial.
Ignorei Iddie e sua gargalhada diabólica, observando a câmera focar no rosto de Emilly, olhos castanhos claros brilhando com todas as luzes da passarela, os lábios rosados e as sardas destacadas pela iluminação, Emilly era simplesmente linda. Angelical.
— E... — ela hesitou, seus olhos checando alguém que estava escondido atrás das câmeras. — Eu sei que isso é impossível — pareceu ganhar mais confiança quando quem quer que estivesse atrás das câmeras lhe deu a permissão que precisava, pegando delicadamente o microfone das mãos do apresentador, Emilly continuou: — Por isso o que eu mais desejo, mais do que qualquer coisa, é que cada pessoa nesse mundo tente ser melhor, que cada ser humano tente ser um herói, porque assim teremos um mundo mais seguro e bom para todos, façam do seu propósito de vida ajudar o outro, para que assim todos tenhamos a ajuda que precisamos para ser nossa melhor versão.
Surpresas, as pessoas na plateia se levantaram para aplaudir a garota, a resposta de Emilly se destacando pela sinceridade em sua voz, as lágrimas que escorriam dos seus olhos, o sentimento que ela passava ao discursar, dava para ver que ela estava nisso de corpo e alma, seu desejo verdadeiramente altruísta não apenas porque o concurso exigiu, mas porque Emilly era assim, boa e gentil, o tipo de pessoa que queremos ter por perto e que desejamos ser um dia. Emilly era o símbolo de uma juventude menos egoísta e mais simples, alguém que eu desejava ser, não pela sua fama e não pelo seu talento, mas porque parecia que por trás de cada gesto, palavra e cada olhar, existia apenas Emilly sendo Emilly.
— Essa é nossa garota — concluí satisfeita, um sorriso convencido alargando meu rosto e lágrimas ameaçando escapar dos meus olhos, porque tanto quanto eu admirava Emilly, eu também a invejava e sabia que jamais poderia ser tão boa quanto ela.
— Ninguém merece — Iddie bufou.
Dez minutos depois, Emilly ganhou em primeiro lugar, acenando para a câmera, ela dividiu a coroa com todas as outras competidoras ao melhor estilo Meninas Malvadas.
— E ela doou todo o dinheiro para um orfanato — contei animada, enquanto guardava o notebook depois de uma longa tarde de pesquisa. — Ela não é incrível?
Encarei Iddie e Egor quando eles não disseram nada, apenas para encontrá-los com olhares duvidosos em seus rostos.
— Ok, talvez eu seja um pouco fã dela — confessei relutante, levantando as mãos em um gesto apaziguador. — Mas odeio como ela não tem nenhum defeito, é tão irritante — revirei os olhos com isso, lutando para pensar em algum ato falho de Emilly e conseguindo apenas me lembrar da vez em que ela tropeçou enquanto andava da cabine do banheiro até a porta, infelizmente eu fui a única a ver isso.
— O que vamos fazer agora? — Egor perguntou um pouco mais animado, espreguiçando-se em cima da minha cama.
Mordi o lábio inferior quando tive uma ideia, meus olhos caminhando para uma caixa de papelão que ficava atrás da porta, guardando coisas velhas que Gabriel e eu nunca mais iríamos usar, foi nessa caixa que escondi a capa de Catarina.
— Temos uma vingança para realizar — relembrei, levantando-me da cama para pegar a capa.
— Você tem — Egor corrigiu, sua seriedade voltando à voz quando percebeu que ainda tínhamos muito o que discutir.
Olhei para o anjo, tentando concentrar na minha expressão toda maturidade que sabia que ainda não possuía.
— Egor, você não quer que a Primazia pague pelo que fez com Catarina? Pelo que fez com todas àquelas pessoas inocentes que ela atacou? — instiguei, esperando que apelar para o seu senso de justiça fosse o melhor caminho.
— Não dessa forma, Dalila — ele cruzou os braços, balançando a cabeça e se mantendo firme em sua opinião. — Você quer mesmo matar alguém?
Engoli em seco com isso, ainda não havia pensado nessa parte. Andava evitando pensar, na verdade.
— Ela eu não sei, mas eu quero — Iddie entrou na conversa, me salvando de ter que entrar nesse assunto. — Passamos por isso centenas de vezes, estamos acostumados com o luto, mas... — sua voz fraquejou quando retirei a capa da caixa, Iddie foi rápida em voar para agarrar parte do tecido, um sorriso nostálgico em seu rosto. — Eu não estou acostumada a injustiças, a morte de Cat não será em vão — acariciou a capa calmamente, sua voz cheia de determinação quando declarou: — Se arrume, Dalila, se queremos alguma informação, precisamos ver o Bola Branca.
Franzi o cenho. Quem raios era Bola Branca?
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A Mooca é conhecida por ser um bairro tradicional e familiar, habitado por idosos e adultos que em breve também serão idosos, por isso foi tão fácil identificar a peça que não pertencia ao cenário.
— Você vai saber quando chegar lá — foi o que Iddie me disse e ela estava certa.
Assim que entrei na terceira rua com farmácias fechadas e igrejas abertas, achei o lugar que procurava. Uma placa sinalizando "Catwalk" piscou em rosa, vermelho e verde. Do lado de fora havia uma grande fila de pessoas vestidas com roupas estranhas e adereços carnavalescos, dançavam mesmo sem música e se divertiam apenas por estarem perto da requisitada boate que era o centro dos encontros da comunidade de indivíduos aprimorados.
— Eu não posso entrar ali — balbuciei assustada, dando um passo para trás assim que reconheci o nome na placa. — Meu pai trabalha ali! — briguei com Iddie, irritada por ela não ter me informado para onde estávamos indo e irritada comigo por ter confiada em alguém que torcia para todos os brinquedos derreterem no final de Toy Story 3.
Apertei os olhos na direção da entrada, avistando o contorno encorpado da figura do meu pai, posicionado na porta da boate com uma carranca fixa, que eu tinha certeza de que era exigida como requisito para exercer a função de segurança.
— É por isso que você está usando a capa — Iddie falou de forma simplista, tentando me empurrar na direção da fila e ignorando minha ansiedade crescente.
— Não, não, não — continuei murmurando, mesmo que estivesse seguindo para a fila como Iddie queria, sabendo que não tinha escolhas, precisava falar com o tal do Bola Branca. — Quem é Bola Branca mesmo? — parei de andar para questionar, incerta se continuar escutando Iddie era uma boa.
— Eu não te contei? — Iddie também parou de me empurrar por um momento. — Ele é o cara que sabe de tudo o que acontece no submundo, se quer saber algo sobre qualquer pessoa, procure o Bola Branca — esclareceu, voltando a me empurrar, o movimento não fazendo nem cócegas nas minhas costas. — Se quiser algum favor ou se livrar de alguém também, o cara é um mercenário com uma ótima taxa de sucessos e faz um preço camarada para associados.
Ignorei boa parte do que Iddie disse, tendo certeza de que seria melhor viver sem pensar muito no fato de que estava prestes a encontrar alguém que tinha altas taxas de sucesso nesse tipo de coisa.
— E por que ele tem esse nome? — decidi ir com uma pergunta mais segura, indo para o final da fila da boate e agradecendo internamente a falta de julgamento das pessoas ao me verem usando a capa da Catarina.
— Dalila! O que está fazendo? — gritou no meu ouvido. — Você não precisa de fila!
— Iddie — Egor a acalmou, desconfortável com toda a situação, essa sendo a primeira vez que ele falou do seu lugar no meu ombro desde que saímos de casa.
— Meu pai vai saber — murmurei assustada, tentando me encolher na parede onde estava encostada.
— Só se você continuar agindo como uma garotinha assustada — Iddie empurrou minhas costas.
Fiquei petrificada quando finalmente cheguei na frente do meu pai, me forçando a não correr para longe, minha boca abriu e fechou várias vezes com a intenção de pronunciar mil pedidos de desculpas diferentes. E meu pai, alto, imponente, intimidador, abriu a porta, apenas me lançando um olhar de lado, meio desconfiado, enquanto eu passava.
Não acreditei e não entendi o que tinha acontecido, mas entrei e só voltei a respirar de verdade quando me vi na segurança do interior da boate.
— Só a Cat tinha uma capa assim — Egor explicou.
— As pessoas ainda não sabem da morte dela? — indaguei, sem realmente prestar atenção ou esperar por uma resposta, meus olhos se iluminando com a visão a minha frente.
— Temos pessoas para manter isso nas sombras pelo maior tempo possível, sabemos como a morte de uma super pode afetar todo o submundo — Egor comentou, sua voz virando ruído de fundo no meio dos muitos sons que emanavam da boate em batidas animadas e gritos joviais.
Dei alguns passos para longe da entrada da boate, temendo que meu pai percebesse meu disfarce. Fui recebida por fileiras de mesas que formavam um longo corredor em meio a mastros de pole dance com mulheres vestindo pouca roupa e fazendo movimentos que faziam minhas articulações doerem só de olhar. As mesas dos cantos tinham uma iluminação mais intimistas, vermelho e cor-de-rosa guiando-me até o barman; enquanto as mesas perto da pista de dança eram iluminadas por um forte verde fluorescente.
Iddie me falou que deveria encontrar o Bola Branca do outro lado da boate. Arregalei os olhos quando observei a multidão de pessoas na pista de dança, um mar de braços levantados e risadas escandalosas que me separavam do único informante que poderia me revelar alguma coisa sobre Primazia.
— O que eu fiz para merecer isso? — choraminguei dramaticamente, antes de tomar coragem e me apertar entre as pessoas da pista de dança, desviando de seus movimentos espalhafatosos e adereços pontudos.
— Eu adoro isso! — Iddie gritou cheia de alegria no meio da multidão de corpos, rodopiando ao som da música.
— Egor — chamei, sabendo que Iddie não responderia e que não tinha escolhas a não ser torcer para que Egor fosse bondoso o suficiente para me ajudar. — Onde o Bola Branca fica?
Egor balançou a cabeça e disse algo sobre pessoas peladas ou fugas arriscadas, não tinha certeza, mas suspirei aliviada quando ele apontou na direção do palco e eu percebi que não teria que bancar a adivinha. Seguindo as instruções do anjo, venci a travessia pela interminável pista de dança e encontrei, ao lado do palco, a porta para uma cabine. Hesitei em abrir, sem ter certeza se poderia entrar e questionando se eu estaria sendo muito idiota se batesse, esperando ser ouvida no meio de tanto barulho. Iddie não prolongou muito minhas inseguranças, ela mesma abriu a porta, revelando uma sala de tamanho razoável, maior que um banheiro público e menor que o MASP. O lugar estava mergulhado em quase total escuridão, a única luz vinda de dois monitores no canto e de um notebook em cima de uma mesa posicionada no centro.
— É sério? Ninguém mais bate na porta? — ouvi a pessoa por trás do aparelho murmurar com indignação, esticando um dos braços ela acendeu a luz da cabine e esticou o pescoço por cima do notebook para me olhar. — Você não é a Cat — concluiu sem precisar dar uma segunda olhada, sua voz plana, livre de qualquer emoção.
Dei alguns passos à frente, cruzando os braços quando ergui a cabeça e encarei melhor o homem que se autointitulava Bola Branca e, de repente, senti que o conhecia a vida inteira, porque Bola Branca tinha 19 anos, estava terminando o ensino médio e não fazia ideia do que queria fazer quando saísse da escola. Ele tem fartos cabelos castanhos escuros que crescem mais rápido do que ele pode cortá-los, olhos castanhos que sempre estão se divertindo com algo, pequenos apontamentos de fios no rosto que ele insiste em chamar de barba e, não importa o tempo, ele só usa regatas de cores excêntricas.
Não. Isso está errado, porque, neste momento, Bola Branca estava vestido dos pés à cabeça de branco. Paletó, calças, gravata, sapatos e um ridículo chapéu homburg, tudo branco, exceto pelos óculos escuros em seu rosto, estes eram pretos.
— Você é a nova herdeira? — um sorriso malicioso rasgou seu rosto, parecendo muito interessado quando se inclinou na minha direção e estendeu uma mão para me cumprimentar. — Conheço pessoas que matariam por isso...
— Gabriel, o que você está fazendo aqui? — o cortei irritada, tirando o capuz da capa para revelar meu rosto, não me preocupando com as implicações disso, meu sangue fervendo ao ver meu irmão ali, sentado na cabine de uma boate que beira a ilegalidade, agindo como se fosse algum tipo de chefão da máfia ou agiota superestimado.
— Dal? — sua voz saiu estrangulada, sua mão ainda pairando bobamente no ar entre nós.
Iddie, como a pequena praga que era, gargalhou com a situação, voando até o rosto de Gabriel para erguer seus óculos, revelando olhos castanhos e assustados, olhos que piscavam para mim durante todo café da manhã e que me analisavam quando eu mentia, olhos que me viram crescer, que me deram conselhos e que me consolaram.
— Isso sim é uma revelação — Iddie voltou para meu ombro, os óculos de Gabriel caindo em cima da mesa, o barulho quebrando nosso estupor silencioso.
Notei que o som do lado de fora da cabine estava muito baixo, provavelmente a sala era a prova de som. Franzi o cenho em confusão, confusa com Gabriel e confusa com tudo isso de Bola Branca, cabines particulares e boates. Nosso pai sabia disso? Por que eu não sabia?
Dei um passo hesitante na direção do meu irmão, percebendo que essa conversa seria longa e eu tinha que me sentar antes que cedesse aos meus instintos de me encolher no chão e esperar que eu magicamente fosse apagada da existência. Puxei a cadeira em frente a Gabriel e me sentei, desconfortável com a capa que apertava meu pescoço e com a situação em que me encontrava. Senti o peso de Iddie e Egor quando eles se mexeram nos meus ombros e uma ligeira sensação de traição se apossou de mim.
— Por que não disseram que o Bola Branca era meu irmão? — sussurrei na direção geral deles, sem tirar os olhos da expressão pateta de Gabriel.
— Eu não tinha notado até agora — Egor desculpou-se e sua voz pareceu sincera. — Sabia que o conhecia de algum lugar, mas não imaginei que seria daqui, Catarina não fazia negócios aqui há um tempinho.
Suspirei um pouco mais calma. Sabia que isso poderia ter sido algo armado por Iddie, mas ela tendia a pensar apenas nela mesma e não me surpreenderia que foi por isso que não reconheceu que Gabriel e Bola Branca eram o mesmo idiota.
— O que você está fazendo aqui? — Gabriel cortou meus pensamentos, seu tom esperançoso ao fazer essa pergunta, ele parecia estranhamente frágil, sua confiança de minutos atrás sumindo. — Você me seguiu? — não havia nenhuma insinuação raivosa ou terror em sua postura, apenas curiosidade genuína, quase como se estivesse impressionado, como se quisesse que eu descobrisse isso.
— Eu poderia fazer a mesma pergunta — rebati sem disfarçar minha irritação, com os braços cruzados, esmaguei meu lábio inferior entre os dentes e bati o pé da cadeira.
Ficamos ali, sentados um de frente para o outro, o notebook esquecido no canto, a tela apagada depois de tanto tempo de inatividade. Um dos maiores mistérios de Gabriel acabava de ser revelado e eu ainda tinha mais perguntas do que respostas, a ansiedade gerada por isso era insuportável e apenas o pensamento de que Gabriel devia ter tantas perguntas quanto eu, era o suficiente para desencadear um ataque de pânico, controlado apenas pelo pensamento de que existia uma causa maior para eu estar ali, precisava saber mais sobre Primazia, não podia surtar ao primeiro sinal de desafio.
— Isso é um jogo de encarar? — Iddie provocou quando nenhum de nós disse nada, uma melodia infantil sendo cantarolada de forma surpreendentemente afinada para quem normalmente cantava tão mal.
Relaxei um pouco, a tão clara indiferença de Iddie sendo tão absurda que quase me fez rir. Com certeza isso me acalmava mais do que Egor, que praticamente quicava no meu ombro, contorcendo-se em ansiedade nervosa.
— Por que está aqui? — Gabriel começou, sua postura também se acalmando.
Fechei os olhos de forma afetada, um som engasgado saindo da minha boca quando me impedi de dizer alguma bobagem e decidi pensar antes de falar.
— Ele é seu irmão, confie nele — Egor aconselhou prestativo, sua voz carinhosa e cheia de doçura.
Eu sentia como se estivesse na mira de uma arma, mas tal como um herói de ação ou apenas um masoquista, senti uma sensação de alívio inimaginável com isso. Parada na frente de Gabriel, usando a capa de Catarina e conversando com as entidades que só ela podia ver, senti que não tinha escolhas a não ser contar toda a verdade a Gabriel. Finalmente contar tudo, presa em uma situação em que eu não podia fugir ou inventar desculpas. Às vezes, na vida, existem essas poucas ocasiões, onde a falta de escolhas é uma benção.
— Cuidado com o que vai contar — Iddie tinha que ir e plantar a sementinha da discórdia. — Bola Branca é um informante, imagina o que ele faria se soubesse que a Primazia é filha da Cat? Muitos vilões poderiam tentar chegar até Alice antes de nós e então sem vingança para gente — senti o sorriso de escárnio em sua voz, seu tom sibilante me dando arrepios.
— Ele não sabe? — sussurrei temerosa, mesmo sabendo ser inútil quando apenas Gabriel estava na sala e ele com certeza não me levaria a um psicólogo por falar sozinha.
— Ninguém sabe, Cat era bastante reservada, ao contrário de você, sua boboca — Iddie explicou de forma animada, sua voz logo caindo naquele tom diabólico, quando voltou a plantar dúvidas na minha cabeça. — Além disso, Dalila, Bola Branca trabalha pelo preço mais alto, imagina o quanto ele não pode ganhar vendendo a pirralha da irmã mais nova, que o chamou de inútil e só sabe reclamar? Você é a herdeira do poder da Cat, tem um preço alto pela sua cabeça agora.
Abaixei a cabeça, me recusando a encarar Gabriel, me vendo presa a um novo debate. Minhas mãos apertando o tecido da capa que cobria meus braços até que os nós dos meus dedos ficassem brancos. Lutei para não escutar Iddie. Gabriel era o meu irmãozão, ele... Ele não faria algo assim.
Gabriel era a pessoa que mais me protegia e cuidava de mim no mundo, era ele quem prestava atenção às minhas necessidades, que tentava me fazer sopa quando eu ficava doente ou que me levava para fazer compras quando eu queria uma roupa ou um livro novo, era Gabriel que me comprava meias novas quando percebia que as minhas estavam furadas e que nunca me deixava sem remédios.
Foi ele quem me abraçou quando nossa mãe foi embora e disse que tudo ficaria bem, porque ainda tínhamos um ao outro. Quem me contou histórias de ninar nas noites chuvosas e juntou dinheiro por meses para me comprar um urso de pelúcia para que eu jamais me sentisse sozinha.
Gabriel aprendeu a cozinhar e a limpar para me ajudar com as tarefas de casa. Ele correu atrás de cada coisa que precisei enquanto crescia e me via cada vez menor em um mundo tão grande. Foi ele quem intimidou os valentões do colégio, que foi discutir com os professores sobre minhas notas e ameaçou Júnior quando saímos no nosso primeiro encontro.
Nós crescemos juntos e ele sempre esteve lá, atento a mim, me protegendo do mundo como um bom irmão faz. E, tudo bem, ele saia escondido de casa à noite e aparentemente era um mercenário, mas ele não... Ele não me venderia assim, não é? Gabriel é meu irmãozão.
— Gabriel não faria nada para me prejudicar — afirmei com veemência, porque essa era uma das poucas certezas da minha vida.
— Pague para ver — Iddie desafiou, mas não dei ouvidos, ela não me influenciaria de novo a descontar minhas frustrações no meu irmão.
Voltei meu olhar para Gabriel, que encarava a mesa como se procurasse pela presença das entidades com quem eu falava, alheio a bagunça que estava minha cabeça.
— Estou procurando informações — confessei de forma ambígua, medindo minhas palavras para não causar nenhuma reação muito extrema. — E você?
— Eu trabalho aqui — foi rápido em responder, como se não tivesse intenção de mentir ou esconder nada de mim.
Pisquei devagar com a revelação. Como assim ele trabalhava na Catwalk? Gabriel passava os dias no sofá jogando online, o que eu estava perdendo nessa história?
— Mas e o pai? — essa era a pergunta que não queria calar, como nosso pai ficava nisso? Ele sabia? Se sim, por que ninguém falou nada sobre? O que estava acontecendo?
— Ele não sabe — Gabriel balançou as mãos na direção geral do seu rosto. — Esses óculos me tornam irreconhecível — tirou e colocou os óculos em busca de comprovação, suas sobrancelhas se mexendo no ar.
— Não torna não — falei sem emoção, dividida entre desatar a rir do absurdo ou simplesmente bater a cabeça na parede.
— É claro que tornam, como ninguém nunca me reconheceu até hoje? — Gabriel pareceu realmente ofendido com isso.
— Talvez por que ninguém aqui conheça você? — me remexi na cadeira para tirar a capa da Catarina, depositando-a em cima da mesa, essa conversa estava me deixando com calor. — Exceto o pai, como ele não sabe de você?
— Eu entro pelos fundos, nunca chegamos a nos ver realmente — falou distraído, sua atenção focada na capa de Catarina, uma mão intrusa se esticando devagar para tocá-la.
— E como você veio parar aqui? — trouxe a capa para o meu colo quando Iddie ameaçou morder o dedo dele.
Gabriel pareceu parar no tempo com isso, soltou um grunhido e bateu a cabeça na superfície da mesa devagar. Ele ficou assim por alguns segundos, tentando processar tudo o que estava acontecendo, como se finalmente tivesse se dado conta da cena surreal que estávamos vivendo.
— Dal, vou te levar para casa! Aqui não é o seu lugar — declarou com um suspiro satisfeito, feliz por estar tomando a decisão mais racional, ele sorriu feliz consigo mesmo e levantou-se da cadeira.
— Não deixa e... — Iddie não precisou começar seu discurso habitual.
— Não — declarei com toda a calma que não possuía, tomando o cuidado especial de não permitir que minha voz falhasse ou fraquejasse. — Você vai sentar e vai me contar o que está acontecendo — exigi, porque eu tinha o direito de saber o que era tudo isso e por que Gabriel estava hesitando em me deixar entrar, como se a razão tivesse repentinamente batido à porta da sua mente e dito: Ei, talvez seja melhor não envolver sua irmãzinha em seus esquemas ilegais. O que era um pensamento justo, Gabriel sempre foi superprotetor, mas a essa altura eu já estava mais do que envolvida, me excluir não faria bem para nossa relação e não me impediria de continuar minha busca por vingança.
Nada iria me parar. A imagem do corpo de Catarina estava gravada nas minhas retinas e não sairia de lá até que eu fizesse Primazia pagar pelo que fez. A culpa era minha. Eu tinha que dar um jeito nisso. Com ou sem ajuda de Gabriel.
Meu irmão ficou parado na minha frente como um cervo nos faróis, repensando sua decisão de me mandar embora. Depois de alguns segundos torturantes ele voltou a sentar, pigarreou e consertou a postura, parecendo pronto para falar sério quando perguntou:
— Bom, o que você quer saber?
— Tire esses óculos e me explique o que é tudo isso — ditei com o restante da minha coragem, aproveitando enquanto Gabriel estava aberto para responder perguntas e não fazendo perguntas.
Ficamos em silêncio por mais um tempo, esperando o conflito interno de Gabriel passar.
— Imagina ler a mente dele agora — Iddie soltou uma risadinha, voando ao redor da cabeça do meu irmão e analisando sua expressão.
— Não é uma má ideia — Egor considerou, olhando-me para saber o que eu achava, mas Gabriel se pronunciou antes que pudesse dar uma resposta.
— Mamãe... — ele tirou os óculos como eu disse para fazer, respirando fundo antes de continuar. — Em resumo, quando ela tirou férias eternas da gente, ela deixou uma porrada de dívidas — simplificou, desviando o olhar para algum ponto atrás de mim, os dedos brincando com a armação dos óculos, parecia nervoso, embora sua fala estivesse fluida e brincalhona como sempre. — Você conhece o nosso pai, Dal, ele não é muito bom em gerenciar dinheiro e tem um problema com jogo — coçou a cabeça e fungou um pouco, sua coluna tão rígida que eu quase podia sentir suas articulações rangendo quando ele se inclinou para trás na cadeira. — Bem, papai não estava conseguindo pagar tudo, mais as prestações da casa e do carro, as contas mensais, nós dois, as dívidas...
Fiz um gesto para que ele continuasse sua explicação, sabendo que a lista seria longa se o deixasse citar tudo que nosso pai não conseguia pagar.
— Uma vez eu o segui até aqui para tentar falar com sua chefe, talvez convencê-la a dar um aumento a ele? — ele riu da sua própria fala, seu tom nostálgico enquanto sorria e balançava a cabeça, como se achasse o seu eu do passado muito bobo e ingênuo. — Foi bobagem, eu sei, mas Amanda foi tão gentil e disse que se eu quisesse mesmo ajudar, ela tinha esse trabalho que só alguém pequeno e com ouvidos afiados poderia realizar e aqui estou eu — fez mãos de jazz, como se essa fosse realmente toda a história.
— Quem é Amanda? — Iddie questionou.
Foi a vez de Egor bater a cabeça, o movimento fazendo cócegas no meu pescoço.
— Como você não se lembra? — ele reclamou com Iddie. — Amanda, dona da Catwalk!
— Chefe do meu pai — completei. — É isso? Agora você é um informante ilegal? Fez tudo isso para ajudar com as contas? — trouxe minha atenção de volta para a conversa. — Não que eu esteja julgando, mas isso é tão ruim quanto roubar para pagar as contas, é justificável, mas roubar ainda é roubar.
Gabriel soltou outro suspiro, seus olhos cansados se fechando quando bocejou e se esticou na cadeira.
— Não era nada tão ilegal quanto você está pensando, comecei a trabalhar como informante aos treze, um trabalho aqui, outro ali, fui fazendo minha fama, apesar disso a coisa mais ilegal que fiz até os quinze foi, tipo, usar uma identidade falsa pra comprar bebida — deu de ombros como se isso fosse normal, outro bocejo escapando de seus lábios.
— Treze? — gaguejei quando ouvi a idade em que tudo isso começou, uma retrospectiva passando na minha cabeça como um filme de todas as perguntas que tinha sobre a vida do meu irmão e nunca tive respostas. — Mas tínhamos dívidas até o ano passado — franzi o cenho para isso, as peças não estavam se encaixando, se Gabriel supostamente trabalhou por todos esses anos para ajudar em casa, por que nossas dívidas perduraram por tanto tempo? Com o que Gabriel gastava seu dinheiro, quando as contas continuaram a chegar e meu pai só foi capaz de pagá-las poucos anos atrás?
— Ou o trabalho mercenário paga muito mal ou seu irmão andou gastando com outras coisas — Iddie cantarolou maliciosamente. — Você sabe do que eu estou falando, drogas, prost...
— Você disse que não sabe como ganhou aquela bolsa de estudos na Futuros Caminhos? — Egor a interrompeu, sua pergunta me fazendo arregalar os olhos quando percebi.
— Eu nunca ganhei uma bolsa de estudos lá, não é? — concluí devagar, encarando Gabriel sobre uma nova luz. — É você... Sempre foi você — estava começando a me sentir enjoada, a culpa pesando no meu estômago quando lembrei das coisas horríveis que disse a Gabriel, acusando-o de ser um fardo enquanto ele vinha se sacrificando há anos pelo meu pai e por minha educação. — Por que não nos contou? — perguntei baixinho, envergonhada.
— Eu não queria que você ou papai se preocupassem — Gabriel sorriu culpado, seu tom mais frágil também. — Eu tenho um trabalho perigoso aqui.
Isso não fez muito para aliviar minha culpa. Lágrimas picaram meus olhos e um nó se formou em minha garganta. Eu me sentia um ser humano tão, tão horrível.
— É por isso que você sai toda noite? — olhei para Gabriel, olhei de verdade, para seus olhos cansados e suas mãos com calos, para os hematomas que sempre apareciam em sua pele e para seus horários irregulares, pela primeira vez vendo a verdade, vendo o homem e irmão incrível que Gabriel era.
Ele assentiu. Sorri para meu o irmão, culpada, mas ainda assim grata e feliz, porque ser um informante que trabalha no submundo para pessoas superpoderosas soava melhor do que qualquer outra coisa que eu estava imaginando. Gabriel não iria embora. Ele não me abandonaria.
— Ainda tem algo sem explicação — Iddie não se importou com o grande momento que estávamos tendo, voando até a mesa para caminhar em círculos. — Por que Bola Branca?
Não consegui evitar rir disso.
— É, por quê? — perguntei, recebendo uma expressão confusa de Gabriel. — Seu nome? Por que escolheu se chamar de Bola Branca?
— Ah — ele pareceu se animar com isso, sorrindo de lado, sua conhecida expressão de diversão de volta ao rosto. — Eu queria Bola Oito, como a bola oito mágica, o brinquedo, sabe? Mas a Marvel já tem um cara com esse nome.
— Aí ele escolheu a branca, que idiota, como se alguém se importasse com os direitos autorais do vilão altamente figurante de dois terços do team red — Iddie se desapontou com a história.
— Eu pensei na bola dezesseis, porque era minha idade na época em que decidi que precisava de um nome, mas isso rendeu comentários desagradáveis — fingiu um arrepio com as memórias. — Sobrou a branca.
Coloquei a mão entre Iddie e o notebook, impedindo-a de sapatear pelas teclas e bagunçar tudo. Minha aparente interação com o nada trouxe Gabriel de volta à difícil conversa que estávamos tendo e eu engoli em seco, sabendo que era minha vez de responder às suas perguntas.
— O que é tudo isso, Dal? Você não veio aqui porque estava curiosa — recostou-se na cadeira, sua expressão severa.
— É a minha vez de compartilhar com a classe? — brinquei com uma risada nervosa, suspirando quando Gabriel permaneceu imparcial. — Você sabe sobre Catarina? — decidi começar pela pessoa que me colocou nisso tudo.
Não tinha como obter informações de Primazia sem antes explicar qual era minha ligação com ela, isto é, Catarina, o elo comum em toda essa bagunça.
— Eu sei de tudo, irmãzinha, sou o Bola Branca, lembra? — apontou para um quadro na parede que eu ainda não tinha notado, aparentemente era um certificado de fofoqueiro? Dado pela ATB (Associação de Tias do Bairro) por escutar bem conversas e se intrometer na vida dos outros com sutileza arredia? Seja lá o que isso signifique.
— Sim, claro — olhei para Iddie, para ter certeza de que estava dizendo a coisa certa, não que Iddie estivesse interessada na minha relação familiar delicada ou que ela fosse me dar um bom conselho de qualquer forma. — Então você sabe que ela morreu — concluí e Gabriel assentiu. — Sabe quem matou?
— Estou investigando isso, tem algumas pessoas interessadas em saber quem eliminou alguém tão forte quanto Cat — afirmação que não me deixou mais confortável.
Gabriel voltou sua atenção para o notebook, acendendo a tela e digitando algo por alguns segundos, antes de fechar o aparelho e se levantar da cadeira.
— Só um segundo — comunicou, entreabrindo a porta da cabine para pegar uma garrafa de cerveja com uma pessoa do outro lado. — Pode trazer um refrigerante? Minha irmãzinha veio me visitar no trabalho — não esperou por uma resposta, batendo a porta em seguida.
— Desde quando você bebe? — de todas as coisas estranhas dessa noite foi a garrafa de cerveja nas mãos de Gabriel que me deixou mais estarrecida.
— Tem tanta coisa que você não sabe — bebeu um grande gole da bebida de modo risonho, antes de voltar a se sentar na minha frente e retornar ao seu papel de irmão responsável/mercenário de negócios. — Você vai me contar o que está fazendo aqui ou não? — pressionou ao perceber que eu estava tentando distraí-lo do assunto.
— Resumidamente, Catarina passou os poderes para mim e, dois dias depois, Primazia apareceu e a matou — fui direto ao ponto, arrancando isso como um curativo, mal processei as palavras que saíram da minha boca.
Gabriel quase cuspiu sua bebida, seu rosto claramente em choque com o que revelei, lutando para compreender as informações de que a) eu agora tinha poderes e b) Primazia parecia ser mais forte do que qualquer um de nós imaginou.
— Primazia matou a Cat? — foi sua primeira indagação e então, em um tom mais alto e assustado: — Além disso, POR QUE NÃO ME CONTOU QUE GANHOU PODERES?
Encolhi os ombros com isso, desconfortável em estar nessa posição, com esses dons que não pedi e com certeza não merecia. Gabriel, no entanto, não parecia irritado ou magoado, ele parecia quase feliz com a notícia, seus lábios puxados em um sorriso e a voz cheia de excitação.
Por sorte, antes que eu pudesse pensar em responder essa questão, que nem eu mesma tinha certeza da resposta, uma mulher entrou na sala, carregando uma bandeja com um copo com refrigerante de uva, coberto com chantilly e decorado por uma única cereja no topo. A mulher deixou o copo na mesa, me lançou um olhar estranho, nem bom, nem ruim, e saiu da sala sem dizer uma palavra.
— Valeu, Amandinha! — Gabriel gritou antes da porta bater. — Se precisar de qualquer coisa fale com essa mulher — sorriu animado, pegando a cereja da minha bebida. — Como você sabe que foi Primazia? — ergueu uma sobrancelha, parecendo querer eliminar as partes mais simples.
Fiquei agradecida por isso, não sabia se tinha estrutura emocional suficiente para contar a história dos trilhos do metrô e da maçã para alguém, a memória dessa noite guardada a sete chaves no fundo da minha mente, no lugar onde guardamos nossos maiores erros, vergonhas e fracassos, encaixotados para revisitar apenas na solidão das madrugadas ou na terapia. Não é como se explicar que vi Primazia matando Catarina fosse mais fácil, mas eu não precisava de tantos detalhes para contar que:
— Eu estava lá quando aconteceu — resumi, focando minhas energias em achar o melhor ângulo para beber o refrigerante sem sujar minha boca com chantilly, e não pensando em como minha garganta doeu de tanto chorar quando cheguei em casa, em como o cheiro do sangue de Catarina, a visão do seu corpo empalado naquele lustre e o som doentio da risada de Primazia, me atormentavam a cada momento.
Ajudou que Gabriel não estivesse fazendo um caso sobre tudo isso, que não estivesse me pressionando com mil perguntas de uma vez, me julgando ou surtando por eu não ter contado antes. Ajudou falar sobre isso com alguém. Ajudou que esse alguém fosse Gabriel.
— Isso não te deixa bravo? — perguntei baixinho, sem saber como reagir perante a tranquilidade de Gabriel com isso.
Gabriel, no entanto, franziu as sobrancelhas em confusão, como se não entendesse o que havia nesse cenário para deixá-lo bravo, o que era o oposto da reação que ele teve quando eu reagi àquele assalto.
— Sei que Cat te protegeu com tudo o que ela tinha, você estava segura com ela — ele sorriu de forma reconfortante, os olhos acolhedores. — Além disso, você parece inteira e bem viva pra mim.
Sorri com isso, pela compreensão do meu irmão e porque ele estava certo, Catarina me protegeu até a morte. Ela não contou sobre mim para Primazia, enquanto essa poderia ter sido a informação que salvaria sua vida. E de todas as coisas quebradas, balas perdidas e golpes que aconteceram naquela excêntrica sala de estar, o armário onde eu estava escondida foi o único que não sofreu danos, intacto até o final. Catarina me protegeu até o seu último suspiro.
Lembranças das duas únicas conversas que tive com Catarina me vieram à mente. Céus, eu queria tanto ter tido mais tempo. Ter feito alguma coisa. Sentia como se a morte de Catarina tivesse tirado algo do mundo, algo importante. E parte da culpa estava nas minhas mãos. Por ficar parada. Por ter saltado naqueles trilhos e roubado esse poder de alguém que realmente poderia fazer algo útil. Por arruinar as coisas por onde quer que eu passasse.
— E quanto aos poderes? — olhei para Gabriel como se ele tivesse A resposta, aquela que faria tudo se encaixar e esse vazio no meu peito passar.
— Não posso surtar só porque você está diferente — Gabriel bufou uma risada e balançou a cabeça como se eu tivesse dito algo muito engraçado. — Eu sobrevivi a sua primeira menstruação, posso lidar com isso.
— Gabriel! — exclamei, chutando sua canela sob a mesa.
— Além disso, é bem legal ter você aqui — Gabriel sorriu brilhantemente. — Eu nunca quis esconder nada de você, Dal, mas também não queria impor essa vida a você, estou feliz que tenha buscado isso por escolha.
Senti meu estômago embrulhar com isso, o conforto que tinha acabado de receber pela aceitação do meu irmão perdendo força quando me lembrei do porquê estava realmente ali, não porque eu queria ajudar em casa como Gabriel ou me tornar uma super-heroína, mas porque eu não me sentia bem em minha própria pele, eu odiava esses poderes e odiava ainda mais Primazia. Mas Gabriel parecia tão feliz por ter com quem compartilhar essa parte da sua vida que não tive coragem de negar, de dizer que eu tinha tudo, menos aceitado que essa era minha realidade agora.
— Eu apenas sinto muito que tenha começado assim — ele continuou, sem se dar conta da minha discussão mental. — Eu gostaria que você tivesse vindo direto até mim, eu te protegeria de ter que lidar com alguém como Primazia.
— O que você sabe sobre ela? — decidi mudar de assunto antes que começasse a chorar.
Egor colocou uma mão na minha bochecha de forma consoladora, o gesto me fez sorrir, enquanto observava Gabriel terminar sua cerveja, seu corpo meio inclinado para baixo da mesa, parecendo procurar alguma coisa.
— Iddie e Egor estão com você? — perguntou alheio, querendo apenas quebrar o silêncio.
— Sim, Iddie adorou seu chapéu — lancei um olhar reprovador para Iddie, voando ao redor do chapéu desde que chegamos, esperando a hora certa para derrubá-lo.
— Obrigado, é difícil encontrar alguém que reconheça meu bom gosto — Gabriel se gabou, consertando sua postura e me entregando um envelope que tirou de baixo da mesa. — Isso é tudo que consegui descobrir.
— Está vazio — fiz uma careta para o envelope, sua falta de informações me ofendendo.
— Sei disso — Gabriel riu desesperado, alto e descontrolado. — Não sabemos nada! Nada, nadinha, as pessoas estão surtando querendo informações, faz ideia de quanto dinheiro vamos ganhar quando contar que Primazia deu um jeito na Cat? Ninguém sabe nada dessa maluca, Dal, isso nos dá uma pista, nossa única pista.
Gabriel continuou falando, mas Egor, eu e Iddie já estávamos longe, nossos olhos arregalados com o que Gabriel tinha acabado de dizer. Balancei a cabeça para limpar meus pensamentos, processando a imagem catastrófica do que aconteceria se o mundo descobrisse sobre isso.
— Não pode fazer isso — implorei com a voz trêmula, medo gelando meu corpo com a perspectiva.
Se Primazia soubesse sobre mim... Se Primazia sequer sonhasse que eu era a herdeira dos poderes da mãe dela. Céus. Eu não estava preparada para isso. Eu não poderia lidar com ela. Ainda não. Por favor, ainda não.
— Se Gabriel falar demais vão vir atrás de saberem mais da Catarina e dos poderes e da gente, e eu não acho que você resista a muito tempo de tortura ou mesmo intimidação, você vai abrir a boca assim que te pressionarem o suficiente e então já era para você e para nós — Iddie provocou, sendo cruel apenas por ser, mas também me alertando, sua expressão sem qualquer diversão quando voou atrás de Gabriel e derrubou seu chapéu. — Controle seu irmão.
— Ei — Gabriel resmungou, abaixando-se para pegar o chapéu. — Está tudo bem? Você parece pálida.
— Não pode contar a ninguém — repeti o mais firme que pude, irritação nublando meu raciocínio com a animosidade de Gabriel perante a toda essa loucura. — É assim que você ganha dinheiro? Distribuindo informações sem pensar em quem afeta? — acusei, embora essa não fosse minha intenção, eu não queria depositar minha raiva de novo em Gabriel, mas era tão difícil não fazer isso, me segurar para não deixar minha frustração e medo vazar nas minhas falas.
— Dal — ele disse o apelido com um tom paternal que às vezes dava as caras, recolocando seu chapéu sem se alarmar com minha hostilidade repentina. — Não tem como ganhar dinheiro nessa área sendo moralista.
Senti meu peito apertar, engolindo em seco quando lembrei do lugar onde estava, na frente de quem eu estava. Aquele não era o meu irmão Gabriel, era Bola Branca, informante da lealdade maleável e mercenário audacioso, sempre jogando no time que convém. Eu não estava tomando café com meu irmão na segurança de casa, estava em uma boate de aprimorados, vestindo roupas que eu roubei depois de testemunhar um assassinato, buscando informações para me vingar de uma terrorista, cujo único que podia ter alguma informação, por acaso, era o meu irmão.
Levantei-me bruscamente, colocando a capa de volta antes de correr para a saída. Ouvi Gabriel gritar meu nome, mas não esperei por ele. Não fiquei para ver se Iddie e Egor estavam atrás de mim. Não olhei duas vezes na direção da pista de dança que tive que atravessar ou me deixei preocupar em ser reconhecida quando passei correndo pelo meu pai.
Eu só precisava sair daquela sala. Era demais. Era tudo demais. Eu precisava sair e respirar. Eu não conseguia respirar. Continuei puxando o ar, mas parecia não surgir efeitos, não era o suficiente. Que loucura. Que maldita loucura em que fui me meter! Minha vida estava virando de cabeça para baixo na frente dos meus olhos e eu não estava conseguindo me mover. Não poderia fazer isso. Por que eu achei que poderia fazer isso?
— Dal — Egor murmurou com pena, de pé no meu ombro, ele passou os braços pelo meu pescoço em um abraço.
— Eu não sei o que estou fazendo — tentei respirar, correndo para mais longe da boate, tentei respirar, tropecei em meus próprios pés, tentei respirar, caí para frente, minhas mãos nos meus joelhos enquanto puxava desesperadamente o oxigênio, que não me enchia com vida, mas sim queimava minhas narinas e nublava minha visão.
Eu não tive forças nem mesmo para me assustar quando Gabriel apareceu ao meu lado, colocando as mãos nos meus ombros e me puxando para ficar com a coluna erguida, parada na sua frente como uma boneca flácida. Preocupação marcava seus olhos por trás das lentes dos óculos, sua boca se mexendo, embora eu não conseguisse ouvi-lo, somente ruído de fundo tocando em meus ouvidos. Também não tive forças para resistir quando ele tirou o capuz da capa de Catarina, revelando meu rosto marcado por lágrimas que eu não conseguia controlar.
Gabriel disse mais coisas e me puxou na direção do carro ao nosso lado, um que eu não tinha notado que estava ali. Eu fiz um som baixo, como um animal ferido, meus pés resistindo a se moverem. O toque suave de Gabriel nas minhas costas ajudou, assim como o peso reconfortante de Egor e até mesmo de Iddie em meus ombros. Eu não estava sozinha.
— Ataque de pânico — as palavras pairaram no ar quando já estávamos dentro da segurança quente do carro. — Não sabia que você tinha isso.
Eu também não sabia, pensei.
Gabriel olhou para mim de lado por um tempo, ligando o carro apenas quando se deu por satisfeito, o som reconfortante do motor e as luzes do farol me dando algo em que focar, quando ignorei minha exaustão mental e me obriguei a terminar a conversa com Gabriel. Embora ele não estivesse pressionando, eu sabia que devia isso a ele, não era justo deixá-lo no escuro quando ele foi tão sincero comigo.
— Se descobrirem que Catarina morreu — comecei devagar, reunindo uma coragem que eu não tinha, as palavras pesadas na minha língua, pastosas como veneno. — Vão querer saber quem ficou com os poderes e virão atrás de mim.
— Oh — Gabriel exclamou. — Ok, vamos manter isso em segredo — declarou e continuou a dirigir.
Virei a cabeça devagar para encará-lo. Era isso. Gabriel apenas... Entendeu.
Minha segurança estaria em risco se essa informação vazasse, então ele não contaria. Simples assim. Me senti idiota por surtar e não confiar em Gabriel, deixando minha ansiedade e meus medos levarem a melhor sobre mim. Vergonha queimou minhas bochechas. Eu era tão boba. Mas não podia deixar de me sentir aliviada com a certeza de segurança, estava tudo bem, meu segredo seria guardado.
— Mais alguém sabe? — Gabriel perguntou, sua voz me tirando da sonolência confortável em que começava a cair.
— Talvez o porteiro da escola — murmurei baixinho, sentindo que tinha chegado ao meu limite de revelações e reviravoltas por uma noite.
— Por que quer tanto saber sobre a maluca? — Gabriel, ao contrário de mim, soava enérgico e ansioso. — Se eu te contar o que eu sei, você me diz por que está tão interessada? Considerei a proposta, olhando para Iddie e Egor, minhas pálpebras pesando com a tentativa de focar em suas pequenas formas na escuridão do carro.
— Conte, ele pode ajudar, já que você confia tanto nele — Iddie incentivou, ela não estava tão animada quanto de costume, deitada dentro do porta-luvas, entediada. — Mas não fale que pretende passar os poderes, isso é assunto nosso. — Egor? — quis saber sua contribuição, o anjo aconchegado no meu ombro, quietinho como sempre.
— Já falei que sou contra a tudo isso — Egor declarou.
— Ele concorda comigo — Iddie decidiu por ele.
Voltei a prestar atenção em Gabriel, que me olhava com um sorriso torto, assim como os óculos escuro em seu rosto.
— Certo — concordei por fim, me forçando a erguer a cabeça e focar na conversa que chegou aonde eu queria.
Gabriel suspirou aliviado, sorrindo animado quando pigarreou e enumerou nos dedos tudo o que sabia sobre Primazia, enquanto esperávamos o semáforo ficar verde.
— Tudo o que sei é que ela é má sem um motivo aparente; que é muito corajosa por atacar em plena luz do dia, porque não sei se você sabe, mas os verdadeiros vilões evitam a todo custo serem vistos, chamar atenção não é muito inteligente nesse ramo; eu também sei que ela deve ser uma narcisista, sério, Primazia? Quem ela pensa que é?
— Gabriel, foco — alertei quando o vi começar um monólogo sobre a importância dos nomes na construção de um alter ego ou algo do tipo.
— Estou focado — Gabriel fez beicinho, enquanto buzinava para alguém que ele quase atropelou, me fazendo conferir se meu cinto estava realmente preso, eu não sabia que meu irmão tinha carteira de habilitação. — Tem mais, ela está trabalhando com gente de fora, tinha vários capangas ao redor dela no dia do ataque, mas nenhum deles é conhecido ou já esteve envolvido com aprimorados, o que significa que ou eles são robôs ou Primazia está recrutando gente de fora.
Assenti pensativa, esperando que Gabriel continuasse a falar, mas ele apenas assentiu também e continuou a dirigir.
— Você está brincando? — gaguejei estarrecida. — É só isso? Robôs ou o que? Estrangeiros? Como isso ajuda?
— Estou falando sério — defendeu como se estivesse ofendido. — Pense só, aquelas asas que ela estava usando naquele ataque, aquilo é tecnologia avançada, Dal, os caras que trabalham com ela podem muito bem serem robôs.
— Que tipo de informante é você? — zombei com uma risada fraca, vendo Gabriel lutando para me impressionar. — Como você sabia que Catarina tinha morrido, mas sabe tão pouco sobre Primazia?
— Tenho amigos na polícia, por que acha que eles me ligaram no dia que você foi presa? Eles me contaram sobre a morte de Cat quando foram investigar a gritaria — ele encolheu os ombros, sua boca se torcendo em uma careta. — Foi uma morte bem feia, odeio que você tenha tido que ver — balançou a cabeça para limpar os pensamentos. — De qualquer forma, Primazia e eu não temos nenhum conhecido em comum para me passar informações, na verdade, ela não parece ter conhecidos em comum com ninguém.
Isso não era bom, nada sobre Primazia era bom.
— É a sua vez — Gabriel me puxou de volta para a realidade antes que eu pudesse surtar de novo.
— Certo, hum... — pensei na melhor maneira de contar, soltando um bocejo longo quando bati a cabeça de volta na janela, meus olhos se fechando involuntariamente. — Sinto que preciso me vingar dela por ter matado Catarina — contei o superficial e essencial, temendo que Gabriel finalmente mostrasse sinais de resistência com isso.
Agradeci a Iddie e Egor por estarem calados, não sei se saberia lidar com mais duas opiniões entrando nessa conversa, não quando eu mal estava sabendo lidar só com a de Gabriel, que, sempre me surpreendendo, apenas me lançou um olhar curioso, parecendo me analisar por um momento, para então dar de ombros, relaxando no banco do motorista e jogando a cabeça para trás enquanto esperava o sinal abrir.
— Vingança, é? — postulou, sua cabeça inclinando-se para frente, como se de repente estivesse carregando algo muito pesado. — Não achei que você fosse desse tipo, Dal — me encolhi no meu lugar, apertando os olhos sem saber se deveria esperar por uma repressão ou questionamento. — Mas eu acho que não sei tudo sobre você, não é, irmãzinha?
Não esperava por isso. Arrisquei olhar na direção de Gabriel, me deparando com seus olhos a mostra, um sorriso verdadeiramente afetuoso em suas feições abertas.
— Não sou ninguém para te impedir de entrar nessa vida, Dal — contou baixinho, algo nesse momento enchendo o carro de fragilidade e emoção. — E odeio que você tenha escolhido isso, tanto quanto amo ter você mais perto.
— Eu... — comecei e não terminei, sem saber o que dizer, para onde isso estava indo?
Gabriel deveria me impedir. Ele deveria dizer que tudo isso era loucura, contar tudo ao nosso pai e me levar a um médico. Ele deveria ser o responsável. Mas Gabriel, apesar do quão superprotetor ele era, não era ninguém para falar sobre isso quando entrou nessa vida aos 13 anos e, mesmo não me conhecendo tão bem quanto pensava, Gabriel sabia que quando eu queria uma coisa, queria de verdade, nada e nem ninguém me impedia.
— Você realmente acha que tem alguma chance? — perguntou com seriedade, verdadeiramente sincero. — Catarina foi uma das mulheres mais fortes que já conheci e ela não conseguiu vencer a Primazia.
— Ela estava meio velha — falei sem pensar, mordendo a língua quando vi Iddie se levantar para me lançar um olhar de ódio. — Desculpa — murmurei com educação.
— Dalila, eu preciso de uma resposta — Gabriel pediu, colocando uma mão no meu ombro e me obrigando a encará-lo. — Isso é o que você realmente quer? Vingar Catarina?
Catarina piscou em minha visão. Morta. Os destroços do velho mercadinho perto da escola. Destruído. Camisas de alunos mortos voando em uma última homenagem. Mortos porque não correram rápido o suficiente. Porque ninguém imaginava que uma mulher psicótica iria explodir tudo que visse pelo caminho a troco de... Nada.
Então sim. Eu realmente queria matar Primazia. Destruí-la. Fazê-la sentir o que é não correr o suficiente. Como é se sentir pequena e indefesa, trancada dentro de um armário enquanto vê mãe e filha brigando até a morte. Eu queria que Primazia sofresse como eu. Como Catarina. Como as famílias de todas as pessoas que morreram em seu ataque. Que ela ouvisse o estalo doentio de ossos quebrando e o cheiro pungente de sangue e tivesse pesadelos eternos com isso. Que ela sufocasse na própria culpa. Eu realmente queria vingança. Porque não é justo! Como ela ousa? Como ela ousa sair matando essas pessoas como se tivesse direito de escolher quem morre e quem vive? Quem deu a ela o direito de usar um poder como o que ela tem para ferir as pessoas? — Sim — respondi à pergunta de Gabriel e nunca, durante toda a minha vida, tive tanta certeza de algo.
Eu não sabia como mataria Primazia, é verdade. Não sabia nem mesmo como encontrá-la e provavelmente teria um ataque de pânico fulminante quando fizesse isso. Eu não sabia de muitas coisas. Mas existe essa confiança inabalável que preenchem as pessoas de coração vazio. Alcançar Primazia não era apenas questão de vingança, mas também de redenção, uma forma de livrar minha consciência da culpa esmagadora de não ser o suficiente. De não ser boa o suficiente como filha, irmã ou namorada. De não ser o suficiente para o mundo. Não ser o suficiente para mim.
Para minha surpresa o carro voltou a andar, Gabriel relaxando ao meu lado, ligando o rádio, deixando a batida animada de alguma música antiga afastar a tensão do ar. Eu também relaxei, minha cabeça pendeu para o vidro da janela, meus olhos se fechando.
— Então — Gabriel cortou o silêncio, ele estava radiante, dedos batendo no volante, um sorriso grande no rosto. — Eu não vou te impedir, mas você também não vai estar sozinha — anunciou sua decisão final.
Iddie e Egor soltaram ruídos de surpresa, mas eu me sentia muito fraca para qualquer reação que exigisse mais esforço do que lançar um pequeno, porém significativo, sorriso para o meu irmão. É claro que ele não me impediria, não poderia. Gabriel me conhecia até os ossos, ele preferia que eu fizesse essa loucura sob a supervisão dele do que agisse contra ele. No fim, seja para me proteger da chuva ou para embarcar numa missão suicida, eu sempre teria o meu irmãozão.
— Estou supondo que você ainda não sabe controlar seus poderes — não foi uma pergunta, um tom espertinho em sua voz quando decretou: — Você vai precisar treinar, começamos amanhã!
Apenas soltei um pequeno grunhido com isso. Não questionei, fechando os olhos e deixando a música preencher minha cabeça. Talvez as coisas estivessem começando a melhorar. Era bom não estar mais sozinha.
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