Honeycrisp
12 de abril de 2017
Acordei com Iddie cantando. Ela não canta bem.
— Bom dia, Dalila — Egor saudou. — O que vamos fazer hoje?
Resmunguei algo sobre escola e exorcismo, saindo da cama para me arrumar antes de começar o dia.
— Pela última vez, não somos demônios para sermos exorcizados — Iddie parou de cantar para me corrigir.
— Do que você está falando? Você é literalmente um demônio — apontei para os chifres e o rabo de Iddie.
— Essa é uma personificação caricata, eu sou muito mais do que isso.
— Você parece mais animada hoje — comentei, tentando acertar a altura do meu rabo de cavalo, não ajudava o fato de que o espelho do quarto estivesse pendurado tão alto.
Iddie parecia excepcionalmente animada quando cantarolou um pouquinho mais e introduziu o assunto:
— Já me diverti o suficiente, acho que estou pronta para contar como pode passar a gente adiante —Iddie sorriu, como se fosse a única a entender uma piada.
— E como faço isso? — perguntei desconfiada, mas não evitando minha curiosidade.
— Iddie — Egor levantou um dedo em alerta.
Iddie enrolou um pouco, fazendo suspense antes de revelar o que eu tanto queria saber, até me fazendo prender a respiração e balançar as mãos. Tanta enrolação apenas para:
— Não tem como! Está presa a nós — um sorriso provocativo decorou seu rosto e eu ouvi Egor suspirar.
Essa é Iddie, destruindo minhas esperanças desde terça-feira. E ainda estávamos na quarta. Que criatura terrível.
— O quê? — gritei com os olhos arregalados e a boca entreaberta. — Tem que ter um jeito, vocês mesmo disseram que são passados de geração em geração — senti que uma parte do meu mundo tinha acabado de ir ao chão.
— Bom, sim, tem um jeito, mas não é como se você fosse conseguir — Iddie deu de ombros, flutuando para o teto, completamente indiferente ao meu desamparo.
— Qual é esse… — minha fala foi interrompida por Gabriel entrando pela janela. Vestia uma regata amarela e estava mancando, parece que a surra foi boa.
Parei de falar nesse momento, tratando de finalizar meu cabelo e não olhando para Gabriel, torci para que ele nem sequer estivesse me vendo. Poucas coisas são mais desconfortáveis do que brigar com quem você mora e ainda ter que ignorar tudo que foi dito em favor da civilidade.
— Dal, — Gabriel chamou, sua voz incerta. — Podemos conversar sobre o que aconteceu?
Estreitei os olhos na direção do chão, me recusando a cruzar o olhar com meu irmão. Conversar? O que tínhamos para conversar? Ele queria continuar o sermão de ontem ou apenas iniciar um novo sobre como fui infantil? Engoli em seco. E se ele me odiasse? E se eu fui longe demais?
— Ignore — Iddie declarou, voltando a cantarolar.
— É sua chance de esclarecer tudo — Egor aconselhou. — Você está se sentindo culpada, pode se desculpar agora.
Apenas por um segundo considerei, olhando entre Iddie e Egor. O anjo estava certo, a culpa estava me sufocando, mas meu orgulho ainda estava vencendo. Não era justo. As coisas que eu disse, eu tive motivos para dizê-las, acreditava nelas, não fazia sentido pedir desculpas se não seriam sinceras.
E mais uma vez segui Iddie, porque não tinha certeza se queria que Gabriel explicasse alguma coisa. Tudo o que tínhamos para dizer ficou bem claro. Eu sabia que estava com muito medo. Com medo de ver mais da decepção da noite anterior no rosto do meu irmão. Então, sem conversa. Sem conversa significava que ainda poderíamos pairar nesse estado ambíguo de indiferença e arrependimento que as brigas costumam ter, isso de se importar demais com algo, mas não querer (não conseguir) mostrar.
— Preciso fazer o café — declarei, saindo do quarto antes que ele pudesse responder.
Ouvi o chuveiro ligar pouco depois e fiquei feliz por Gabriel não ter insistido na conversa, me deixando ter o meu espaço. Foi legal da parte dele. Mordi o lábio, talvez eu devesse...
— Você não devesse nada — Iddie cortou meu pensamento.
— Essa frase está incorreta — Egor pontuou.
— Mimimi essa frase está incorreta, mimimi eu sou um anjo e falo tudo certinho — Iddie o imitou com a voz fina.
Sorri para a briguinha boba dos dois. É reconfortante ter com quem conversar nessas horas, mesmo que eu não estivesse participando da conversa. Iddie e Egor passaram séculos juntos, a dinâmica deles era impecável, não havia nada um sobre o outro que eles não soubessem. Era estranho que eles existissem há tanto tempo, mas que tão poucas pessoas soubessem de suas existências.
— Egor — perguntei ao anjo, porque sabia que Iddie não responderia. — Por que seus, hum... Portadores? Por que eles nunca se registraram legalmente? Sabe, como a lei exige?
Egor deixou de andar em volta do pote de açúcar em cima do balcão com Iddie para voar mais perto de mim. Iddie o provocou, dizendo que ele fugiu da briga.
— Desde que foi descoberto que as pessoas poderiam ter habilidades especiais, o governo ficou atento a elas, eles exigem um cadastro, exames mensais e inúmeros testes que são refeitos várias vezes, você sabe essa parte, certo? — Egor começou de forma didática, seu tom fazendo Iddie soltar um bocejo.
— Eu sei — dei de ombros, desligando a água do café, respirando fundo quando o líquido encontrou com o pó e preencheu a cozinha com o cheiro de café fresco, um pequeno sorriso surgiu nos meus lábios com isso.
— Também deve saber o quão interessante essas pessoas são para o governo.
— Um soldado aprimorado vale mais do que um soldado normal — Iddie se intrometeu. — Um telepata é sutil e controlável, por isso vale mais do que um soldado aprimorado, porque chantagem e roubo de informações são as guerras do mundo moderno, baby.
— Preferimos não sermos usados para esses meios — Egor concluiu, aconchegando-se no meu ombro.
Levei o café à mesa, junto da manteiga e do leite, pensativa sobre o que eles estavam dizendo, era tão estranho de repente fazer parte disso. Nunca me interessei pela comunidade de aprimorados ou os super-heróis da vida real, às vezes algum ataque acontece no país, mas eles se encaixam muito mais como terrorismo do que um ataque de supervilão. Nunca foi algo que me chamasse atenção, eu não era fã de nenhuma personalidade e História nunca foi minha matéria preferida.
— Mas sempre podem dizer não, quer dizer, o governo não pode obrigar as pessoas a participarem das suas organizações secretas — disse com toda minha ingenuidade juvenil.
— Eles querem que você acredite nisso — Iddie debochou. — É como a democracia.
— Bom dia, pai — cumprimentei quando vi a porta abrir, a conversa com Egor sendo deixada de lado.
Em algum lugar da minha mente senti uma pontada com a chegada do meu pai, quase como se pudesse sentir a barragem que coloquei entre os pensamentos dele e os meus, linhas soltas de ideias e devaneios se perdendo no barulho da minha própria mente como sussurros em um show de rock.
— Bom dia, Dalila — meu pai se aproximou, carregando um saco de pães e sentando-se à mesa.
— Bandida Dalila? Foi isso que ele disse, não foi, Dal? — Gabriel também apareceu, molhando o chão com a água que escorria do seu cabelo.
Não respondi. Preferindo tomar meu café o mais rápido possível. Também me sentei, enchendo minha caneca com café antes que Iddie decidisse deitar-se dentro dela.
— Eu sei, eu sei, devem estar ansiosos para saberem o que tenho pra hoje — Gabriel sentou-se na cadeira de praia, tirando de baixo da mesa um tapete. — Um tapete!
Era redondo, amarelo e feito de crochê.
— Um tapete? — não consegui segurar a interrogação, por que meu irmão trouxe um tapete?
— Um tapetinho — Egor se encantou.
— Um tapete? — meu pai deve ter falado, mas entendemos:
— Untar o patê? — tentei adivinhar.
— Uma Arlete — Gabriel foi atrás.
— Isso nem faz sentido — retruquei sem conseguir reprimir um sorriso com a brincadeira tão familiar.
Como ficar brava por muito tempo? Não dá. Os irmãos têm esse poder.
— Claro — Gabriel revirou os olhos. — Por que untar o patê faz, né?
— Dalila, precisamos ir — Egor lembrou, batendo no pulso.
Chequei o horário no relógio da parede, terminando de engolir o café e indo pegar minha mochila.
— Esse tapete foi um presente da minha namorada — Gabriel disse orgulhosamente, tendo como resposta uma risada sincera minha, do meu pai e das entidades nos meus ombros. — É sério, eu tenho uma namorada, sabiam?
— Claro que tem — meu pai disse em tom sarcástico.
— Eu não entendi bem o que o senhor disse, mas acho que está duvidando de mim — Gabriel protestou e nós rimos de novo. — Por que é tão difícil de acreditar? A Dalila tem um namorado.
— A Dalila é bonita — meu pai defendeu com grunhido embolado.
— Da fila de botas? — Gabriel chutou como se fizesse algum sentido.
— Estou indo embora — anunciei já batendo a porta, correndo para a rua antes que Gabriel pudesse me dar alguma recomendação para não parar mais na delegacia e entregasse tudo o que aconteceu na noite anterior.
Tive sorte dele não ter falado nada sobre isso para o nosso pai. Nenhum de nós queria preocupá-lo afinal.
— Para onde estamos indo agora? — Iddie dançou ao meu redor, suas marias chiquinhas voando com o vento.
— Escola — grunhi de cabeça baixa.
— Mas isso é tão chato — ela disse de forma arrastada.
— Realmente — não pude discordar.
— É importante — Egor defendeu.
— Supostamente — mas pude duvidar.
Iddie e Egor preencheram o tempo em que eu normalmente estaria ouvindo músicas felizes e discursos motivacionais com uma discussão sobre o melhor lugar para o primeiro encontro. Egor achava que era uma cafeteria. Respirei fundo, sem saber como sobreviveria ao dia de aula com as duas entidades falando sem parar nos meus ouvidos. Uma parte de mim, no entanto, estava meio que feliz pela companhia.
— Ninguém consegue ter uma conversa decente em um parque de diversões — Egor rebateu o argumento de Iddie que consistia basicamente em “eu decidi, então é verdade”.
— Sim, exato, assim nunca vai ficar aquele silêncio constrangedor — Iddie insistiu.
Suspirei. Seria um longo dia.
— Raio de Lua — Júnior interrompeu a divagação das entidades nos meus ombros quando cheguei à plataforma do metrô. — Por que não me respondeu?
Andei até Júnior com um sorriso no rosto, contornando as poucas pessoas pela plataforma, passei meus braços por seu pescoço assim que cheguei perto o suficiente, sentindo seu cheiro de perfume de marca e tinta.
— Eu estava na cadeia — fiquei na ponta dos pés para beijá-lo, feliz por estar com ele.
— Por quê? Foi pega atravessando a rua no sinal vermelho? — depositou um beijo em cada bochecha minha, a mistura perfeita entre carinhoso e discreto.
— Para sua informação, eu parei um assalto.
Júnior piscou, sem reação por um momento. Então riu.
Eu congelei, sentindo que não deveria ter falado disso com Júnior. Ele não aprovaria. Tenha dó, nem eu aprovava minha própria atitude, nem mesmo conseguia explicar meus motivos. Eu queria dividir isso com alguém, mas Júnior com certeza não era a melhor opção. Ele absolutamente odiaria tudo isso. Foi irresponsável, ele diria. Não que Júnior seja um exemplo de responsabilidade, mas existe uma grande diferença entre matar aula para ir à um jogo de futebol e parar um assalto porque ganhei poderes depois de comer uma maçã dada por uma estranha que lê mentes. Júnior surtaria. E então me arrastaria para o hospital mais próximo.
— Você? Com essas pequenas mãos de princesa, reagiu a um assalto? — zombou, indo em direção a um dos vagões, alheio ao pequeno surto que eu estava tendo.
O metrô estava vazio nesse horário, apenas meia dúzia de pessoas em seus celulares, deixando espaço para nos sentarmos, Júnior deixando o lado da janela para mim.
— Por quê? Você acha que eu não poderia? — ergui uma sobrancelha em desafio, de repente ofendida, minha consciência gritando coisas como NÃO!!!!!! e DEIXA ELE PENSAR QUE É UMA PIADA!!!! e ainda AAAAAAAAAA!
— Eu acho que você não seria tão burra — Júnior balançou a cabeça em um gesto brincalhão.
Mordi o lábio, desviando o olhar. Algo em minha expressão deve ter gritado: CULPADA!
— Ela foi burra o suficiente — Iddie me dedurou, mesmo que Júnior não pudesse ouvi-la.
Júnior suspirou, tirando a touca que usava da cabeça para bagunçar os cabelos. Respirei fundo, querendo me bater por ter contado, mas também me sentindo aliviada, porque eu precisava mesmo falar sobre isso com alguém.
— Tem noção do quão perigoso é reagir a um assalto? — bufou com irritação quando eu não corri para avisar que era tudo uma piada. — Sabe quantas pessoas morrem assim?
— Eu já entendi — choraminguei, sentindo vontade de me esconder do mundo. — Foi uma decisão imprudente.
— Está feliz? Você me fez bagunçar meu cabelo — Júnior se inclinou para se olhar no reflexo da janela, tentando arrumar os fios fora do lugar.
— Não sei por que você ainda penteia seu cabelo se sempre está usando essa touca encardida — estiquei a mão para bagunçar um pouco mais os fios negros do garoto.
— Foi você quem me deu essa touca encardida — falou como se fosse uma defesa decente, puxando meu corpo para mais perto do seu, o movimento fazendo Egor voar para longe do meu ombro.
— Tenho certeza de que estava limpa quando te dei — estiquei o pescoço para beijar sua bochecha, me aconchegando mais em seus braços.
Júnior ficou em silêncio e eu suspirei, sabendo que ele só voltaria a falar quando eu contasse o que aconteceu. Esfreguei minha cabeça em seu ombro, me escondendo do seu olhar e comecei a contar (com a ajuda da narração colorida de Iddie) os acontecimentos da noite anterior.
— Vocês passaram da estação — Egor comentou ao acaso.
— Passamos? — virei a cabeça na direção da janela.
— Droga, por que não disse que nosso ponto passou? — Júnior indagou quando seguiu meu olhar, puxando-me para a saída para pegarmos o metrô de retorno. — E por que decidiu impedir aquele cara de ser assaltado? Coisas assim acontecem o tempo todo, não pode saltar em socorro de todo mundo que vê — retornou ao assunto enquanto nos enfiávamos no novo vagão, esse cheio e sem barras de apoio disponíveis para segurarmos.
— Se podemos fazer uma boa ação, deveríamos fazer, certo? — inventei, já que tinha omitido a parte realmente importante de tudo isso, a parte onde eu estava cansada e com raiva do mundo, confusa por ter ganho Iddie e Egor e com medo do que isso significava para o meu futuro. Mas talvez eu realmente quisesse ajudar. Fazer alguma diferença.
— É aí que está a questão, você não podia fazer nada — Júnior concluiu, seu rosto contorcido em uma careta.
— Eu consegui impedir o ladrão no final, não foi? — sorri sem graça, querendo que ele visse meu lado da história, eu não estava esperando exatamente flores e aplausos, mas não recusaria um tapinha nas costas.
— Quem impediu aquele ladrão foi a polícia, não você — Iddie lembrou.
— Detalhes — a espantei com um gesto amplo.
— O quê? — Júnior inclinou a cabeça, sem saber com quem eu falei, algumas pessoas ao nosso redor também procuraram o suposto mosquito que espantei.
— Nada, querido — segurei o quadril de Júnior quando o metrô parou, evitando tropeçar. — Apenas agi por instinto, não poderia ficar sem fazer nada.
— Poderia sim — Iddie e Júnior disseram ao mesmo tempo.
— Não poderia não — Egor e eu rebatemos.
Saímos do metrô pela saída que não foi afetada pelo ataque da supervilã rosa e dourada, o segredo de sua identidade e intenções ainda sendo o principal tópico que podíamos ouvir entre as pessoas que iam e vinham em um fluxo constante. Me apressei para ficar perto de Júnior, porque ele não gostava de andar de mãos dadas quando estávamos na rua, dizia que atrapalha a passagem das pessoas.
— O que você teria feito no meu lugar? — voltei ao assunto, insatisfeita por sua reação.
Olhei para os dois lados antes de atravessar a rua, respirando aliviada quando um pouco da multidão desapareceu e eu pude me aproximar mais de Júnior.
— Você disse que tinha uma viatura perto?
Assenti, olhando para trás para ver se Egor ainda estava por perto, enquanto nos aproximávamos de uma pequena multidão de alunos, distraídos com algo mais à frente.
— Teria ido direto pedir ajuda aos policiais — respondeu com simplicidade e eu parei de andar, porque, droga, Júnior estava certo. E também porque estávamos na frente dos destroços do mercadinho que a supervilã explodiu.
O sorriso brincalhão no meu rosto sumiu quando contemplei a cena, um nó se formando na minha garganta.
— Você viu quando aconteceu? — Júnior se aproximou de mim forma de protetora, seu tom mais baixo e conspiratório.
— Não diga a ele — Egor foi rápido em aconselhar.
— Vi — admiti, ouvindo Egor suspirar com isso.
Júnior balançou a cabeça dessa forma decepcionada, como se eu tivesse culpa por estar presente na hora do ataque.
Ficamos parados ali por alguns minutos, observando o amontoado de escombros chamuscados sendo retirados. Havia muita poeira, blocos de cimento, plástico, metal e vidro misturados entre as lembranças de todos ali presentes.
A maioria dos alunos gostava de comprar doces e salgadinhos após as aulas, passear pelas prateleiras, enquanto conversavam sobre o longo dia que tiveram e as lições que não param de chegar. Quantas pessoas não teriam morrido? Quantas não foram as vezes que Júnior e eu passamos ali antes da aula para comprarmos alguma coisa? Poderia ter sido eu... Poderia ter sido Júnior.
E quantas pessoas, quantas crianças, não morreram durante a explosão? As aulas haviam acabado pouco antes de acontecer, meia hora talvez, deveria haver muitos adolescentes procurando guloseimas para matarem a fome depois de cinco longas horas trancados na escola.
— Já sabem alguma coisa? — uma garota que estava ao meu lado perguntou a sua amiga.
Virei a cabeça, percebendo se tratar de Ana e Rebeca —ambas da minha sala, sentavam-se nos fundos — conversando baixinho sobre o acidente.
— Morreram sete alunos da nossa escola, vão fazer uma homenagem hoje — Rebeca respondeu.
— Eu ia passar nesse mercado, sorte que fui pelo caminho de baixo — Ana confessou baixinho.
— Primazia está sendo um problema para a polícia — Rebeca disse ao acaso.
— Como sabe que o nome dela é Primazia? — Ana indagou.
— Eu vi no jornal? — Rebeca respondeu em tom incerto.
— Dal? Vamos? — Júnior chamou, me tirando a atenção da conversa das meninas.
Olhei para Egor e Iddie, quietos, olhando a situação com mais simpatia do que a maior parte das pessoas ali, todas com seus celulares levantados para fotografarem o cenário. Suspirei, tudo nesse ambiente era sufocante.
Segui Júnior em direção à escola, o resto do caminho sendo preenchido por sussurros inseguros em vez das conversas bem-humoradas costumeiras, alunos temendo desrespeitar o silêncio sombrio que se estendia conforme nos aproximávamos da escola.
— Imagina você ter uma tecnologia como essa e usar para machucar as pessoas — Júnior desabafou com um suspiro, sua expressão moldada em uma careta inconformada. — É como ganhar um presente e não merecer.
— O que faz alguém merecer algo assim? Ninguém deveria ter acesso a esse tipo de tecnologia — opinei, ainda que quisesse fugir do assunto.
Não queria falar sobre o que aconteceu. Lembrar do desespero intenso e do caos que se espalhou como uma praga por todos que tinha ouvidos para ouvir ou olhos para ver.
— Algumas pessoas fariam um uso melhor, ajudariam as outras — Júnior parou de andar e ficou na minha frente, olhando para mim como se visse a situação sob uma nova perspectiva. — Você deve estar certa, digo, sobre o assalto e tudo o mais, se você pode fazer a diferença deve fazê-la.
Arregalei os olhos com isso, minha respiração sendo roubada por esse garoto, esse garoto que de alguma forma se apaixonou por mim; que me apoiava e amava, mesmo que fossemos tão diferentes; que me disse a coisa certa, a que eu nem sabia que precisava ouvir. Inclinei-me para beijá-lo, sabendo que só poderia vê-lo no dia seguinte, um beijo longo e intenso. Agarrei seu pescoço, passando uma das mãos pela sua cabeça propositalmente para bagunçar seu cabelo. Júnior mordeu meu lábio como vingança. Rimos com isso, antes dele se afastar, constrangido por esse tipo de demonstração em público.
— Mas não quero saber de você enfrentando mais caras com armas, porque se não pode fazer a diferença, procure alguém que possa, não somos esse tipo de pessoa, Dal, somos apenas civis, você não pode ser uma super-heroína — acrescentou rapidamente, temendo que eu tivesse a ideia errada.
— E se eu fosse? — provoquei com um sorriso brincalhão.
— Você não é — respondeu sem hesitar, como se a ideia fosse impossível. — E se fosse, eu diria que não é sua obrigação se arriscar assim.
— Mas você acabou de dizer...
— Eu sei o que acabei de dizer, mas você não é como eles, Dal, odiaria você se arriscando assim — lutou para achar as palavras. — De qualquer forma, se não pode fazer a diferença, encontre alguém que possa.
— Hipócrita, isso é só moralidade seletiva — Iddie surgiu na conversa, reclamando sobre a fala de Júnior. — Se os outros tem poderes é obrigação deles fazer caridade, mas se é você aquela com poderes, ele prefere que você continue sendo só uma donzela em perigo?
Revirei os olhos para Iddie, sem me prestar a explicar a ela o romantismo de Júnior. Iddie não entenderia que Júnior só queria me proteger, impedir que eu fizesse algo estúpido.
— Até amanhã, Raio de Lua — se despediu com um beijo casto na minha testa, deixando minhas pernas bambas com gesto cortês.
— Até — suspirei, um sorrisinho permanente preso em meus lábios, observando Júnior ir para a sala de aula quando chegamos à escola.
— Vocês são tão bonitinhos — Egor voltou a se sentar no meu ombro, agora que os braços de Júnior haviam saído.
— Aposto que não duram um ano juntos — Iddie riu como se fosse mesmo uma piada divertida.
— Para sorte deles, você sempre perde suas apostas — Egor defendeu.
Não pude evitar, acabei rindo da expressão indignada de Iddie, recebendo olhares raivosos de todas as pessoas à minha volta que estavam de luto. Encolhi os ombros, olhando para os lados em busca de me misturar de novo.
Tudo parecia muito escuro, até o céu estava nublado. Inúmeros cartazes sobre os alunos que morreram cobriam as paredes da escola; fotos e cartões com declarações de amigos depositados em um pequeno memorial montado no refeitório. No pátio principal foram erguidas como bandeiras as camisetas do uniforme dos sete alunos, cheias das assinaturas e últimas mensagens dos colegas de classe.
Encontrei muitos grupinhos de alunos parados em frente às salas das vítimas, alguns chorando, outros procurando saber mais sobre o que aconteceu. Conversas sussurradas, muitos abraços e apertos de mãos, compartilhando o sentimento mútuo da perda, porque mesmo que você não conhecesse nenhum dos alunos que morreram, todos sabiam que qualquer um poderia estar no lugar deles.
Segui para a sala de aula, buscando escapar do som de choro que se espalhava como uma epidemia.
— A morte sempre traz esse sentimento de empatia — Iddie comentou, mais baixo, mais quieta. — Eu compreendo.
Achei estranha sua sinceridade inusitada, mas não comentei, me distraindo com a professora que entrou na sala junto comigo, exigindo que fizéssemos um círculo para compartilharmos sentimentos.
— Dalila, conte-nos sobre seus desejos suicidas — Iddie zombou depois que todos os alunos se ajeitaram em um grande círculo.
Como se não bastasse, Iddie flutuou até a professora, que estava sentada no centro do círculo, e empurrou o chapéu da mulher para fora de sua cabeça, o chapéu cor de café rolou pela sala e todos o encararam com a mesma animação com que encaravam aquele círculo supostamente terapêutico.
— Iddie — Egor e eu chamamos sua atenção.
Iddie soltou uma risadinha e voltou para minha mesa, onde eu me prostrei para assistir à aula. Enquanto a sala se focava na fabulosa Emilly Diniz, contando sobre como salvou a vida de Catarina durante o ataque de Primazia e se desculpando porque teria de sair mais cedo para um desfile de arrecadação de fundos para o mercadinho explodido, tentei manter minha atenção nos espíritos ao meu redor.
— Por que ela tem que ser tão... Perfeita? — resmunguei baixinho, franzindo o cenho na direção da garota.
Ninguém diria que Emilly tinha um defeito sequer. Aparentemente criada para ser a melhor em todos os aspectos da vida, ela tinha uma sorte absurda e sabia um pouco de qualquer assunto do mundo. Ela tinha cheiro de morangos silvestres, cabelos loiros do tom do sol, pele tão macia quanto pétalas de rosas e a voz com a suavidade de plumas caindo em neve. Mais parecida com uma princesa da Disney que isso impossível. Além disso, Emily sabia falar cinco idiomas (e estava aprendendo o sexto), era modelo, atriz, influenciadora digital, apresentadora, bailarina, cantora, escritora e uma ótima cozinheira.
— Suspeito que ela seja uma boneca — estreitei os olhos para Emilly e sua boca perfeita e rosada, movendo-se enquanto falava com sua dicção invejável e gesticulava com a postura de uma supermodelo.
— Acho que você deveria tentar se aproximar dela antes de julgar, todos temos defeitos — Egor, que se divertia rolando minhas canetas pela mesa com os pés, aconselhou.
— Você só está com inveja, porque nunca vai ser tão boa quanto Emilly é em qualquer coisa que ela faça — Iddie disse a dura verdade, voando pela sala e derrubando o chapéu da professora no processo.
— Iddie! — exclamei em voz alta.
Todos os olhares na sala se voltaram para mim, Emilly parando de falar e concentrando aqueles olhos bonitos no meu rosto, interesse e curiosidade brilhando neles.
— Dalila, quer compartilhar algo com a turma? — a professora perguntou, ajeitando seu chapéu mais uma vez.
Balancei a cabeça em negação, meus olhos se focando em Iddie, que literalmente sapateava em cima do chapéu da professora.
— Então, faça silêncio — ditou a mulher, acenando para que Emilly voltasse a discursar.
— Ela é sempre assim? — murmurei para Egor, quando a atenção da sala saiu de mim.
— Você nem imagina — Egor encolheu os ombros, voando até Iddie para tirá-la de perto da professora.
— Isso é tão chato! Eu não ligo para as pessoas que morreram — Iddie choramingou, esparramando seu pequeno corpo em cima da minha mesa.
— Achei que a morte causasse empatia — repeti as palavras que ela usou mais cedo, levantando minha mão quando vi todos na sala fazerem o mesmo.
— Sim, mas só porque entendo a dor não significa que também a sinta, lágrimas custam caro — conversou distraída, seus olhos brilhando em fadiga. — Vamos sair daqui! Jogar essa mesa no chão, amassar esses papéis e bater à porta.
Revirei os olhos para isso, era como se Iddie fosse a personificação de todos os meus pensamentos intrusivos.
— Tão chato! Seu irmão estuda aqui também, não é? Podemos ficar com ele? — Iddie flutuou até a altura dos meus olhos, de repente animada com a possibilidade.
— Ele estuda online — falei, recebendo olhares questionadores dos alunos mais próximos que me ouviram e uma exclamação deprimida de Iddie. — Se quer tanto ficar com Gabriel, por que não vai até ele? Se precisam da minha permissão, é isso, eu deixo — abaixei o tom de voz.
— Não é assim que funciona, não pode nos mandar embora — respondeu seca, cruzando os braços com mau humor.
— Como eu faço então? Hoje de manhã você disse que tinha um jeito — murmurei, escrevendo uma "emoção boa" na folha das "emoções boas" que a garota ao lado entregou.
— Eu também quero escrever — Egor animou-se com a interação e eu fingi segurar a caneta sobre a folha enquanto o anjo escrevia "sanidade" entre os inúmeros "bondade", "alegria" e "amor" dos outros alunos.
— Não diga a Egor que te contei — Iddie aproveitou a distração do anjo para falar apenas para mim, vindo sussurrar no meu ouvido. — O único jeito de você passar esse poder adiante é passá-lo para alguém que salve a sua vida, genuinamente é claro, sem intenções por trás, a pessoa salva você da morte e daí você se liberta da gente e dos poderes.
Pisquei. Parecia tão fácil. Pelo menos na teoria.
— Salvar a minha vida, é?
— Dalila! — fui interrompida pela professora, batendo na mesa quando voltei a falar. — Seus colegas estão tentando ter um bom momento, se não vai participar, não atrapalhe.
Encolhi os ombros com isso, murmurando um pedido de desculpas constrangido. Minha mãe costumava dizer: pior do que ter um inconveniente, é ser um inconveniente.
— O que você tanto fala? Gostaria de compartilhar com a classe? — a professora pareceu ter perdido a paciência.
Mordi o lábio, incapaz de encarar a mulher, sentindo que ela poderia ler minha alma por trás daqueles olhos castanhos.
— Fala sério, ela não vê que estamos tendo uma conversa importante aqui? — Iddie provocou. — Como se ela se importasse, ficou no celular a aula inteira.
— Iddie, ela tem razão de pedir silêncio, é um momento de...
— Ela estava falando com o seu irmão — Iddie cortou a fala de Egor. — Algo sobre um tapete amarelo que ela fez para ele, manda essa vaca ir pro brejo!
Egor sabia o conselho de quem eu escolheria.
— Posso ler sua mente? — sorri para a professora, recolhendo meu material quando a próxima fala dela foi mandar eu sair da sala.
Minha cabeça estava confusa com o que Iddie havia acabado de me contar, tanto sobre os poderes, quanto sobre Gabriel, o que ele está fazendo se envolvendo com uma professora?
— A aula online do seu irmão é conversar com a professora bonita? — Iddie gargalhou, sua voz gerando um eco no corredor da escola.
Entrei em uma sala vazia, fileiras de carteiras cheias de rabiscos e mochilas jogadas no chão me recebendo, junto com o silêncio indiferente do ambiente que costuma ter vinte, trinta adolescentes diferentes falando ao mesmo tempo. Fechei a porta da sala para me certificar de que não estava sendo observada, então respirei fundo e apontei um dedo acusador para as duas entidades que me fizeram ser expulsa.
— Por que eu? — olhei para Egor, sabendo que tinha mais chances de obter respostas dele. — Eu não acho que salvei a vida da Catarina, por que eu recebi esses poderes?
Egor piscou, surpreso com meu ataque.
— Por que não? — argumentou, lançando um breve olhar raivoso na direção de Iddie, que apenas deu de ombros, voando pela sala para olhar as mochilas alheias.
— Porque eu não mereço! — exclamei o óbvio. — Eu não sei o que fazer com isso ou com vocês, não sei o que vocês esperam que aconteça, mas eu não vou salvar o mundo, não vou salvar ninguém.
Mordi o lábio quando senti que estava falando muito alto, torturando a pele sob meus dentes, esperando que Egor dissesse alguma coisa, que risse ou gritasse, alguma coisa além da compreensão que ele vinha tendo comigo, algo diferente da pura e genuína vontade de me ajudar a ser melhor, a aceitar que às vezes coisas incríveis acontecem com pessoas não tão incríveis. Credo, soei como Iddie agora.
— Você ouviu seu namorado, se faça merecedora — Egor subiu em cima do meu dedo ainda apontado para ele, seus olhos verdes brilhando em determinação. — Você foi a escolhida, Catarina nunca erraria...
— Erraria sim — Iddie cantarolou. — Ela já errou antes.
— Iddie, por favor… — Egor suplicou baixinho.
Espantei Egor para longe do meu dedo, joguei minha mochila no chão e andei pela sala vazia.
— Egor está certo, você deveria ouvir mais o Júnior, ele teria corrido do assalto como eu mandei, porque ele reconhece que é um fracassado, assim como você — Iddie deu um leve empurrão em Egor, que voava perto do meu rosto. — Ei! Talvez devêssemos ter ficado com o Júnior.
— Eu não aguento mais vocês!
Coloquei as mãos na cabeça quando senti que não aguentava mais tanto barulho, essa presença das entidades que estavam ali só para mim, forçadas a estarem comigo, mesmo contra vontade delas.
Como Catarina pôde? Como pôde sequer pensar que eu, uma adolescente sem qualquer tipo de habilidade ou talento, poderia fazer algo de útil com o dom que ela me deu? Eu mal conseguia lidar com os conselhos e interrupções constantes de Iddie e Egor, não conseguia nem mesmo explicar o que estava acontecendo para minha família, como poderia fazer algo bom com esses poderes?
— Dalila — Iddie disse dramaticamente. — Eu também não aguento mais você.
— Não! Chega de piadas, preciso me livrar de você, vocês dois — parei de andar para encará-los, cruzando os braços para tentar parecer intimidadora. — Em apenas dois dias vocês me deixaram com mais dor de cabeça do que já tive minha vida inteira; quase fui roubada e meu pai ainda nem terminou de pagar meu celular; eu briguei com meu irmão e agora fui expulsa da aula; essa escola é muito rígida, uma coisinha errada que eu faça vai resultar na minha expulsão! — desabafei, sentando-me em uma das cadeiras da frente.
Iddie gargalhou com isso.
— Por mais que eu adore receber os créditos, tudo isso é culpa sua, você que é muito influenciável.
Algo dentro de mim se contorceu com isso. Iddie estava certa, eu sabia disso. Não foi culpa de Egor quando eu decidi parar o assalto porque estava cheia de energia nervosa, algo em mim gritando para fazer alguma coisa. Não foi culpa de Iddie eu ter derramado minha raiva em Gabriel, desabafado o que já sentia há muito tempo. Não foi culpa de nenhum deles quando eu continuei falando na sala, incomodada em estar presa com pessoas que eu não conhecia, falando sobre sentimentos de luto e perda que eu não compartilhava nem com meu próprio pai. Mas eu não podia evitar culpá-los, porque tudo seria diferente sem eles. Se eu não tivesse saltado nos trilhos do metrô... No fim, parece que a culpa é apenas minha mesmo.
— Preciso ir falar com Catarina — decidi em um impulso de coragem, colocando a mochila de volta nos ombros e saindo da sala. — Qual de vocês vai me dizer o endereço?
Iddie disse. Egor não concordou, convencido de que a decisão de Catarina deveria ser respeitada. Iddie queria xingá-la por condenar ela e Egor a passarem a eternidade comigo. Parecia justo. Ignorando Egor e seus argumentos, Iddie e eu fomos sorrateiramente para fora do pátio principal, encontrando o glorioso portão de saída recém-pintado e...
— Trancado — Iddie deu uma inspecionada básica.
— Que pena — Egor fez um gesto em falso desapontamento. — Parece que vamos ter que voltar para a sala.
— Ainda não, anjinho — Iddie voltou ao meu ombro. — Eu vou apertar o botão brilhante que abre o portão, você distrai o porteiro.
— É melhor irmos pelo portão manual — indiquei o portão mais afastado, chamaria menos atenção. — Pegue as chaves com o chaveiro de atum.
— Entendi, lá vou eu — Iddie comunicou antes de voar em direção à cabine do porteiro perto do portão, apenas para acabar sendo puxada de volta para mim quando atingiu o limite de distância. — Seria legal se você ajudasse, Dalila.
— O que vocês têm na cabeça? — Egor olhou para nós como se estivéssemos erradas e tudo isso fosse um grande absurdo.
— Anjos — revirei os olhos, caminhando para ficar mais perto da cabine.
Também conhecido como Chico, o não tão gentil porteiro da escola, era um senhor alto, que vestia calças de flanela xadrez e coletes verde limão. Ele apareceu ao meu lado como se tivesse sido invocado.
— Tente distraí-lo — Iddie aconselhou, sumindo de vista dentro da cabine logo depois.
— Que qui cê tá arrumano, sô? — disse Chico, com seu sotaque mineiro exageradamente falso.
— Ninguém fala assim de verdade — sussurrei para Egor. — Eu acho.
O homem se aproximou o suficiente de mim para me ouvir, encarando-me de cima a baixo, procurando por alguma coisa que justificasse eu estar fora da sala de aula nesse horário.
— Senhor, eu, hum... — sorri amarelo, desviando os olhos para Egor, em busca de ajuda.
— Não conte comigo — resmungou ele, dando de ombros.
— Intão? — pressionou o porteiro.
Gaguejei um pouco, tentando pensar em uma resposta. Por um momento me questionei sobre o que estava fazendo da minha vida. Fugindo da escola? Sério, Dalila? Uma vozinha, que soava suspeitosamente como Gabriel, me intimidou.
Eu precisava falar com Catarina. Foi um desses momentos estilo “faça enquanto tem coragem”. E eu sabia que se não fosse logo poderia ser tarde demais, Catarina poderia morrer, quer dizer, ela é velha, pessoas velhas morrem o tempo todo.
— Tomando um ar? — olhei para o pátio, vazio e silencioso, parecia tão errado. — Está tudo tão estranho.
Algo no meu tom ou na minha postura deve ter gritado TRISTEZA! porque Chico pareceu imediatamente mais sensível quando disse:
— Nem fale — suspirou ele, escorando-se no lado de fora de sua cabine. — Cê conhecia algum deles?
— Não — encolhi os ombros. — Não conheço muita gente.
— Mas também né, quando toca o sinal sobe a cambada de jacu tudo junto, as rua fica tudo arroiada, quando acontece algo assim tem nem como cê salvar, um grudado no outro, em tempo de morrer.
— É, foi difícil correr com tanta... Tanta — apertei os olhos, vendo pela janela da cabine Iddie segurar dois chaveiros com chaves nas mãos, um atum e um salmão. — Como ela não sabe qual é o atum?
— Facidéia — concordou Chico, sem prestar atenção no que eu disse. — Eu conhecia as criança, era custoso vê um daqueles meninos caçar confusão com alguém, tudo boa gente.
Assenti em falso interesse, tentando sinalizar para Iddie trazer a chave da direita. O que ela não entendeu, porque veio voando com a chave com o chaveiro de salmão.
— O outro — exclamei exasperada.
Chico virou a cabeça para trás, tentando entender do que eu estava falando.
— Distrai ele! — Iddie gritou de algum lugar do chão, escondida do olhar minucioso do porteiro, que podia não a enxergar, mas ainda notaria sua chave flutuando.
— Chico... Senhor... Eu, posso ler sua mente? — voltei a sorrir quando ele virou a cabeça em minha direção.
— Dalila, você não está pronta para isso — Egor alertou de seu lugar no meu ombro.
Chico abriu um sorriso, concentrando seus olhos com cataratas em mim.
— Tá doido, sô? — riu divertido. — Cê lê qui nem aqueles mágico?
— Sim — assenti para Iddie, que dessa vez segurava o chaveiro de atum.
— Pode ispiá — Chico consentiu com uma risadinha.
Parei de respirar nesse momento. Então talvez eu não tivesse pensado nessa parte do plano, eu só queria distraí-lo, não era para isso acontecer. Exatamente como quando meu pai deixou eu ler a mente dele, a voz do homem inundou meus pensamentos, para minha surpresa, seu sotaque era verdadeiro!?
"Esses jovem tão tudo numa murrinha danada. Cadiquê morreu um monte de gente, agora fica tudo atazanando minha vida, como se eu fosse um psicólogo. Tô pelejano com a diretora, tenho que fica di bituca pra ninguém encasquetá, num fica impressionado né, com... Com tudo qui tá aconteceno. Ê, lasquera, a menina tá calada já faz um tempo. Será que ela tá lendo minha mente mermo?"
Tentei não me desesperar com isso. Relaxei minha postura tensa e voltei a respirar, registrando os pensamentos do homem e tentando separá-los dos meus próprios, criar um plano ou um jeito de fugir disso. Respirar. Mantive isso em mente. Não surtar. Estava tudo bem. Eu tinha esse poder agora, eu podia ler mentes, não era hora de surtar, não quando eu precisava fazer alguma coisa a respeito.
— Precisa filtrar — a voz de Egor foi registrada ao fundo desse turbilhão de sons.
O que eu fiz mesmo com meu pai?
— A barragem, algo assim, idiota — Iddie também falou de algum lugar, sua voz muito perto do meu ouvido, mas muito longe também.
"Ê, lasquera! É mió ela num tá lendo. Imagina se ela num descobre que meu sotaque é falso?"
Isso foi o suficiente. Tinha que parar isso. Respirei fundo, deixando os pensamentos do homem inundarem minha mente primeiro para depois tentar afastá-los.
— O quê? Essa é uma péssima ideia! É como deixar a água inundar sua casa inteira, para depois... — a reclamação exasperada de Iddie se mesclou aos pensamentos, mais clara agora que eu não estava tendo um colapso nervoso.
Metafórico. Egor disse que eu precisava me apoiar nisso. Tudo era muito metafórico, figurativo. Como explicar a telepatia quando o próprio conceito é tão vago? É ler a mente? Ouvir a mente? Sentir a mente? Sim e não. É saber de tudo e nada sobre alguém. É um conceito. É estranho. É uma consciência compartilhada, mesmo que só uma das partes tenha acesso a todo conteúdo. Todo conteúdo. Isso é equivocado também. Eu sei de tudo? Eu posso saber de tudo? Ou apenas daquilo que a pessoa pensa no presente? Posso ter acesso a mais? A memórias esquecidas? Sonhos?
Egor disse para barrar os pensamentos do homem, instruiu que eu literalmente imaginasse algo que impedisse a entrada das palavras de Chico na minha cabeça. Respirando fundo, mentalizei a primeira coisa que veio em mente para controlar o fluxo de ideias que não pertenciam a mim.
— Uma peneira — murmurei quando mentalizei exatamente isso.
— Uma peneira? É sério? — Iddie bufou, movendo-se em cima do meu ombro. — Peneiras têm furos! Não está barrando nada assim.
Exatamente isso, pensei, sorrindo aliviada quando consegui fazer exatamente o que eu queria.
— Ela não está barrando, está filtrando — Egor exclamou admirado. — Muito bem, Dalila.
Sorri com isso. Egor entendeu, é claro que entendeu. Filtrando os pensamentos de Chico eu ainda teria acesso aos pensamentos dele, mas não dessa forma esmagadora. Assim eu conseguiria deixar determinadas linhas de pensamentos mais altas ou mais baixas, me permitindo focar minha atenção apenas no que realmente era importante.
"...A diretora também fingi di égua, toda vez que tento falar com ela sobre minha aposentadoria..."
— A diretora estava te procurando, algo sobre aposentadoria — pisquei devagar, ainda absorta da recente enxurrada de informação que recebi e extasiada por conseguir controlá-la. — Eu esqueci de falar — acrescentei, vendo como o rosto de Chico mudou de descrença para esperança com a possível conversa com a diretora.
Depois de pegar a informação que eu precisava para tirar Chico do portão, barrei por completo seus pensamentos, deixando o homem com sua privacidade e sotaque falso.
— Uai, será que ela quer me falar daquele trem? — coçou o queixo, pensativo. — O sinal já vai bater, não arranja encrenca, hein?
Assenti obediente, suspirando quando ele se distanciou.
— Você pegou o jeito rápido — Egor sorriu, orgulhoso. — Geralmente as pessoas desmaiam nas primeiras vezes.
Olhei para o anjo com os olhos arregalados. Por que não me contaram essa parte?
— Grande coisa, André também aprendeu rápido — Iddie me entregou a chave que roubou. — E ele era um babaca.
— Obrigada pelo apoio, Iddie — revirei os olhos, correndo para longe da cabine do porteiro.
Parei na frente do portão. Eu tinha uma bolsa de estudos para manter, fugir da escola com certeza não era o melhor jeito de fazer isso. Olhei para trás por um momento, hesitando.
— Fica — Egor sentou-se na minha mão, tentando me impedir de abrir o portão.
— Vai logo! Você não tem tempo a perder — Iddie incentivou. — Ou você acha que aguenta a gente por mais algumas horas trancada nesse inferno? Acredite, eu vou fazer você não aguentar.
Encolhi os ombros, mas não (apenas) por causa das ameaças de Iddie. Eu sabia que deveria voltar. Mas a escola parecia tão mórbida e eu estava sozinha lá. E era difícil me concentrar em qualquer coisa quando eu tinha Iddie e Egor falando sem parar, mexendo nos meus materiais e provocando meus colegas de classe. Eu precisava falar com Catarina. Dar um jeito nisso. Talvez entender o que realmente tinha acontecido naquela noite no metrô e descobrir o que eu ainda não sabia sobre esses poderes.
Decidi sair. Estava prestes a abrir o portão da escola quando notei a câmera acima da minha cabeça, piscando com uma luz vermelha raivosa que parecia saber o que eu estava fazendo e não estava feliz com isso.
— Droga — sussurrei como se a câmera pudesse me ouvir. — Iddie? O que eu faço?
— Corre, corre, corre! — Iddie gritou, sua voz animada, rindo da situação. — Não há tempo para se preocupar, é mais importante se livrar de nós primeiro, consequências por fugir da escola em segundo.
Não pensei quando girei a chave e corri. Que se dane a câmera, eu tenho que lidar com uma demônia tagarela 24 horas por dia, ninguém pode me julgar. Corri para longe da escola, a chave do portão e o chaveiro de atum ainda na mão.
— Não, não leva a prova do crime — Iddie alertou e eu tropecei entre meus pés, jogando as chaves na direção da escola sem nunca parar de correr.
Egor disse algo sobre irresponsabilidade e Iddie rodou, subiu e desceu, por vezes indo mais rápido do que o limite permitido, sempre sendo puxada de volta em minha direção. Até que foi divertido.
🍎🍎🍎
Com um grande sorriso no rosto, a mesma senhora do metrô abriu a porta de sua casa.
— Você demorou, achei que a essa altura Iddie já teria convencido você a vir até aqui.
Catarina entrou em seguida, me deixando na porta atordoada pela recepção tão tranquila. Iddie não precisou de convite para entrar, flutuando pela sala sem cerimônias. Hesitei antes de entrar, mas concluí que entrar na casa de uma estranha era tão perigoso quanto aceitar comida dela.
— Bem melhor do que aquele buraco velho que a Dalila chama de casa — Iddie girou pela sala, parecendo agradavelmente à vontade ali.
Catarina riu do som indignado que fiz, sentando-se em sua poltrona e sinalizando para que eu fizesse o mesmo. Era um lugar agradável. Uma grande sala com um sofá vermelho cheio de almofadas douradas, as paredes cobertas por armários com portas de vidro, exibindo uma vasta coleção de enfeites de anjos, pedras preciosas e antiguidades.
Sentei-me na ponta do sofá, olhando ansiosa para a mulher, esperando que ela tivesse as respostas para minhas perguntas. Catarina parecia a mesma do dia do metrô, cabelos brancos curtos, grandes olhos castanhos atrás de óculos quadrados e um sorriso divertido no rosto, vestindo roupas coloridas e quentes, alegre por me receber em sua casa.
— Sua traidora, é tudo culpa sua — Iddie foi a única a se pronunciar, gritando no silêncio da sala, voando ao redor de Catarina. — Você acha legal descartar os outros assim? Deveríamos terminar isso juntas, era para sermos nós três até o fim — a voz de Iddie sangrava com raiva, olhos rosa e amarelo brilhando em fúria, mágoa escondida atrás de toda essa fachada raivosa.
Não sei se foi minha cara de assustada ou o longo tempo de convívio, mas, apesar de não ouvir ou ver, Catarina parecia entender tudo o que estava acontecendo ao redor. Me perguntei se ela conseguia sentir Iddie girando em torno de sua cabeça ou o olhar pesaroso de Egor.
— Iddie está chateada — comuniquei com delicadeza.
— Chateada? Estou furiosa — gritou a diabólica Iddie. — Eu vou destruir seus sonhos, Catarina, vou sapatear no seu túmulo e quebrar seu estúpido vaso da Índia.
— Meu vaso indiano não — Catarina alertou, inclinando-se sobre a mesinha de centro para servir dois copos de água.
— Iddie está meio... — olhei para a entidade de soslaio. — Magoada.
— Eu imaginei que estaria — entregou-me o copo, o qual aceitei, correr nunca foi meu forte. — Egor também? — quis saber, voltando a se inclinar para trás no sofá.
Assenti, olhando para Egor, um semblante cansado em seu rosto, uma mistura de exaustão e tristeza fácil de decifrar.
— Eu sinto muito, queridos — Catarina suspirou, olhando para seu próprio copo com pesar, um sorriso triste e sem sal em seus lábios finos. — O plano era morrermos juntos, sabe, eles já estão cansados de passarem de geração em geração — olhou vagamente na direção de Iddie.
— E o que deu errado? — perguntei, por um momento me esquecendo que eu também deveria estar com raiva, gritando e acusando Catarina de ter estragado minha vida, mas... Eu não sei, de repente pareceu loucura ir até a casa de uma estranha gritar com ela.
E Catarina parecia tão frágil, encolhida em seu suéter lilás, sua pele enrugada e os olhos cansados, como se estivesse tão perdida quanto eu. Como gritar com alguém assim? Como descontar minha raiva em alguém que parecia tão gentil e amável? Mais culpa se instalou em meu peito, insegurança nublando minha razão.
— Naquele dia, no metrô, eu percebi — Catarina tinha a voz calma e pausada. — Não poderia fazer isso, não poderia levá-los junto.
Iddie gritou com essa fala, gesticulando perto do rosto de Catarina quando a chamou de egoísta e traidora, perto o suficiente para fazer Catarina inclinar a cabeça para trás.
— Iddie — Egor e eu reprovamos, recebendo uma risada divertida de Catarina e um bufo irritado de Iddie.
— Eles ainda têm muito o que viver, muitas pessoas para ajudar — a senhora tomou um gole d’água, parecendo não se importar que salvar a vida deles condenou a minha. — Não poderia tirar do mundo algo tão bom quanto Iddie e Egor.
— E por que tinha que ser eu? — não consegui disfarçar a raiva da minha voz.
Catarina ergueu os olhos para me avaliar, seus óculos quadradinhos caindo um pouco sobre a ponte do nariz. Ela não parecia irritada ou magoada, ainda serena na minha frente, ocupada em tirar os fiapos soltos das almofadas.
— Você está brava por que não te dei o direito de escolha ou por que duvida do seu potencial?
Engoli em seco com isso, a pergunta me pegando de surpresa. Eu não tinha pensado nisso. Eu teria aceitado Iddie e Egor se Catarina os tivesse me oferecido? Se eu tivesse escolhas? Não. Se poderes fosse algo que eu quisesse eu não estaria tão engajada em me ver livre deles.
— Estou brava por tudo, eu acho — suspirei, desabando no sofá, minhas costas mergulhando entre as almofadas e minha cabeça jogada para trás, notando o elegante lustre de cristal pendurado no teto. — Tudo desandou desde que eles chegaram e agora eu simplesmente não sei mais o que fazer.
Levantei a mão, fingindo pegar o lustre entre meus dedos e segurar a luz na minha palma. Sempre quis um lustre.
— Não sabe ou não quer fazer? — Catarina indagou e eu me vi confusa, sem saber o que ela estava insinuando.
— Tem diferença?
— Com certeza tem — Catarina inclinou a cabeça na minha direção, sorrindo conspiratória como se soubesse de algo que eu não sabia.
Viramos a cabeça quando um vaso de flores caiu do balcão, cacos de vidro, água e pétalas de lótus espalhadas pela sala.
— Droga, Iddie — voltei a me sentar de forma reta no sofá, meus olhos se arregalando quando vi o que a peste fez.
— Está tudo bem — Catarina sorriu compreensiva, ainda tomando sua água, sem se afetar. — Iddie está magoada, eu entendo que ela queira destruir a minha casa.
— E você vai deixar? — perguntei estarrecida e Catarina apenas deu de ombros, como se não se importasse com a entidade andando entre suas decorações chiques e provavelmente caras.
Observei Iddie ziguezaguear entre os bibelôs, estatuetas e esculturas, derrubando um por um no chão, porcelana se chocando contra a cerâmica, espatifando-se em pequenos cacos que seriam um horror de limpar.
— Egor sempre foi mais controlado — Catarina sorriu carinhosa. — Mas sei que ele quer derrubar meus quadros, vá em frente, querido, não me importo.
Franzi o cenho para a cena acontecendo na minha frente, Egor se juntando à festa de Iddie, as pequenas entidades aos poucos levando a brilhante e organizada sala de Catarina a um caos de decorações quebradas.
— Estava mesmo pensando em mudar a decoração — riu a senhora como a velha louca que eu tinha certeza de que ela era. — Agora, você não veio até aqui para ajudar na destruição da minha casa também, veio? — levantou uma sobrancelha interrogativa.
Pisquei surpresa, tentando desviar minha atenção de Egor, que tentava a todo custo arrancar um relógio de gatinho da parede. Balancei a cabeça para afastar quaisquer incertezas, era o meu momento de falar tudo que vinha segurando, de colocar para fora o que estava me apavorando com alguém que realmente me entenderia, com a verdadeira culpada.
— Não posso lidar com isso — apontei para as entidades. — Tudo isso é loucura! Eu estou um pouco louca! — isso foi o que saiu primeiro, minha incapacidade de aceitar que eu fui A escolhida.
— Eu sei que eles podem ser um pouco difíceis — Catarina começou e fui rápida em cortá-la antes que engatasse um discurso motivacional.
— Não é só por causa deles — tomei o resto da minha água, colocando o copo de volta na mesa. — O que eu faço agora? Eu continuo a vida como se nada tivesse mudado? Vou a um médico? Falo com o meu pai? Mas como? O que vai acontecer quando o governo souber? — vomitei as perguntas com rapidez, não conseguindo controlar todas essas inseguranças que me perseguiam desde o momento em que vi que estava presa a Iddie e Egor.
— Você está com medo — Catarina disse o óbvio, mas sua voz era tão compreensiva e que isso me trouxe conforto. — Eu também fiquei com medo quando aconteceu comigo.
— Como posso acabar com isso?
Catarina considerou a pergunta dessa vez, balançando a cabeça em reprovação quando o lustre caiu do teto, bem ao lado da mesinha de centro, o barulho repentino me fazendo saltar do meu lugar no sofá e soltar um gritinho. Cerrei os punhos nas almofadas, olhando para Catarina para saber se isso ainda estava ok.
— Não é a primeira vez que eles fazem isso — Catarina comunicou com um longo e cansado suspiro. — Aprenderam comigo, eu costumava quebrar as coisas quando falhava nas missões.
— Missões? — me intriguei com sua fala.
Iddie, com sua raiva saciada, voltou a sentar-se no meu ombro, braços cruzados e seu rabo ondulando-se atrás de suas costas. Egor ainda tentava derrubar o relógio.
— Catarina era uma super-heroína — Iddie respondeu ofegante, a voz livre de emoções.
— Qual delas? — a informação me chocou, sem conseguir processar que a senhora na minha frente era uma super.
— Nenhuma que você conheça — foi Catarina quem respondeu, um sorriso espertinho em seus lábios. — A maior parte dos super-heróis trabalham no submundo, tem muita coisa que você não sabe.
— E não quero saber — fui rápida em afirmar, tentando retomar o assunto. — Eu quero devolver, não sirvo para ser nem super e nem heroína.
— Você não precisa, você recebeu um presente antigo, pode simplesmente guardá-lo para você em vez de mostrá-lo ao mundo — deu de ombros, posicionando seu copo na mesinha. — Creio que Iddie já tenha contado como pode se ver livre dessa vida.
— Eu esperava que você pudesse ter uma forma mais fácil de fazer isso acontecer, você não pode só pegar de volta?
Catarina balançou a cabeça negativamente para me responder e para mostrar sua reprovação.
— Querida, não importa o quanto diga a si mesma, você não está aqui atrás de uma solução, está atrás de aprovação — concluiu como se soubesse tudo sobre mim e virou-se na direção de Egor, olhando para o relógio na parede. — Desista, anjinho, isso não vai sair assim.
Encarei Catarina com irritação, como ela poderia ter tanta certeza? Ela não sabe de nada. Quem ela pensava que era para sair falando todas essas coisas como se me conhecesse?
— Não fale comigo como se eu fosse uma garotinha assustada — cruzei os braços, soltando um grunhido indignado com a postura confiante de Catarina.
— Todos somos garotinhas assustadas — riu baixinho, voltando sua atenção para mim quando Egor desistiu de tirar o relógio da parede, voando para se sentar no meu ombro. — Dalila, ouça com atenção o que eu tenho para te dizer — nós três encaramos Catarina, como se ela finalmente fosse dar o seu veredicto sobre nosso caso. — Eu sei como é não se sentir capaz, sentir que não merece as coisas boas que acontecem, mas você precisa se lembrar que não precisa acertar sempre, não precisa ser a melhor ou perfeita, porque o que faz do herói um herói, o verdadeiro heroísmo é o... — Catarina se impediu no meio do seu discurso, levantando-se do sofá bruscamente, olhando para os lados preocupada.
Também me levantei, espelhando seus movimentos. Catarina agarrou meu pulso, sua postura tensa, nem um pouco parecida com a senhora serena que me atendeu, que não levantou a voz nem mesmo quando Iddie quebrou a sua sala e eu a acusei de estragar minha vida.
— Dalila, preciso que entre aqui — puxou-me pela mão, fazendo com que eu a seguisse. — Sei que está com medo, mas precisa acreditar que é capaz — disse apressada, abrindo um dos armários que expunha sua coleção de pedras preciosas, revelando um espaço secreto atrás dele, dentro da parede. — Eu te escolhi porque acredito em você, precisa acreditar também.
— Espere, espere, por que estamos entrando no armário do pânico? — Iddie perguntou agitada, voando entre nossas cabeças e não fazendo muito para poupar meu desespero crescente. — O que está acontecendo?
Armário do pânico? Catarina estava me sequestrando? Estávamos sendo assaltadas? O que era tudo isso? Por que Catarina estava tão tensa? O que estava acontecendo?
— Não saiam daí, tia Catarina precisa cuidar de alguém — nos “tranquilizou” e empurrou-me para dentro da parede, sem me dar tempo de protestar quando fechou a porta na minha cara. — Não me decepcione, Dalila. Faça-se digna.
A luz fraca de Egor e Iddie iluminaram o lugar, revelando que estava presa dentro de um armário, apenas um casaco velho pendurado em um canto. Havia uma fresta, sendo possível observar através dela os restos de enfeites quebrados na prateleira do lado de fora e a sala destruída de Catarina.
— Catarina! Catarina — bati na porta, a força dos meus socos apenas sendo capaz de balançar levemente os cacos quebrados. — Egor, por que estamos aqui? — acusei o anjo, desesperada por alguma resposta.
— Tem algo errado — Egor resmungou, vindo ficar o meu lado para esfiar a fresta na parede— As prateleiras com pedras são só fachada para esconder um quarto do pânico.
— Mas isso é um armário! — gritei em pânico, porque quartos do pânico deveriam ser feitos de um material forte e ter comida e luz e água e Catarina tinha apenas me prendido ali sem se justificar ou me dar as respostas que eu precisava.
E se Catarina não me soltasse? Eu precisava voltar para casa no horário de sempre. O que Gabriel faria quando percebesse que eu estava atrasada? O que meu pai diria?
— O que você acha Id… — Egor balbuciou, parando quando olhou para Iddie.
Segui seu olhar para encontrar Iddie respirando pesadamente ao nosso lado, os olhos arregalados, apagados, até arriscaria dizer que vi suas mãos tremerem.
— Ela está aqui — contou baixinho, sua voz rouca. — Catarina não pode lutar sem a gente, Catarina não pode... Ela não vai... — Iddie parecia tão desesperada quanto eu, suas pequenas mãos na cabeça enquanto voava pelo cômodo.
— Ela quem? — perguntou com igual mistura de raiva e medo, sem saber como lidar com Iddie dessa forma.
Minha pergunta não demorou para ser respondida, a porta de Catarina foi derrubada, literalmente arrancada da parede, revelando Primazia. A vilã do início da semana, vestida com a mesma armadura dourada e rosa, um sorriso psicótico rasgando seu rosto quando entrou na casa.
— Ei, alguém chegou antes de mim? — a supervilã indagou ao notar a sala destruída, sua voz cantante e alegre, uma alegria que não parecia verdadeira pela maneira como ela apertou as armas em suas mãos.
Parei de respirar nesse momento. Uma supervilã estava na sala de Catarina. Não qualquer supervilã, mas uma que tinha poder para destruir metade de uma estação de metrô, que atacou um mercadinho em horário de pico, quando crianças e adolescentes estavam caminhando pelas ruas. Primazia estava na casa. Impiedosa e cruel. Por que Primazia estava ali?
— Não, não, não... — Iddie choramingou repetidas vezes, observando a mulher se aproximar de Catarina, sua reação não fazendo muito para aliviar meu próprio nervosismo. — Precisamos fazer alguma coisa, precisamos...
Antes que Iddie pudesse tentar sair da sala ou tivesse um colapso, Egor segurou sua cintura, não permitindo que Iddie voasse para fazer o que quer que planejasse em sua cabeça.
— Iddie, ela quer a gente, se souber que estamos aqui vai vir atrás da Dalila — Egor tentou alertar, sua voz tensa, dor pintando suas feições angelicais. — Dalila não está pronta, ela não vai saber se defender.
— E quem se importa? Não vou deixar Catarina morrer — Iddie gritou, forçando-se mais para frente, Egor lutando para segurá-la.
Voltei meus olhos para a sala, vendo quando Primazia atacou Catarina. Não poupei um grito de horror pela cena, um que sumiu no meio do caos da luta que se seguiu.
Primazia não tinha mais que vinte anos de idade, enquanto Catarina era uma idosa. O que uma jovem queria com uma senhora como Catarina? O que estava acontecendo? O que Iddie e Egor sabiam que eu não sabia?
Primazia desferiu um chute em Catarina, mandando-a em direção a uma das prateleiras com arranjos de pedras preciosas, uma das poucas que havia sobrevivido a Iddie. As estantes se chacoalhando, o barulho explodindo em meus ouvidos assim como os murmúrios calmantes de Egor que não ajudavam em nada nesse momento.
— Eu disse que queria trocar a decoração, não os móveis — ouvi Catarina falar em seu tom risonho, embora houvesse essa cadência em sua voz, tentando esconder a dor quando levantou-se do chão devagar, dessa vez sua postura preparada para uma luta.
Entre cacos de porcelana e pedaços de cristais, Catarina e Primazia se atacaram, desferindo golpes uma na outra com a clara intenção de se machucarem. Catarina derrubou Primazia no chão, subindo em cima da jovem, socando seu rosto, antes que fosse mandada para o outro lado da sala novamente. Seus corpos voando de um lado para o outro, a luta sendo difícil de acompanhar com a visão limitada, Iddie e Egor lutando ao meu lado, Iddie tentando sair e Egor murmurando, murmurando, murmurando.
Primazia atirou no sofá com uma de suas armas, espuma e tecido dourado voando quando o móvel explodiu, distraindo Catarina o suficiente para que Primazia pudesse agarrá-la pelo cabelo e batesse sua cabeça repetidas vezes na mesa de centro, a madeira sendo partida ao meio. Catarina gritou, sangue escorrendo pela sua face, quando agarrou o pulso da adversária e o torceu.
— Não, não, não... — Iddie continuou a gritar, sua voz preenchida por dor, pequenos punhos socando as mãos de Egor que se mantinham em sua cintura.
Sufoquei um grito com a ajuda do casaco que estava jogado no armário, apertando-o com força quando Primazia enfiou um pedaço pontudo de vidro na coxa de Catarina, impedindo-a de andar livremente, seu corpo cambaleando para frente. Primazia segurou Catarina pelo pescoço, seus rostos ficando na mesma altura quando a vilã a puxou do chão.
Foi minha vez de tentar sair do armário, empurrando a porta quando vi as mãos de Primazia se apertarem ao redor do pescoço de Catarina, os olhos da senhora revirando quando a perda de oxigênio começou a ser demais.
Demais. Tudo nesse cenário era demais. Demais. Demais. Demais. Chorei, meus soluços sendo abafados pelo tecido do casaco que enfiei dentro da boca, temendo que minha presença fosse notada. Eu precisava fazer alguma coisa, mas o quê? Solucei. Tremi. Quase gritei. Antes que pudesse desmaiar, Catarina usou sua perna boa para chutar Primazia para longe, respirando com dificuldades quando sua garganta foi libertada. Soltei uma exclamação com isso, esperançosa de que ainda dava tempo, Catarina poderia vencer Primazia.
— O que você quer já está longe — Catarina tossiu sangue, lutando para se manter de pé, sua voz rouca, o suéter lilás rasgado e os óculos quebrados. — E mesmo que não estivesse, meu poder jamais seria seu.
Primazia rosnou com isso, parecendo ter tido o suficiente da luta. Deu passos pesados e ágeis, agarrou Catarina pelo pescoço mais uma vez, que não conseguiu revidar, e assim desferiu seu último golpe, empalando Catarina na estrutura de ferro do lustre, ainda posicionado no meio da sala, exatamente do jeito que Iddie o derrubou do teto.
Agarrei Iddie e Egor nas mãos, sabendo que eles não hesitariam em voar na direção de Catarina e que se Primazia percebesse, então nós três estaríamos mortos. Mortos. Morta. Catarina estava morta. Catarina que deu seu último sorriso, seu último suspiro, olhos castanhos alegres se fechando pela última vez.
Primazia limpou o sangue que escorria de seus lábios, pegou suas armas que foram jogadas no chão em algum momento da luta e saiu da casa sem dizer mais nada.
Soltei as entidades logo depois, vendo Iddie e Egor voarem na direção de Catarina por uma abertura embaixo do armário que não tinha notado. Tampei os ouvidos, tentando não escutar o choro, a indignação e a tristeza dos dois. Encolhida no canto do armário, eu me sentei e chorei, porque Catarina estava morta. Porque sabia que tudo tinha acabado de piorar.
Em algum momento Egor abriu a porta do armário, seu rosto perdido, sem sorrisos ou conselhos como de costume. Quem disse alguma coisa foi Iddie, que entrou voando dentro do armário, parando na frente do meu rosto, seu semblante imparcial, sem caretas tristes ou faces raivosas, apenas Iddie.
— Isso é tudo culpa sua — acusou, seu tom seco, vazio de emoções. — Se você apenas tivesse feito alguma coisa. Se estivesse tentando fazer alguma coisa. Mas você não fez nada. Você nunca faz nada e Catarina está... — sua voz fraquejou, ela hesitou em afirmar. — Catarina está morta.
Olhei assustada para Iddie, seus olhos brilhando em um amarelo doentio, lágrimas pesadas escorrendo pelo seu rosto, apesar de tentar parecer forte, implacável.
— Oh, você está chorando também? Está triste, Dalila? Você não merece chorar. Você não merece esses poderes. Você não merece nada, porque tudo isso é culpa sua. Você fez isso — apontou para o corpo de Catarina, o silêncio e o cheiro do sangue me causando enjoo, o crime marcado nas minhas vistas mesmo quando eu fechava os olhos. — Ela está morta. E meu único consolo é saber que a Primazia vai vir atrás de você, vai vir atrás de nós, e quando isso acontecer, nem Egor e nem você, vão me impedir de conseguir vingança.
— Iddie — Egor chamou, baixo, sentido.
Deixei Iddie depositar sua raiva em mim. Incapaz de dizer que ela estava errada ou de acusá-la. Cansada. Assustada. Irada. Eu estava cheia de emoções e nenhuma delas saiu da maneira como eu esperava. Eu não gritei ou chorei ou corri.
— Não vou te impedir, Iddie, na verdade, eu vou te ajudar — foi tudo que consegui dizer. — Está certa, isso é culpa minha e eu vou consertar meus erros — levantei-me do chão cambaleando, desviando o olhar do corpo de Catarina. — Primazia vai pagar por todas as vidas que roubou.
Decidi naquela hora que precisava fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Isso era culpa minha e eu precisava consertar meus erros. Consertar tudo. Vingança. Eu precisava me vingar. O ódio nublando minha visão. Minha cabeça doendo com a quantidade de pensamentos rodopiando, como se estivessem em um tornado de sentimentos grandes demais para meu pequeno corpo.
Dei um passo para fora do armário, sendo parada por Egor. — Leve a capa — ele apontou para o casaco que eu estava usando como lenço. — É encantada, ela esconde o rosto de quem a usa — sua voz estava quebrada, mas eu não falei sobre, acenando levemente para ele.
Peguei a capa e a vesti, era feita de um tecido aveludado, não tão pesado; foi projetada para que o rosto da pessoa que a usasse ficasse obscurecido para quem olhasse, mas ainda assim deixasse a visão do usuário livre; cobria meus pés e o único detalhe que possuía era uma abotoadura azul clara no pescoço. Fiz uma rápida ligação para a polícia e sai da casa, pedindo perdão internamente por não poder gritar para o mundo que a culpada era Primazia, não me faria bem terminar o dia na delegacia de novo e muito menos me envolver em um caso de assassinato.
Minha casa estava quieta quando cheguei. O silêncio combinou com nossos olhares vazios. Nessa noite as únicas palavras que foram ditas foi quando repeti a frase de Júnior:
— Se não pode fazer a diferença, encontre alguém que possa.
Eu não poderia ser uma heroína, mas talvez existisse alguém que pudesse. Talvez meu propósito nessa história fosse ganhar tempo, porque sem mim Iddie e Egor estariam mortos. Talvez meu verdadeiro e único propósito fosse achar O escolhido para herdar esse poder, um alguém que realmente fosse merecedor, justo e capacitado de formas que eu jamais poderia ser. Tudo fez mais sentido dessa forma. Eu não era uma heroína, era uma vingadora. E assim que meu propósito fosse concluído, assim que Primazia caísse, eu passaria esse poder à verdadeira heroína dessa história.
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