Golden

  A coisa que não estava no guia de introdução idiota do meu irmão era: O que fazer quando uma supervilã quebra sua cara de várias formas diferentes? Não é como se eu pudesse ir até um hospital sem explicar que lutei contra uma supervilã. E Gabriel me mataria se visse meu estado.

  Minha dúvida me levou a aceitar carona de estranhos, enquanto comia amendoins roubados e ouvia Egor muito sutilmente começar seu discurso sobre o quanto ele estava certo e como foi uma péssima decisão "atacarmos" Primazia, tudo isso com o trânsito mais infernal que, até mesmo uma paulistana como eu, estava tendo dificuldade para conceber.

  Três horas depois, meus machucados aparentes e meu medo de encarar as consequências dos meus atos, me levaram até a casa de Júnior. Agradeci internamente quando foi ele quem abriu a porta e não um dos funcionários da casa.

— Pode me ajudar? — sorri sem graça, apertando contra o peito as peças de roupa que carregava e tentando não deixar meu rosto se contorcer em uma careta de dor.

  Júnior, minhas duas entidades e eu mergulhamos em um silêncio ambíguo, cheio de perguntas não ditas e gritos contidos. Júnior ficou parado na porta, os olhos se demorando no corte que eu tinha na bochecha esquerda e então caminhando pelo estrago considerável pelo meu corpo.

  No fundo de minha mente pude sentir os pensamentos de Júnior se agitarem, eu estava curiosa para poder mergulhar neles e saber o que se passava dentro da cabeça do garoto, mas já havia tanta coisa acontecendo comigo que só a ideia de ouvir mais do que minha própria voz era o suficiente para fazer minha dor de cabeça aumentar.

  Meu corpo deu mais um desses espasmos de exaustão, minha perna fraquejando e meus braços caindo para os lados, os dedos agarrando levemente o restante das mercadorias, minha coluna se curvando para frente.

— Dal — Júnior murmurou, seus braços abrindo de imediato para me segurarem quando cambaleei em sua direção, puxando-me para um abraço comedido.

  Não reclamei da dor que senti quando Júnior apertou minha cintura, apenas saboreando a sensação de segurança. Estar em seus braços era a garantia de lar. Só por um momento.

— Foi tão assustador — murmurei em seu moletom, respirando o cheiro de tinta e perfume de marca, a quentura e rigidez de seu corpo. — Me ajuda, eu não posso ir ao médico, por favor, por favor — continuei a murmurar, as palavras desconexas, emboladas demais para entender com clareza.

— Está tudo bem — depositou um beijo no topo da minha cabeça. — Entra, vamos dar um jeito nesse corte.

  Júnior me guiou até seu quarto, onde fez um curativo na minha bochecha, enfaixou meu pulso e minhas mãos, marcadas pela corda de escalada. Ele fez o melhor que pôde em me dar algo para dor e enfaixar minhas costas, onde os hematomas que já estavam ali, devido ao treinamento, se juntaram aos novos. Júnior me deu anestésicos e separou algumas peças de roupas confortáveis.

  Agradeci o silêncio suspeito de Iddie e o respeito de Egor. Deitei-me na cama de Júnior, encolhida entre seus travesseiros de pena e cobertores macios, os olhos fechados, a mente vagando em pensamentos sobre a luta, meus fracassos se repetindo, criando teorias, inventando desculpas e alternativas. Sinatra tocava de algum lugar e os pensamentos de Júnior escapavam pela barreira que impus, meu controle sobre eles não muito firme perante meu estado desorientado e a dor estarrecedora pelo meu corpo.

  Júnior se sentou na ponta da cama, puxando minha cabeça com cuidado para que descansasse em sua coxa. Suas mãos caminharam pelo meu cabelo, o contato sendo reconfortante depois de tanta dor. Pisquei devagar, observando a coloração esverdeada oferecida pelas árvores que preenchiam a vista das janelas, trazendo ao quarto sombra e frescor. Iddie e Egor estavam deitados em um travesseiro do outro lado da cama. Nesse momento não parecia que as últimas horas tinham sido tão agitadas, tudo estava tão calmo.

  "Por favor. Não me faça ter que perguntar."

  Essa linha de pensamento chegou até mim. Eu sabia o que significava. Júnior não queria perguntar o que aconteceu, mas ele sabia que se não perguntasse eu não responderia. Ele queria que eu confiasse nele o suficiente para contar. Algo em mim doeu com isso, talvez fosse a surra, talvez fosse meu coração, desesperado com a ligeira sensação de que eu tinha quebrado alguma coisa no meu relacionamento.

  É claro que Júnior sabia que eu não queria ser questionada; é claro que ele estava tentando me dar espaço. Mas ele também não podia evitar o julgamento claro em suas expressões, nos seus pensamentos, os quais ele nem sabia que eu tinha acesso. Estava lá. Tão claro quanto o dia, Júnior estava cheio de raiva, dúvidas e mágoa.

  Não que ele fosse entender, eu poderia dizer que lutei contra Primazia ou que fui atacada na rua, nada seria o suficiente, nenhuma desculpa poderia justificar o fato de que eu joguei toda a responsabilidade de me consertar em cima dele. Ele estava surtando. Estava surtando porque depois de quase uma semana sem nos vermos, trocando poucas mensagens por dia, eu apareço em sua porta e algo está terrivelmente errado comigo, e ele sabia que não era apenas no físico. Júnior sabia porque ele me amava. Assim como eu o amava.

  Eu amava Júnior porque ele estava lá quando precisei. Para um abraço, um beijo, um conselho. Porque nós dois estávamos sozinhos. Assim como a minha, a família de Júnior não era muito presente e seus amigos não eram tão amigos assim. Nos encontramos na solidão um do outro e por um momento nos sentimos completos. Estávamos juntos porque conseguimos ser um para o outro aquilo que desejamos por tanto tempo e nunca encontramos.

  E havia esses momentos em que tudo entre nós apenas parecia certo, imutável. Nossos corpos dançando na chuva como a mais brega das comédias românticas; os jantares constrangedores e cheios de perguntas de seus pais, que nos deixavam revoltados e apenas pareciam fortalecer nossa teimosia em continuarmos juntos; encontros fofos em datas clichês, as quais Júnior odiava, mas ainda estava sempre lá, com um presente e um lugar para irmos comemorar.

  Júnior foi a pessoa que enxugou minhas lágrimas, quem sabia de todos os meus medos e que sussurrou promessas de um futuro melhor no meu ouvido. É ele quem me cobria de beijos em encontros discretos, que realizou meus pequenos desejos e me jurou o mundo ao pé do ouvido. Foi Júnior quem me motivou a fazer algo útil com os poderes que ganhei de Catarina (mesmo que ele não soubesse disso), a pessoa com quem eu podia desabafar, que me faria um chocolate quente e diria "estou aqui".

  E eu sabia que estava o machucando escondendo tanta coisa, porque o acordo era esse, estar lá um para o outro, e parecia, se você olhar bem, que eu tinha cancelado tudo sem falar com ele. E nesse momento eu o amei. O amei porque ele estava me segurando e cuidando de mim, mesmo que se sentisse traído. O amei porque Júnior estava lá por mim, sendo o mais querido dos amigos e o mais dedicado dos namorados. O amei porque Júnior nunca me deixou sozinha.

  "Diga alguma coisa, Raio de Lua. Diga que caiu enquanto tentava alcançar um gato numa árvore ou que foi atropelada por um monociclo."

— Fui atropelada por um monociclo — disse com a pouca força que me restava acordada, atraindo os olhares de todos os presentes. — É por isso que estou machucada — minha voz parecia horrível, machucada e gasta, minha língua pesava em minha própria boca e o ato de mover os lábios repuxava o corte na minha bochecha de forma desconfortável.

— Um monociclo? — Egor repetiu, sem ter certeza do que tinha ouvido. — Um patinete seria mais convincente.

— Amor? — chamei por Júnior, me contentando em lhe direcionar apenas o olhar depois de não conseguir levantar a cabeça. — Está tudo bem? — perguntei e sabia que essa pergunta tinha mais peso do que um “tudo bem?” tinha o direito de ter.

  A expressão de Júnior seria engraçada, não fosse trágica, sua boca aberta em descrença, sua postura alternando entre indignação e total confusão, gesticulando para meu corpo.

— Chegou aqui machucada e assustada por que foi atropelada por um monociclo? — recapitulou com ceticismo.

— Sim? — amaldiçoei o tom de pergunta, fechando os olhos na esperança de que não olhar para Júnior pudesse me fazer inventar desculpas melhores.

  Ficamos escorados na cabeceira da cama, olhando para a parede coberta por pinturas do Salvador Dalí, não curtindo a companhia um do outro como de costume, mas apenas nos tolerando. Porque eu não tinha certeza de quando conseguiria levantar da cama e Júnior estava preocupado demais para me deixar sozinha.

  Tentei não pensar em nada. Não em Primazia. Não em Catarina. Não no fato de que minha mentira do monociclo poderia ter piorado um pouco mais minha relação frágil de confiança com meu namorado.

— Espera que eu acredite nisso? — ele perguntou depois de um tempo, soltando algo entre um bufo e um rosnado.

— Bom, o que você quer que eu diga? — adotei uma postura defensiva, embora fosse só fachada.

— Queria que me contasse a verdade — Júnior confessou, apertando minha mão, nossos dedos se entrelaçando.

  Suspirei, sabendo que tinha poucas opções nessa situação e ainda menos paciência restando. Eu poderia continuar a mentir ou poderia dizer a verdade e estragar tudo. Ou poderia ficar em silêncio, na esperança de que Júnior logo se esquecesse disso, o que era improvável, mas pelo menos me daria mais tempo para pensar em uma desculpa decente do porquê havia 50 tons de roxo na minha pele e eles não foram causados por um bilionário gostoso.

  "Você pode confiar em mim. Confie em mim. Ela não confia. Por que confiaria?"

  Filtrei os pensamentos, procurando pelas palavras que Júnior gostaria de ouvir, alguma dica do que poderia ser útil para adiar essa conversa o máximo possível, qualquer coisa serviria. Não é algo que eu me orgulhe, mas fazia menos de duas horas que quase havia sido assassinada e a realização de que Primazia estava atrás de mim, e na mão dela eu não era muito mais do que um coelhinho indefeso, me assustava. Dar atenção às inseguranças de Júnior não era uma prioridade.

— Eu confio em você — confirmei suas dúvidas, vendo como seus olhos se arregalaram em choque e ele me encarou com uma suavidade comovente. — Por favor, confie em mim também, estou bem. Eu te amo — decidi acrescentar, sabendo que estava jogando sujo, mas não sentindo culpa quando isso pareceu acalmar a fúria interrogativa de Júnior.

— Eu vou aceitar o que você estiver disposta a me dar — declarou com um sorriso sem sal, o que era meio engraçado porque era exatamente assim que eu estava me sentindo.

  Dando por encerrado o assunto, ficamos em silêncio e o sono levou minhas preocupações e dores. Só por um tempo.

 

13 de maio de 2017

  Fazia uma semana que vinha evitando qualquer assunto ligado à Primazia como uma praga. Não via Júnior desde que saí da casa dele e, apesar de trocarmos mensagens todos os dias, nós dois sabíamos que havia algo de errado. Talvez porque nossas mensagens eram curtas e, fora o “bom dia” e “boa noite” diários e eventualmente um “boa madrugada”, não conversamos mais.

  Gabriel também percebeu que eu estava evitando o assunto da nova aparição da vilã, felizmente ele não teve tempo para me questionar sobre isso ou notar os machucados no meu rosto (os do corpo muito bem escondidos por muitas camadas de tecido), ele e Amanda passaram a semana ocupados investigando alguns clientes, alguém havia entregado provas comprometedoras dos negócios da Catwalk aos agentes da Divisão Quimera ou algo igualmente complicado.

  Não fiquei muito mais confiante ao saber, da boca da própria Amanda, que ela fazia questão de manter apenas pessoas confiáveis por perto. De alguma forma Primazia sabia da minha identidade como Jovem-Alma, o que trouxe a preocupante dúvida do que mais ela poderia saber sobre mim. Para saber o nome do meu alter ego ela tinha que ter algum informante dentro da boate, o que significava que as pessoas confiáveis de Amanda não eram tão confiáveis assim.

  Egor continuava insistindo em conversar sobre o que havia acontecido com Primazia e eu continuava insistindo em desviar do assunto, fugindo de qualquer conversa que envolvesse sentimentos com os quais eu não estava preparada para lidar. Emilly foi bastante útil nisso tudo, sendo a amiga que eu precisava para me distrair da insistência de Egor e da frieza de Júnior.

  Por outro lado, Iddie se afastou. Mais silenciosa e quase sempre fora de vista, preferindo ficar quieta, mesmo quando eu dizia algo estúpido ou uma mentira, ela não rebatia, criticava ou debochava. Só ficava sentada no meu ombro, sem voar, rodopiar ou me cutucar. Não podia dizer que a melhora não era boa, pelo menos ela não estava me torturando com o fato de eu ter sido um fracasso na minha grande chance com Primazia. Não deixava de ser estranho e a minha preocupação estava na forma como eu continuei tentando envolvê-la nas conversas minhas e de Egor.

— Vamos lá, Jovem-Alma! — Gabriel gritou do outro lado da sala, fazendo gestos grandiosos com as mãos para chamar minha atenção. — Mostre o que você sabe fazer.

  Estávamos de volta ao meio da pista de dança da Catwalk, dessa vez com o objetivo básico de usar a energia de Iddie para projetar um ataque que atingisse Gabriel. O que não parecia fácil, mas a falta de vontade de Iddie em concordar ou discordar disso, lançando-me apenas um silêncio ambíguo e um olhar apático quando perguntei se poderíamos tentar usar a energia dela, foi a permissão que eu precisava.

  Eu ainda estava treinando e, para falar a verdade, melhorei bastante desde que começamos. Agora minhas colegas de classe acreditavam um pouquinho mais na mentira de que eu era faixa azul em taekwondo e eu conseguia ler os pensamentos dos outros sem enxergá-los ou estar no mesmo cômodo, contanto que não houvesse distrações, é claro.

  Foi difícil deixar de lado a fantasia e encarar a realidade, foi difícil continuar acreditando que eu poderia alcançar minha vingança. Parecia ingenuidade e uma loucura completa que alguém como eu pudesse fazer alguma coisa contra Primazia. Isso e o fato de que o silêncio de Iddie me fez ouvir mais o Egor. A raiva ainda estava dentro de mim, lutando para fazer alguma coisa, gritando para que eu usasse esses poderes para algo útil. Mas era claro que eu ainda não estava pronta. Era muito cedo e eram coisas demais para lidar.

  Tanto quanto não me achava capaz, meu desejo de vingança ainda existia, Gabriel continuava acreditando em mim tanto quanto no primeiro dia e eu tinha a certeza, dada diretamente por Primazia, que ela estava mais perto de mim do que eu imaginava, não seria uma surpresa se eu fosse atacada na sala de aula ou dentro de casa. Por isso eu continuei a treinar.

  Um pouco mais desesperançosa. Um pouco mais cheia de raiva. Um pouco mais confusa quanto ao que eu poderia ou não fazer. Treinar pareceu um bom começo no início e parecia um bom começo nessa hora. Então eu continuei. Para o meu próximo encontro com a vilã, para minha proteção, para não pensar em nada além do meu constante fracasso.

— Faz alguma coisa, Dalila — meu irmão mandou, já cansado de esperar, batendo um pé impaciente.

  Balancei a cabeça, deixando meus pensamentos de lado e me focando em usar a energia de Iddie. Se a irritação e pressão fossem fatores que pudessem ajudar, Gabriel já estaria sendo atingido por um milhão de projeções, mas nada acontecia e parece que nada do que eu pensava ajudava. Não havia metáforas que servissem e a minha confiança de que isso poderia ser realizado era inútil nesse caso, não me restavam escolhas a não ser ficar parada na frente de Gabriel, com as mãos erguidas, tentando fazer alguma coisa sair de dentro delas ou se materializar no ar, eu não sei, ninguém me explicou de onde vinham essas projeções.

— Eu não consigo — choraminguei pelo que pareceu a milésima vez no dia, balançando um pouco as mãos na expectativa de que o gesto pudesse me dar algum resultado.

  Gabriel abriu a boca para começar mais um de seus discursos motivacionais, quando foi interrompido pelo toque de um celular.

— Já volto, estamos tendo problemas com explosivos de novo — coçou o queixo inconformado. — Continua praticando e não quebra nada — alertou brincalhão, indo para sua cabine.

  Sentei-me em qualquer lugar do chão, tomando os últimos goles do refrigerante que Amanda trouxe, suspirando de alívio por poder descansar as pernas e coluna. Para minha sorte, as sequelas da luta com Primazia sumiram com uma rapidez impressionante, no quarto dia as marcas e cicatrizes já estavam mais claras, assim como a dor aos poucos foi indo embora e, no fim de tudo, restou apenas a memória do acontecido. Parece que Iddie estava certa quando disse que os poderes melhoravam minha resistência e eu presumi que não foi Egor quem me contou, porque ele sabia que eu forçaria meu corpo duas vezes mais se soubesse disso antes.

— Egor — chamei baixinho, vendo o anjo voar para perto do meu rosto quase no mesmo momento. — O que estou fazendo de errado? — pedi, fazendo a minha melhor versão de olhos de cachorrinho, esperando alguma piada vinda de Iddie, ainda sentada no meu ombro.

— Você e Iddie são o problema — deu a mesma resposta de quando perguntei pela última vez.

  Considerei, mastigando um cubo de gelo perdido no copo e tentando tirar alguma coisa nova de sua resposta. O que eu sabia? Bom, a projeção existe para ataque (Iddie) e defesa (Egor), de forma que eu posso criar qualquer forma, onde e quando eu quiser, contanto que eu acredite, e isso ainda soa bobo, não importa o quanto eu repita.

— Se — franzi a testa enquanto formulava o pensamento inédito. — O problema com você foi minha falta de confiança, com Iddie o problema é nossa falta de sintonia? — recapitulei lentamente, tentando lembrar se era isso mesmo ou se havia algum aspecto que ainda não tinha considerado, de repente, percebi: — Espera, Iddie não quer trabalhar comigo? — indaguei indignada, cutucando a entidade quieta no meu ombro.

  Tinha que ser isso, certo? Qual outro motivo teria para não conseguir fazer a projeção de Iddie quando já tinha aprendido a de Egor? Você não aprende a usar uma mão por vez ou a andar com uma perna de cada vez, é algo simultâneo. Mas é claro que com Iddie tinha que ser diferente. Por que ela iria querer trabalhar comigo? A entidade me odiava! E eu sabia disso porque Iddie fez bastante questão de deixar isso óbvio.

— Iddie normalmente não quer trabalhar com ninguém — Egor me tranquilizou, se prestando a falar por ela. — Não vai conseguir reunir energia suficiente para um ataque se não começarem a se entender.

— Ajudaria muito se eu conseguisse fazer isso — falei para Iddie, virando o rosto para encará-la. — Seus objetivos dependem de mim, então se você pudesse cooperar... — deixei a frase no ar, esperando que Iddie entrasse com alguma linha engraçadinha ou insulto bem-posicionado.

  Os olhos de Egor foram para Iddie, sua expressão se moldando em uma careta quando Iddie continuou com seu voto de silêncio ou o que quer que fosse tudo isso.

— Ela vai ficar bem — o anjo declarou, assumindo seu lugar no meu ombro esquerdo enquanto fazíamos uma pausa.

  Pausa essa que não durou, Gabriel apareceu logo depois, vestindo uma regata laranja e jeans azul, seu cabelo bagunçado por passar muito tempo de chapéu.

— Por que tirou o terno?

— Treinamento cancelado, tenho coisas para fazer, preciso pegar algo em casa, mas o papai ainda está lá — declarou sem explicar mais, saindo da boate pela porta da frente.

  Corri para acompanhá-lo, gritando um tchau desajeitado para Amanda e batendo a porta dos fundos da boate.

— Descobriu quem roubou seu carro? — zombei quando o alcancei, fazia uma semana que vinha me fazendo de inocente sobre isso, Egor e eu até apostamos sobre quanto tempo demoraria para Gabriel descobrir.

— Não — Gabriel respondeu com um murmúrio dramático, entrando em seu novo carro, o qual eu não sabia o modelo, porque era Iddie quem entendia de carro, aparentemente ela estava lá quando eles foram criados. — Pegou suas coisas?

— Peguei — revirei os olhos para sua preocupação, entrando no carro em seguida. — Eu sempre pego.

— Você esqueceu sua capa na casa do Júnior — Egor relembrou.

— O papel de relembrar meus erros é da Iddie.

— Alguém tem que preencher o personagem — Egor brincou com uma risadinha.

  Olhamos para Iddie, esperando alguma reação.

— Iddie ainda está fazendo voto de silêncio? — Gabriel entrou na conversa, ligando o carro e começando a dirigir.

— Sim — suspirei, passando o dedo levemente pela cabeça de Iddie sem obter qualquer reação, sem receber nem mesmo uma ameaça de mordida. — Egor disse que às vezes ela faz isso, acho que é para chamar atenção.

— Para falar a verdade, gosto mais dela assim, pelo menos meu chapéu fica na minha cabeça.

— Por falar no chapéu ridículo que você sempre usa, por que estamos indo para casa mesmo?

— Coloca o cinto — Gabriel lembrou, mesmo que ele próprio não usasse o cinto. — Alguém me deu uma pista desse novo caso que estou investigando, alguém está tentando explodir a Estátua da Liberdade e também me informaram de um possível lugar onde Primazia vai atacar, então estou sendo um herói e fazendo o bem em tentar impedir o ataque sem cobrar nada.

  Franzi o cenho para isso, absorvendo as informações e tentando decidir se deveria me sentir ofendida por Gabriel não detalhar mais o que descobriu sobre Primazia. Por outro lado, só a ideia de me encontrar com Primazia já me dava um ataque de pânico fulminante, então talvez fosse melhor não saber de nada. Além disso, havia outros absurdos na fala do meu irmão, como:

— Você não é um super-herói.

— Dal, isso é ofensivo — repreendeu com um beicinho. — É como dizer a uma dentista que ela não é médica.

— Dentistas não são médicos — afirmei, segurando uma risada quando Gabriel soltou um som exagerado, agindo como se eu tivesse acabado de dizer a maior das ofensas.

  O restante do caminho se seguiu com brincadeiras bobas entre nós. Chegamos em casa rindo de algo que eu disse (porque eu sou superengraçada), estava prestes a fazer um comentário espirituoso sobre Gabriel e seus nomes para óculos escuros, quando notamos a presença do nosso pai, sentado de pernas cruzadas no sofá, como uma mulher traída esperando o marido voltar bêbado tarde da noite.

— Papis! — Gabriel cumprimentou com uma risada alegre, entrando no quarto em seguida para procurar seus óculos.

  Mas meu pai não parecia muito alegre, seu semblante sério me fazendo hesitar em sequer me mover. Alguma coisa estava errada.

— Posso saber onde vocês dois estavam? — perguntou com a voz clara e objetiva de um homem que dormiu a quantidade de horas adequadas.

  Estranhei a pergunta, meu pai não costumava questionar como usamos nosso tempo, até mesmo Egor pareceu surpreso quando trocamos um olhar confuso.

— Papai alugou seus ouvidos? — Gabriel brincou quando retornou à sala, passando por mim com uma mochila nas costas, pronto para abrir a porta de casa. — Estou saindo — anunciou com um floreio de mãos.

— Não — nosso pai interrompeu, levantando-se do lugar onde estava sentado. — A professora Carla me ligou.

— Quem é Carla? — Gabriel indagou, deixando de lado a tarefa de abrir a porta para prestar atenção.

— A professora de Geografia — bufei sem acreditar, como ele poderia ter esquecido o nome dela?

— Ela me contou algumas coisas sobre o comportamento de vocês — nosso pai puxou um dos assentos da mesa. — Sentem-se, vamos conversar.

  Engoli em seco, puxando a cadeira de praia devagar, sentindo que devia ser assim que um inocente se sentia ao ser levado para interrogatório na delegacia. Nos sentamos nas cadeiras, nosso pai, sentado à nossa frente, nos encarou de um jeito sério e assustador e, por um momento, até mesmo lutar contra Primazia pareceu mais fácil do que fazer isso.

  "Achei que a escola não ligasse para o nosso pai."

  Fiz questão de enviar para Gabriel, olhando para ele de lado, sem entender como nosso pai acabou sabendo tanto do que não fazíamos quase nenhum esforço para esconder.

  "A escola não, mas a professorinha pode ter ficado um pouco chateada pelo nosso término e resolvido ligar aqui como vingança."

— O quê? Isso é tudo culpa sua? — chutei a perna do meu irmão por baixo da mesa, ouvindo Gabriel choramingar dramaticamente com isso.

— Escutem — meu pai chamou nossa atenção, o que fez com que ficássemos em silêncio e desse início a um longo discurso sobre nossas faltas e minhas notas baixas em Geografia. Apenas Geografia, porque Gabriel também conseguiu fazer com que todos os outros professores subissem minha média.

  Não era sempre que o nosso pai se esforçava para fazer o que eu chamei de “coisas clássicas de pai”, um sermão sobre faltas e responsabilidades na escola eram terrivelmente fora do personagem e talvez Gabriel e eu não estivéssemos prestando tanta atenção quanto deveríamos.

  "Eu falei para não namorar a professora."

  Reprovei em pensamento, tentando fazer Gabriel se sentir mal por isso, embora ele mal parecesse se afetar.

— Saia da minha mente, Dal — sussurrou apenas para que eu ouvisse, seus olhos focados no celular embaixo da mesa, escondido da visão do nosso pai.

  "Não preciso da sua permissão para enviar mensagens."

  Brinquei, recebendo um olhar reprovador fulminante de Gabriel, o qual ignorei, focando minha atenção nos pensamentos do meu pai para queimar o tempo enquanto estávamos presos ouvindo seu discurso.

  "Por que eu fui ter filhos?"

  A frase foi a primeira a se destacar. Arregalei os olhos, sem saber o que dizer ou como questionar uma frase que nem mesmo foi verbalizada. Ele apenas pensou que... Não queria ter filhos?

  Estava tudo bem, eu acho. A maioria das pessoas que conheço tiveram filhos porque simplesmente aconteceu, não foi um plano ou algo que todos estavam esperando. Se a forma como o casamento do meu pai e da minha mãe terminou, acho que é bem óbvio que ter filhos não pode ter sido o plano principal deles, mesmo que eles tenham cometido o mesmo “erro” duas vezes, primeiro Gabriel e então eu. E ninguém está preparado para ser pai até ser e meu pai com certeza não estava preparado para ser pai solteiro e apenas... Apenas não queria ter filhos. Está tudo bem.

  Não tinha nada demais na frase, às vezes pensamos coisas ruins. São pensamentos que normalmente são reprimidos, raramente verbalizados e geralmente reprovados pela sociedade. Às vezes desejamos coisas ruins e às vezes visualizamos coisas ruins. E ele também parecia cansado, mesmo tendo dormido a tarde inteira, meu pai estava exausto, preso em uma rotina a mais de duas décadas, tentando terminar a tarefa que minha mãe deixou para trás.

  Bloqueei os pensamentos dele, temendo me aprofundar mais em sua privacidade e em pensamentos com os quais eu não saberia lidar depois.

— Estou decepcionado com vocês — finalizou seu sermão sem deixar a gente falar, levantando-se para pegar suas chaves. — Quero os dois em casa essa noite, entenderam?

— Sim — Gabriel resmungou, sem nem mesmo fazer questão de fingir que estava ouvindo, seus olhos no celular.

  Nosso pai suspirou, olhando para mim em seguida.

— Tudo bem — sorri torto, sem saber mais o que dizer, mas me esforçando muito para pensar em algo.

  Não passou nem um minuto que nosso pai saiu e Gabriel já se levantou também, indo na direção do quarto para vestir seu terno. Permaneci na mesa, sem saber como lidar com a situação. O quão fundo eu poderia ir na mente de alguém? Quão perigoso os poderes de Catarina poderiam ser?

  Foram duas perguntas que me vieram à cabeça, tão acostumada estava com Gabriel, sempre selecionando bem aquilo que eu poderia ou não ouvir, que me fugiu a mente o fato de que nem todo mundo sabe que tenho permissão para ler a mente deles. Júnior, Chico, meu pai... Quão invasivo não é isso? Sem privacidade até mesmo em sua própria mente. Me senti um pouco nojenta. Isso pode ser considerado algum tipo de abuso, não é? O quão ruim seria se os poderes de Catarina caíssem nas mãos de alguém mau?

— Meus poderes — me corrigi, aos poucos eu ia me adaptando ao pensamento de que esses poderes, pelo menos nesse momento, eram mesmo meus e isso não parecia errado, injusto ou indigno.

— Estou indo, Dal, você vai ficar bem? — Gabriel anunciou quando voltou à sala, olhando para mim com um olhar engraçado, talvez estranhando que eu ainda estivesse sentada na cadeira, olhando para o assento do meu pai como se houvesse alguma coisa que eu pudesse ter feito de diferente.

— Vou sim — disse com uma tentativa de sorriso.

— E você está bem agora? — inclinou o pescoço em minha direção, forçando contato visual.

— Ainda posso ouvir os pensamentos do pai — mordi o lábio, olhando para baixo.

  Gabriel franziu o cenho, olhando para mim enquanto chegava a uma conclusão bastante óbvia.

— Ele pensou algo ruim? — falou devagar, quase hesitante.

  Neguei, não querendo estressar Gabriel com isso. Ele assentiu, desconfiado, mas apressado, saindo de casa em seguida depois de suas recomendações habituais de “não fale com estranhos” e “qualquer coisa liga”.

— O que você ouviu? — Egor apareceu no meu campo de visão logo depois, caminhando pela mesa.

  Suspirei com cansaço, deixando meu corpo cair em cima da mesa, meus braços cruzados e a cabeça baixa, observando Egor andando de um lado para o outro.

— Meus pais nunca pretenderam ter filhos — falei devagar, procurando pelas palavras certas. — Eu sempre soube, mas ainda doeu ouvir isso dele ou quase isso, não importa, podemos não falar sobre isso?

  Egor sorriu compreensivo, sentando-se em cima da maçã que estava na fruteira no centro da mesa. Encarei o teto, franzindo o cenho para a mancha em formato do presidente que me encarava de volta.

— Eu acho que é um urso de pelúcia — Egor opinou sobre.

— O que você acha, Iddie? — virei a cabeça para meu ombro, notando que a pequena entidade não estava mais lá.

— Ela foi para o quarto, disse que ia dormir — Egor esclareceu, parecendo estranhamente calmo com o comportamento atípico da sua “colega de trabalho”.

  Talvez fosse hora de eu fazer alguma coisa.

— Sabe o que está acontecendo? — pressionei o anjo, sabendo que ele estava escondendo algo.

— Quer conversar sobre o que aconteceu com Primazia? — devolveu a pergunta, uma sobrancelha erguida com atrevimento.

— O que acha de terminarmos de assistir os filmes do Tarantino? Agora só falta Kill Bill — desviei do assunto, afastando a cadeira da mesa para me levantar.

— Dalila — Egor repreendeu, voando até ficar na altura dos meus olhos. — Não pode adiar isso para sempre.

  Olhei para todos os lugares possíveis que não fossem os olhos verdes de Egor, suspirando em derrota quando não encontrei nenhuma desculpa plausível para distrai-lo. Eu sabia que teria que falar sobre isso, o que não significava que eu quisesse falar sobre. Ainda assim, eu estava sozinha em casa, com Iddie emburrada e pouca coisa para fazer. Talvez pudéssemos falar sobre isso. Talvez fosse rápido. Não é como se Egor estivesse me dando escolhas.

— Tudo bem, sobre o que quer falar? — desisti de uma vez, aproveitando meu humor já estragado para dar a Egor a graça de mais um sermão contra vingança e em favor do amor.

  Relaxei na cadeira em uma fachada de falsa autoconfiança e esperei que Egor começasse. O anjo se acomodou melhor na maçã onde estava, pigarreando antes de começar.

— Eu não apoio o assassinato — informou em seu tom mais responsável. —, mas decidi apoiar sua busca por Primazia.

  Meus pensamentos pareceram se calar e eu pisquei sem acreditar no que tinha ouvido. Egor, o anjo, a entidade responsável pelos bons e éticos conselhos, tinha mesmo acabado de me dizer para matar Primazia?

— Sério? — me inclinei em sua direção, de repente interessada. — O que te fez mudar de ideia?

  Egor fez uma careta, hesitante.

— Não acho que seja culpa sua, mas Primazia machucou aquelas pessoas para atrair você — explicou com uma expressão culpada, parecendo arrasado com isso. — Ela vai machucar mais gente se não formos até ela — concluiu, ombros encolhidos e os olhos baixos, como se estivesse envergonhado por dizer isso.

  Eu podia entender como Egor se sentia. A culpa estava lá, como garras em meu peito, apertando minha consciência e rasgando meu orgulho. Havia sangue em minhas mãos. Os jornais estavam indo atrás da notícia e o povo estava criando suas teorias, todos questionando o que poderia ter feito Primazia atacar mais uma vez pessoas inocentes. Eu não sei sobre o primeiro ataque, mas o segundo foi por minha causa. Minha culpa. Embora fosse Primazia quem puxou o gatilho, eu não a impedi. Não consegui.

  Durante a noite, quando tudo estava escuro e não havia coisas para fazer ou pessoas para ver, eu não conseguia impedir esses pensamentos de virem com força, imaginando o que todos diriam, o que os tabloides, as pessoas e as vítimas diriam se soubessem que Primazia estava atrás do que me pertencia. Eles ficariam furiosos.

  E talvez a culpa também fosse de Catarina, porque foi ela quem me escolheu. Talvez fosse de Gabriel, por me dar esperanças de que poderia fazer isso. Talvez a culpa fosse toda minha e agora vidas estavam sendo tiradas e eu não tinha forças o suficiente para deter Primazia. Eu já podia sentir as lágrimas picarem meus olhos, uma angústia me invadindo, um medo paralisante.

— Então, estamos de acordo? — forcei uma voz alegre, tentando afastar os pensamentos incômodos.

— Estamos — Egor também sorriu, um pouco mais calmo, antes de continuar. — Também acho que você não vai conseguir vencê-la se não usar a energia de Iddie, é por isso que vocês deveriam se entender.

— Adoraria fazer isso se ela falasse comigo — bufei, jogando a cabeça para trás novamente, o presidente no teto me cumprimentando. — Falando nisso, vai me contar o que está acontecendo com ela?

  Egor fez um som de quem está pensando, parecendo decidir se eu era digna de saber o que estava fazendo Iddie agir não-como-Iddie.

— Ela está assustada — foi a resposta ambígua do anjo.

— Com o quê? — pressionei, virando a cabeça para encarar Egor, mostrando que não estava brincando e realmente queria entender o que estava acontecendo.

  Iddie não era a minha preferida, é verdade, e a gente não se dava muito bem na maior parte do tempo, mas é meio impossível passar um mês, 24 horas por dia, 7 dias por semana, com alguém e não sentir pelo menos um pouco de simpatia pela pessoa. Entidade. Egor desviou o olhar quando continuei a encará-lo, cutucando seu lado com o mindinho.

— Dal, você quase morreu — Egor falou como se fosse óbvio, como se isso explicasse alguma coisa, minha expressão confusa deve ter transparecido. — Ela acabou de perder a Cat, não pode perder você também.

  Não consegui evitar a risada incrédula que escapou dos meus lábios ao ouvir isso.

— Iddie me odeia — rebati, sem entender onde Egor queria chegar com esse tipo de piada.

— Ela não te odeia — falou de forma pausada, escolhendo as palavras cuidadosamente. — Só acha que você não é a pessoa mais apropriada para herdar esse poder.

— Eu sei disso, ela faz questão de me lembrar.

  Egor suspirou como se eu, eu, em negrito, itálico e grifado, estivesse sendo infantil.

— Iddie viu você quase morrer, Dal, ela está com medo e se sentindo culpada, porque foi ela quem te convenceu a ir enfrentar Primazia — Egor prosseguiu com o que só poderia ser uma grande piada.

— Sabe com o que Iddie está assustada? Ela está assustada, porque se eu morrer, vocês também morrem — levantei-me da cadeira com raiva, andando até o quarto sem paciência para continuar ouvindo Egor tentando me fazer ter pena de Iddie. — Ela só se preocupa com ela.

— Isso não é verdade — Egor me acompanhou enquanto eu pegava minha mochila e começava a enfiar algumas peças de roupa dentro. — Iddie pode não demonstrar, mas ela se preocupa muito conosco.

— Ela é uma monstra, está sempre debochando, fazendo comentários maldosos, maltratando a gente... — fui até o banheiro, pegando minha escova de dentes para jogá-la dentro da mochila. — Esses dias têm sido muito mais fáceis sem ela, pelo menos assim eu não tenho alguém me lembrando vinte e quatro horas por dia dos meus erros.

— Séculos — Egor gritou, me fazendo parar de andar para encará-lo, não é sempre que alguém como Egor levanta a voz, é por isso que é tão desconcertante quando acontece. — Iddie e eu existimos há séculos.

— E? — arqueei uma sobrancelha, sentando-me na ponta da cama para ouvir o anjo, mantendo a fachada indiferente.

  Egor não hesitou quando começou a falar, mantendo-se o tempo todo cordial e calmo, sua fala fluida e mais madura do que uma criaturinha com carinha e voz de anjo deveria ter.

— Um portador só pode passar o poder adiante para alguém que salve a sua vida, isso deveria garantir que sempre acabaríamos nas mãos de boas pessoas.

—  Eu sei dessa parte.

— Se alguém está disposto a colocar a vida do outro acima da sua, deve ser bom o suficiente para um poder assim?

— Sim?

— Dalila, por que um homem protege seus iguais, mas maltrata os animais? — sua pergunta soou genuína e eu me senti mal por não ter uma resposta, lutando para acompanhar seu raciocínio. —  Alguns portadores já tentaram estudar a gente, fizeram experimentos, machucaram, torturaram — exemplificou, calmo, calmo demais para os horrores que estava contando. — Nossos corpos se curam, o tempo passa, mas ainda dói.

— Egor, eu...

  Tentei falar, mas o quê? O que eu, uma adolescente que, ok, minha vida recente me fez viver algumas coisas as quais alguém da minha idade definitivamente não deveria viver, mas ainda assim, alguém como eu não tinha nada a dizer para alguém como Egor.

— Eles sempre são piores com Iddie — prosseguiu com um suspiro cansado, passando a mão pelos cabelos, o gesto movendo sua auréola. — Ela é difícil de lidar, as pessoas se irritam com ela facilmente.

— Eu jamais machucaria a Iddie ou você, não faria isso.

— Sabemos disso agora — sorriu fraco para mim. — Mas Dal, não são só os experimentos, é a loucura, a recusa, a rejeição ou o abandono — soltou uma risada fraca, voando para ficar na altura dos meus olhos. — Catarina prometeu que morreríamos juntos, que colocaria um fim nessa tortura de passarmos de mão em mão, a eternidade não é legal quando ninguém mais permanece, Iddie e eu vivemos em um luto eterno — Egor confessou baixinho, quase inaudível, voando para colocar uma mão na minha bochecha. — Iddie não é má, só está sempre na defensiva, eu e ela estamos sempre com medo, apenas... Seja paciente. Por favor.

  Não soube o que dizer. Eu deveria ter percebido antes. Iddie e Egor estavam tão assustados quanto eu, como eu não notei isso antes? Apenas sendo egoísta e jogando toda minha frustração em cima deles.

— Sinto muito por ter dito que ela era uma monstra — foi tudo o que consegui dizer depois do desabafo, passando o dedo levemente pela cabeça do meu amiguinho com asas. — Ela vai ficar bem?

— Só precisa de um tempinho — Egor encolheu os ombros.

— Vou estar esperando — levantei-me da cama, jogando minha mochila nas costas. — Agora, onde ela está?

  E essa foi a primeira vez que, ao sair de um lugar, quis conferir se Iddie também estava ao meu lado.

🍎🍎🍎

— Lila! — Emilly soltou um gritinho animado assim que abriu a porta. — Você veio! Achei que era meu agente, as coisas estão loucas depois do último ataque — soltou uma risadinha, torcendo um pouco a boca e abrindo espaço para que eu entrasse em seu apartamento.

— Oi — consegui dizer com um sorriso sem graça, sem acreditar que estava entrando no quarto da única e brilhante, Emilly Diniz.

— O que fez você mudar de ideia? Achei que estivesse ocupada.

— Aconteceu uma coisa meio chata entre meu pai e eu, estava precisando me distrair.

  Emilly estava morando em um hotel na Avenida Paulista e já vinha me chamando para visitá-la há algum tempo, embora não fosse sempre que tivesse tempo para me receber.

  O quarto abrigava um sofá de dois lugares cor de marfim, um tapete preto e paredes turquesa. Na outra extremidade do quarto estava uma cama de casal, um armário pequeno e a porta para o banheiro. Era agradável, com uma vista ampla para a avenida e prédios gigantes cortando o céu sem estrelas, formando uma das minhas paisagens urbanas preferidas.

— Eu fico feliz que tenha vindo, as noites de sábado são sempre entediantes quando eu não tenho entrevistas, o que é bem raro, geralmente eu uso noites assim para decorar texto — sentou-se em cima do tapete, uma variedade de esmaltes e papéis espalhados pela superfície. — Eu adorei seus sapatos.

  Olhei para as sapatilhas que usava, as tinha há anos e elas nem chegavam perto dos sapatos de marca de Emilly.

— Você é tão humilde — murmurei afetada, sentando-se ao seu lado depois de colocar minha mochila em cima do sofá, Egor tendo sumido para encontrar algo para fazer. — Mesmo você sendo, bem, você, você sempre me elogia e não é exibida como essas artistas por aí.

  Sorri torto, não deixando de sentir uma pontada de inveja, secretamente tendo torcido para que Emilly fosse algum tipo de megera arrogante, não porque não queria passar os poderes para ela, mas isso a faria parecer mais humana. Mas não, Emilly era genuína em sua bondade e gentileza.

— Escolhe um esmalte, vou pintar suas unhas para amanhã — ela sorriu timidamente com o elogio, puxando minhas mãos para mais perto. — Eu sempre faço as minhas próprias unhas, acho terapêutico.

— O que tem amanhã? — olhei entre as opções de esmalte, escolhendo o azul, minha cor preferida.

— Boa escolha — elogiou, pegando o frasco das minhas mãos. — E como assim “o que tem amanhã”? Você esqueceu? É a festa em homenagem ao Dia das Mães.

— Oh — pisquei confusa, pegando meu celular para procurar o contato de Júnior. — Tinha me esquecido disso.

— Você disse que iria quando eu perguntei!

— Desculpe, Emy, foi uma semana difícil — enviei uma mensagem perguntando se Júnior iria. — Você não vai passar o dia com a sua mãe? Ou ir em algum evento de caridade para crianças órfãs ou algo assim?

— Eu não poderia, minha mãe está longe e meu evento de caridade é a escola, eles pediram que eu cantasse amanhã.

— É claro que você também canta — revirei os olhos, brincalhona e Emy riu timidamente.

— E sua mãe? Você nunca fala dela.

— Ela foi embora quando eu era pequena, não sei onde ela está agora — dei de ombros, olhando para a janela do quarto ansiosamente e me perguntando se seria possível saltar dela para escapar e ainda sobreviver.

— Seu pai nunca procurou saber?

— Meu pai não demonstra muito os sentimentos — franzi o cenho quando me lembrei de mais cedo. — E os seus pais? Você não fala muito deles também.

  Então olhei de relance para minha mochila, procurando ter certeza de que Iddie e Egor estavam bem. Céus, quando foi que eu fiquei tão paranoica?

— Eu sou emancipada, meus pais nunca quiseram que eu fosse uma artista — sorriu triste, os cabelos loiros caindo sobre os olhos, escondendo sua feição deprimida. — Não sei por onde anda minha mãe, mas meu pai às vezes fala comigo, estamos planejando um futuro juntos assim que eu terminar meus objetivos aqui no Brasil.

— Que são?

  Emilly deu de ombros, levantando-se para pegar duas latas de Coca Zero no frigobar.

— Finalizar os estudos, a novela que estou gravando... — colocou uma das latinhas perto de mim. — Essas coisas.

— Júnior respondeu! — comemorei animada, avançando na direção do celular e até borrando uma das unhas, apenas para murchar logo em seguida. — “Ok” foi tudo o que ele disse.

— Que seco — Emy soltou uma risadinha. — Desculpa, eu não quis rir de você.

— Tudo bem — estendi a mão para que ela terminasse de pintá-la, não escondendo meu desanimo. — Não estamos no nosso melhor momento.

— Você não parece estar no seu melhor momento com ninguém, Lila — Emy riu de novo. — Desculpa, desculpa.

  Ri da delicadeza de Emy ao tentar poupar meus sentimentos, quem dera as provocações de Iddie fossem assim.

— Pelo menos eu tenho uma ótima amiga — sorri em sua direção, feliz por ter alguém com quem conversar sobre isso.

— Você tem — Emilly concordou, também sorrindo para mim.

14 de maio de 2017

  Ao contrário do que a maioria das pessoas parecem pensar, o Dia das Mães nunca foi realmente um dia triste para mim. Talvez nos primeiros anos, vendo todos os meus coleguinhas de classe fazerem presentes para suas mães, enquanto minha figura materna foi embora sem olhar para trás.

  Depois de um tempo você apenas se acostuma e, apesar de às vezes ainda desejar ter uma mãe para contar sobre meus problemas com garotos e reclamar das cólicas, esse não é um sentimento rotineiro ou algo que torna o Dia das Mães um pesadelo. É só uma data normal.

  O pátio da escola foi todo decorado com corações cor-de-rosa, balões dourados e rosas vermelhas. Uma extensão assustadora de cartões preencheu os corredores, todos contendo mensagens de carinho, glitter e canetinha que os alunos fizeram para suas mães. Caminhei ao lado de Emilly, vendo a garota procurar por seu próprio cartão.

— Se ela estivesse aqui gostaria de ler as palavras que eu escrevi — sorriu sapeca, saltando pelo corredor.

  Sorri ao observá-la, Emilly era um raio de sol que conseguia trazer alegria até mesmo para um extenso corredor de cartões bregas e mensagens genéricas.

— Ah! — exclamei quando Júnior bateu nos meus ombros, jogando parte do seu peso nas minhas costas, o movimento espantando Iddie e Egor dos meus ombros. — Oi — disse sem graça, meio boba, o clima ainda estranho entre a gente.

— Oi — ele sorriu, olhando para mim por um segundo. — Você está bonita.

— Eu ajudei — Emilly se aproximou de nós. — Olá, Júnior.

— Emy-girl — Júnior cumprimentou com um aceno, ficando ao meu lado, sem mãos dadas ou beijinhos.

— Já se conhecem? — arqueei uma sobrancelha.

— Fazemos oficina de Artes juntos — Emilly explicou, agarrando nossas mãos e nos puxando na direção do palco.

  A escola já estava lotada de adolescentes que só estavam ali por um ponto extra e mães ansiosas para verem as homenagens de seus filhos. Chegamos atrasadas porque Emilly insistiu que deveríamos almoçar antes.

— Sua mãe está aqui hoje? — sussurrei para Júnior enquanto éramos arrastados pela escola por Emy.

— Está — sussurrou de volta. — Sinto muito.

  Suspirei cansada, a mãe do Júnior era... Complicada.

— E é ali que eu vou me apresentar — Emy apontou sorridente para o palco a nossa frente.

— Filho, como ousa me deixar sozinha no meu dia? — Regina apareceu, vestida com um tubinho vermelho e os olhos cheios de maldade, tão castanhos quanto os de Primazia. — Sua nova namorada? — apontou para Emilly.

— Eu ainda sou a namorada — agarrei a mão de Júnior, ficando mais próxima dele.

— Júnior disse que estavam tendo problemas.

— Não, eu disse que a Dalila estava com problemas — Júnior corrigiu, soltando minha mão para passá-la pelo cabelo nervosamente, ele não estava usando a touca.

— Poxa, que constrangedor — Emilly falou de repente. — Eu vou ali me arrumar para minha apresentação — comunicou, antes de sair correndo na direção do palco, conseguindo deixar o clima ainda pior.

— Muito sutil — Júnior e eu falamos ao mesmo tempo e nos encaramos com um sorriso. Talvez as coisas entre nós não estivessem tão ruins.

  Regina bufou, agarrando o filho pelos ombros e levando-o para o outro lado do pátio.

— Mãe — ouvi ele gritar em reprovação, embora fosse embora com ela, me lançando apenas um triste aceno.

  Suspirei quando percebi que fiquei sozinha.

— Superconstrangedor — alguém disse do meu ombro e um sorriso de saudades que eu não sabia que estava sentindo se abriu no meu rosto.

— Iddie — exclamei alegre, recebendo olhares estranhos das pessoas ao meu redor. — Você saiu do seu voto de silêncio.

— Não era um voto — Iddie bufou, aparecendo na frente do meu rosto com um sorrisinho de lado, seu rabo balançando de um lado para o outro e os olhos brilhando em um rosa claro.

— Você não estava falando — relembrei, começando a andar para longe do fluxo de pessoas na tentativa de chegar a algum lugar onde pudéssemos conversar.

— Não estava falando com você — isso parecia quase irônico considerando que eu era uma das duas únicas pessoas no mundo que podiam ouvi-la.

  Entrei no banheiro feminino do segundo andar, este que estava vazio, ao contrário do banheiro do primeiro andar.

— Uma das vantagens de ser amiga do porteiro é usar o banheiro vazio — me vangloriei de brincadeira, indo até os espelhos para conferir o visual que fez Júnior me elogiar.

— Qual seu problema com sua sogra? — Iddie questionou, voando animada de um lado para o outro.

— Ela acha que sou bolsista, pobre demais para o filho dela.

— Mas você não é — Egor entrou na conversa.

— Ela não sabe disso, e mesmo se eu fosse, isso não deveria ser um problema — tirei a blusa de frio que Emy me emprestou, ficando apenas com uma regata verde e shorts brancos. — Você melhorou? — perguntei a Iddie.

  Não sei o que fez Iddie retornar ao seu eu-normal, mas desde que ela não estivesse sendo má, era bom tê-la de volta.

  Iddie arregalou os olhos com minha pergunta, parecendo pensar no que responder com cuidado.

— Eu... — sua fala foi interrompida pelo som de gritos. — Gritos de horror fazem parte do repertório de apresentação?

  Focamos em escutar, ouvindo os gritos abafados que vinham do andar de baixo. Minha postura mudou quando ouvi isso, o som me levando de volta para os últimos ataques, minhas mãos tremeram e eu tinha certeza de que já podia sentir o cheiro de sangue no ar. Não poderia ser... Poderia?

  Minhas esperanças acabaram quando Egor saiu voando pela porta, voltando apenas alguns segundos depois, ansioso e assustado, trazendo a notícia mais terrível:

— É Primazia, ela está aqui — disse com falta de ar e eu entendia a sensação.

  Engoli em seco, dando um passo para trás, minhas mãos segurando a borda da pia como se isso pudesse me manter no lugar. Ela tinha me alcançado. Mais pessoas morreriam por minha causa. Mais dor. Mais sangue. Mais erros. Mais culpa.

— De novo não, de novo não — ouvi Iddie resmungar ao meu lado, nitidamente afetada e eu olhei para ela com simpatia quando comecei a chorar.

  Não consegui me controlar. Eu não sabia o que fazer. Era estarrecedor. Um medo tão grande estava dentro de mim que mal conseguia me mover.

— Seu irmão também está aqui, o vi perto do portão.

— Gabriel? — perguntei esperançosa com um silvo de voz, nem me preocupando em soar patética por querer que meu irmão estivesse comigo. — Preciso enviar uma mensagem para ele — consegui pensar, um pouco mais calma, um pouco mais sã, porque eu não estava sozinha.

  Gabriel não deixaria essas pessoas se machucarem. Tudo ficaria bem. Disse a mim mesma.

  Tampei os ouvidos, tentando não focar no balbucio de Iddie ou nas pessoas em perigo, precisava falar com Gabriel. Por favor, por favor, eu precisava falar com ele. Me esforcei para pensar no meu irmão, mentalizando sua figura no portão, parado lá, preocupado comigo, vestido como...

— Com que roupa ele tá, hein?

— Dalila! — Iddie e Egor gritaram desesperados e eu também gritei.

  Levei as mãos a cabeça em uma tentativa de clarear meus pensamentos, mantendo minha respiração estável e não nos gritos que só iam aumentando, na sensação de medo, no que diriam as pessoas no dia seguinte.

— Dalila! — Iddie gritou de novo, seu tom não exigente ou debochado, mas cru e sincero, necessitado de alguma ação, gritando “URGÊNCIA!!!” em cada sílaba

— Olha, eu posso lidar com Egor surtando, mas você não Iddie! Não você — apontei um dedo em sua direção, me abaixando até que ficasse rente a pia do banheiro, onde ela estava parada. — Preciso que fique calma, você me entendeu? Preciso de você.

  Iddie se assustou, olhando para mim por um tempo mais longo do que o necessário com a crescente orquestra de gritos ao fundo. Eu não sei o que se passou em sua mente, o que ela estava sentindo ou esperava que eu dissesse, mas vi Iddie respirar fundo e assentir.

— Ninguém manda em mim — respondeu em seu tom petulante, meio inseguro ainda, mas o mais Iddie possível.

— Conto com você — resisti a vontade de acariciar seus cabelos como costumo fazer com Egor.

  Voltei a fechar os olhos e a mentalizar Gabriel, apenas a imagem do meu irmãozão, seus olhos castanhos e sorriso divertido, sua presença acolhedora e sua mente hiperativa. Apenas Gabriel. Levando a simples mensagem de:

  "Banheiro. Segundo andar."

  Não sei quanto tempo passei focando em enviar uma mensagem assim para meu irmão. Egor disse que meus poderes funcionavam através da visualização, quanto mais nítido fosse, melhor funcionaria.

  Eu sabia que não poderia sair lá fora, não sem minha capa, não se fosse Primazia quem estivesse lá. Então esperamos.

— Eu sei que disse para você não se meter em encrenca — Bola Branca disse assim que abriu a porta, apoiando as mãos nos joelhos em busca de recuperar o fôlego. — Mas uma ajudinha agora seria legal.

— Estou sem a capa — disse em seguida, não evitando o sorriso que abri ao ver um rosto familiar.

— Ah, Iddie voltou? — indagou quando seu chapéu foi parar no chão do banheiro. — E como assim está sem a capa? Você é uma heroína, não sabe que não pode sair sem o uniforme?

— O que deu em você para começar a denominar a gente de heróis? — critiquei na defensiva, sabendo que ele poderia muito bem começar a discursar sobre minhas irresponsabilidades e agora com certeza não era o momento, mas não posso negar que brincar com Gabriel era uma quebra legal da tensão que fazia meu corpo paralisar de medo. — Você não disse que iria impedir esse atentado?

— Eu disse que ia tentar, me disseram que aconteceria na Futuros Caminhos, tem a escola e a imobiliária com esse nome, não pensei que a maluca fosse atacar uma escola — balançou as mãos no ar, achando que poderia espantar Iddie quando colocou seu chapéu novamente.

— Óbvio que era a escola, ela explodiu um mercadinho aqui perto! — Iddie resmungou, vindo para perto de mim.

— Seguinte, não saia daqui, vou achar uma fantasia para você e vamos derrotar a maluca juntos — Gabriel não esperou por uma resposta, saindo do banheiro em seguida e levando com ele a calmaria momentânea que se instalou, a urgência da situação voltando com força para mim junto dos gritos e barulhos muito altos acontecendo no andar de baixo.

  "Dalila. Preciso achar a Dal."

  Uma parte dos pensamentos de Júnior chegou até mim, alargando a sensação de culpa permanente no meu peito. Eu era uma péssima namorada.

— Veste isso! — Gabriel jogou um amontoado de tecido vermelho no chão do banheiro e bateu a porta em seguida.

— Um coração? É sério?

  Me aproximei, estudando a fantasia de um vermelho intenso, com buracos para os braços e pernas, olhos grandes e azuis bordados pelo lado de fora, as pupilas cobertas por uma tela preta que me ajudaria a enxergar quando estivesse lá dentro. Ainda havia uma meia calça vermelha, uma blusa de manga e luvas brancas.

— Se olhar do ângulo certo parece uma maçã — Egor considerou.

— Tenho certeza de que é um glóbulo vermelho — Iddie concluiu.

— Olha só, ataque de supervilã está virando rotina — comentei, enquanto me vestia, rindo nervosamente. — Eu nem estou enlouquecendo dessa vez — mentira.

  Saí do banheiro me sentindo mais ridícula do que o normal.

— Pelo menos você não vai se machucar se cair — Egor me consolou, cutucando a fantasia que era feita de uma grossa camada de algodão.

  Gabriel, sem me lançar um segundo olhar, me puxou para observar Primazia. Para nossa sorte, o segundo andar da escola era formado por um corredor circular com as salas, por não possuir um pátio, podíamos ver todo o primeiro andar pelas grades que circulavam o corredor.

— Quem te disse que a Primazia atacaria aqui?

— Eu sou o Bola Branca, lembra? Sei das coisas.

  Olhei o que acontecia no andar de baixo de uma maneira crítica, sabendo que se deixasse meu emocional assumir restaria apenas uma bagunça chorona. Todas as saídas, seja para a rua ou para os andares superiores, estavam fechadas. Os homens que trabalhavam com Primazia, armados e intimidadores, vigiavam as pessoas, agora aglomeradas no meio do pátio, sob a mira das armas e do olhar da vilã que praticamente desfilava pelo palco.

— Por favor, basta a Garota da Maçã aparecer e eu não vou explodir a escola e matar todos vocês — sorriu animada, a arma que usou das últimas vezes sendo girada nos dedos. — E se querem agilizar, é melhor começarem a espalhar a notícia de que estou procurando por ela, a Jovem-Alma não vai aparecer se não souber que eu vim aqui por ela, então tirem suas fotos, chamem os jornais, eu estou aqui!

  Não pensei que eu poderia odiá-la ainda mais. Ela sequer ouvia os absurdos que estava dizendo? Algo se quebrou em mim ao vê-la na minha escola por minha causa e eu me senti enjoada quando todos pareceram levantar seus celulares para fotografarem a supervilã.

— Escute, Jovem-Alma, tem muitas pessoas em perigo aqui, preciso que faça o que eu mandar — meu irmão endireitou a postura, levantando-se do chão. — Libere as passagens, deixa que eu cuido da maluca e você tem permissão para ler a minha mente — não esperou por uma confirmação, pulando a grade direto para o primeiro andar.

  Gostaria de dizer que Gabriel estava superestimando minhas habilidades, confiando demais. Eu estava com tanto medo. Eu queria desaparecer, voltar para uma época mais simples e corriqueira. Ao mesmo tempo em que não tinha escolhas. Eu estava com os poderes. Gabriel estava contando comigo. Primazia só estava ali por minha causa.

  Respirei fundo e pulei também, usando a mesma projeção de uma corda de escalada para diminuir a velocidade e agradeci pelas luvas da fantasia por não machucarem minhas mãos. Estava tudo bem. Eu só precisava agir. Não pensar. Era isso ou um ataque de pânico.

  Com uma coragem que eu não imaginei que tinha, vestindo a roupa mais idiota possível e com Iddie e Egor gritando nos meus ouvidos, corri na direção dos homens que bloqueavam as saídas, em especial a da entrada principal. Egor estava certo sobre a fantasia, não machucava e eu conseguiria lutar sem precisar me preocupar muito com uma camada grossa de enchimento entre mim e meus muitos adversários.

  A maior parte das pessoas estava concentrada no show que Bola Branca e Primazia davam no palco, sem dúvidas mais experientes do que eu, por isso pareceu tão fácil quando avancei para os homens. Eles vieram em minha direção quase ao mesmo tempo e eu aproveitei sua falta de ordem para confundi-los, me ocupando em ziguezaguear pelo pátio, usando a energia de Egor para criar escudos que interrompiam a passagem, criando plataformas do nada e prendendo-os em caixas de energia.

  Evitando uma luta corporal consegui posicionar melhor meus escudos, evitando tiros e golpes que vinham em todas as direções, apenas deixando que minha memória muscular assumisse quando coloquei em prática tudo o que aprendi. Foi simples. Não porque eu era a melhor das lutadoras ou porque meus adversários eram ruins, mas porque eu treinei para isso. Eu realmente me esforcei para ser boa, para decorar sequências de golpes, aprender a desviar de ataques e aperfeiçoar minha própria força. Eu quis merecer minha faixa azul, quis ser boa em ginástica e quis aprender a lutar, um pouco para derrubar meu irmão no chão, um pouco porque às vezes as ruas são escuras e as pessoas são más. Eu quis ser boa nisso. Eu treinei para isso.

  Foi fácil. Foi assustador. E, principalmente, foi possível. Foi possível para alguém como eu lutar contra um grupo de capangas, respeitar meus limites e habilidades recém-encontradas. E eu percebi que não foi por nada, meu treinamento, toda dor que vim sentindo, tudo valeu a pena.

  Em algum momento consegui eliminar os dois guardas da porta principal, prendendo-os em altas colunas criadas de energia e, sem suas armas, não conseguiram me impedir de liberar a porta. Gritei para as pessoas correrem, tentando lidar com os outros dez caras que se amontoaram ao meu redor.

— Agora é uma boa hora para aprender aquela magia de ataque — engoli em seco, temendo me mexer e ser atacada em todas as direções.

  Primazia disparou um de seus explosivos perto de uma das salas, madeira e pedaços da parede voando em nossa direção. Corri o mais longe que pude, criando um escudo sobre minha cabeça quando vi que ela continuava a disparar explosivos em direções aleatórias, desorientando a mim e aos próprios homens que trabalhavam para ela.

  "Raio de Lua. Cadê você?"

  Ouvi Júnior pensar, adicionando ainda mais peso dentro de mim, meu corpo se curvando para frente, me encolhendo na tentativa de fugir do barulho, meus olhos confusos sobre para onde olhar, criando escudos que eu torci para que fossem o suficiente para protegerem as pessoas que corriam aos montes. Balancei a cabeça com força, na tentativa de me focar no que estava fazendo, correndo para me recompor e ajudar a tirar as últimas pessoas do pátio. Alguns dos homens de Primazia ainda tentavam lutar ativamente contra mim e eu tive de recorrer a formas mais criativas para me livrar deles.

— Que bom que não encontramos nenhum cadáver — Iddie acompanhou meus movimentos. — Acha que consegue dar uma voadora?

  Ignorei Iddie enquanto torcia o braço de um cara que se aproximou demais, sua força superior fazendo com que facilmente se livrasse de mim, apenas sumindo quando uma nova explosão aconteceu, o impacto fazendo nossos corpos voarem para lados opostos.

— Preciso ajudar o Bola Branca — os observei lutando no palco, Gabriel usava um pedaço de ferro como arma, o qual não chegava nem a amassar a armadura da vilã.

  Eles se moviam no palco com a graça de dois lutadores habilidosos, como as lutas que vemos nos filmes de ação com golpes complicados e poucas palavras trocadas. Me levantei do chão e corri para mais perto deles, Gabriel não estava perdendo a luta, mas era nítido pela sua postura menos atenta e seus socos mais desorientados que ele já estava se cansando, enquanto Primazia ainda parecia em perfeito estado, atenta e sorridente, sem falhas.

  Projetei um escudo circular na palma da minha mão, mirando-o em Primazia com a ingênua fantasia de cerrar sua cabeça com ele ou pelo menos distraí-la, mas o que o escudo fez foi parar na frente do Bola Branca, protegendo-o dos golpes da mulher, como é função de um escudo.

— O quê? Por que não funcionou? — dei alguns passos para trás, sem entender o que aconteceu para o escudo mudar de rumo sozinho.

  Assim que Primazia viu o escudo seus olhos se voltaram em minha direção, parecendo feliz em finalmente ter me achado.

— Minha energia é feita para proteção, ela sempre vai se moldar para proteger — Egor explicou rapidamente, enquanto eu comecei a correr tendo plena consciência do quão ridícula a cena não deveria parecer de fora.

  Praticamente podia ouvir Gabriel reclamando da minha intromissão, sabendo que um sermão sobre seguir suas ordens me aguardava no final do dia. Se a gente sobrevivesse. Pelo menos eu poderia argumentar que ele não me disse o que fazer quando me livrasse dos capangas.

  Primazia se lançou sobre meu corpo, montando em cima de mim quando eu rolei pelo chão, um sorriso de escárnio fixo no rosto. E eu me engasguei, me debatendo no chão, sem saber como lidar com sua presença tão perto de mim, resistindo ao desejo de apenas fechar os olhos e gritar. Eu não estava pronta para lidar com isso. De novo não. Ela iria me matar. Iria me matar e à Iddie e Egor também. Porque Catarina escolheu errado. Porque eu sou falha.

— Estava preocupada, pensando que teria que explodir todas as escolas da cidade para encontrá-la, Garota da Maçã — Primazia disse perto dos olhos da fantasia onde sabia que eu a estava vendo com clareza, suas mãos tateando em busca de rasgar o tecido e revelar minha identidade. — Agora vamos descobrir quem a mamãe escolheu para me substituir.

  Não pensei muito quando projetei um casulo em volta do meu corpo, fazendo Primazia saltar para fora do meu campo de visão quando a barreira esmeraldina nasceu entre nós. Rolei na tentativa de me levantar, vendo Bola Branca puxar Primazia do chão em seguida e bater em seu rosto, um soco bem-posicionado, que fez sua cabeça girar, um estralo horrível sendo produzido e deixando seu lábio inferior rachado.

  Primazia alçou voo em seguida em uma tentativa de fuga, indo na direção do teto. O movimento brusco fez Bola Branca recuar e ela o agarrou pelo pescoço, levantando meu irmão com ela, segurando-o pelo pescoço com força suficiente para deixar marcas, voando, voando, voando. Assisti quando ela sussurrou algo em seu ouvido, vendo seu corpo se contorcer sem poder fazer nada.

  "Dal, ela vai me soltar. NÃO ME DEIXA MORRER."

  Ouvi seus pensamentos, a urgência do pedido fazendo com que se destacasse fora da leve barreira que impus.

  Segundos depois Bola Branca estava caindo do teto da escola, Primazia voando para fora por um buraco que criou no teto. Projetei um cubo no meio do caminho, diminuído o impacto da queda. Bola Branca gritou ao atingir a superfície, gemendo e rolando para fora do cubo assim que caiu, cambaleando pelo pátio vazio quando se levantou.

— Seria ótimo se essas projeções tivessem textura — reclamou, puxando minha mão na direção da saída dos fundos com pressa, sem me deixar processar o fato de que Primazia havia acabado de fugir. — Ninguém mais vai entrar ou sair daqui assim que a polícia chegar, tire essa roupa e se misture, daqui a pouco o papai vem te buscar — instruiu quando saímos da escola, a área por enquanto sem pessoas devido as explosões. — Você não viu, ouviu ou tocou em nada, se cuida e saia da minha mente — Gabriel ditou, entrando dentro do seu carro e dirigindo para longe.

  Tão rápido quanto começou, o ataque de Primazia acabou, me deixando para trás com metade da escola destruída, uma fantasia de coração e as instruções mais ambíguas.

— Dal — a voz de Egor me acordou do meu transe.

— Podem cobrir as câmeras com alguma coisa, enquanto eu escondo essa roupa? — perguntei no automático, não deixando que as mistura de emoções intensas acontecendo dentro de mim afetassem a forma como lidaria com isso.

  Joguei a fantasia na lixeira dos fundos, arrumando meu cabelo e roupas de volta a como estavam antes, talvez só um pouco mais bagunçados. Contornei a escola, indo até a entrada como Gabriel havia dito. A rua estava completamente cheia de gente, muitas pessoas que nem mesmo vieram à festa estavam presentes, curiosas para saberem o que estava acontecendo. Havia muitos carros de emissoras de TV, ambulâncias e viaturas policiais, levando os capangas de Primazia em ordem para a delegacia ou hospital.

  E muito barulho. Muita gente chorando, falando, gritando. Uma confusão de sons de sirenes e instruções gritadas ao vento. Pessoas passando de um lado para o outro, a multidão se apertando no espaço, buscando informações, procurando amigos perdidos, pedindo ajuda. Muitas pessoas, muita agitação, muitas consequências.

— Vão ter assunto no jornal — Iddie admirou-se, sondando a área em busca de fofocas. — E ainda é só duas da tarde.

— Lila — ouvi Emilly chamar e me virei de forma brusca em sua direção, vendo-a acenar para mim em um canto mais afastado. — Aqui!

  Ela estava junto de Júnior, Regina e Rebeca, reunidos em uma rodinha, olhando ao redor em estado de choque. Corri na direção deles, sendo recebida pelos braços do meu namorado. Júnior me beijou e me apertou com força, suas mãos firmes nos lados do meu rosto quando me afastou apenas o suficiente para me encarar, feliz por me ver bem. Gesto doce o suficiente para fazer sua mãe torcer o rosto e Emilly e Rebeca suspirarem.

— Eu gostaria de ter um namorado, se ao menos algum homem soubesse me valorizar — Emy falou em tom sonhador. — Fico feliz que esteja bem, te procuramos por todo o lugar.

— Sinto muito, tudo isso foi loucura — depositei um beijinho rápido nos lábios de Júnior. — Fiquei com medo de que algo tivesse acontecido com vocês — confessei, meus olhos colados apenas em Júnior.

— Estou bem — colou um beijo na minha testa, recusando-se a me soltar. — Achei que te perderia.

— Tão fofos — Rebeca arrulhou em tom estridente.

  Nós rimos de sua fala e eu olhei para a garota pela primeira vez no dia, Rebeca estava vestindo uma jardineira amarela, seu cabelo preso em um coque no alto da cabeça e seu lábio inferior rachado. Franzi o cenho para esse conjunto de características. Sabe quem também tinha o lábio assim quando saiu da escola? Isso mesmo.

— O que aconteceu? — apontei para sua boca em um tom mais acusador do que eu gostaria, minha postura de imediato se tornando defensiva quando analisei a garota sem esconder meu julgamento.

— Oh — Rebeca pareceu surpresa quando falei com ela, sorrindo “simpática” em minha direção. — Costumo morder o lábio quando estou estressada.

  Olhei para Iddie e Egor em busca de alguma colaboração, esperando que eles tivessem seguido meu raciocínio.

— Suspeitaaaa — Iddie cantarolou, voando para perto de mim e encarando "Rebeca” com ódio.

— Você se machucou? — voltei minha atenção para Júnior, deixando que minhas suspeitas fossem confirmadas ou negadas quando não estivéssemos em volta de um grupo de jovens e mães inocentes.

— Estou bem — respondeu e colou nossas testas em um gesto carinhoso. — E você?

  A pergunta me pegou de surpresa. Não por ser inesperada, mas porque eu não fazia ideia de como responder.

— Eu — falei, sendo interrompida pelo flash da câmera do celular de Emilly.

— Desculpa, vocês são tão adoráveis — balançou as mãos alegremente. — Eu estou sendo convincente? Vou dar uma entrevista daqui a pouco e tenho que parecer no mínimo esperançosa, eu estou surtando e com vontade de chorar.

  Rebeca sorriu compreensiva, dando um abraço em Emilly, que pareceu murchar no ato, parecendo terrivelmente arrasada com sua postura curvada e soluços que escaparam de seus lábios. Mas esse não foi o meu foco e sim a vontade quase instintiva que sentir de projetar um escudo no meio das duas para proteger Emy do veneno que Rebeca era. De repente as coisas faziam sentido.

  Rebeca foi a primeira pessoa a citar o nome de Primazia, na época em que ninguém sabia o nome dela. Era Rebeca quem estava obcecada pela nova supervilã e pelo acidente. Rebeca quem tinha longos cabelos loiros e pele parda, exatamente como Primazia. Rebeca que estava abraçando minha amiga, parecendo só mais uma vítima do caos que Primazia causou, quando fazia sentido que ela fosse a culpada.

  Antes que eu pudesse tomar alguma atitude precipitada, Emilly foi arrastada do nosso grupo por um bando de homens de terno, todos falando sobre novas palestras e entrevistas que ela precisava dar. Rebeca foi para casa em seguida ou talvez para um covil do mal, senti vontade de segui-la, mas a vida me ensinou a obedecer ao Gabriel. A mãe do Júnior foi a próxima a ir embora para longe da confusão.

— Eu te amo — Júnior me deu um último beijo nos lábios antes de seguir a mãe na direção do carro que os esperava.

  Suspirei, sabendo que em outra circunstância, que não o Dia das Mães, ele teria ficado comigo até meu pai chegar. Pelo menos poderia aproveitar o tempo que tinha para ajudar os professores com a organização dos alunos perdidos, ainda escondidos nas salas da escola ou que saíram correndo para longe quando tudo aconteceu.

  Algumas pessoas murmuravam sobre os novos super-heróis que apareceram. Estavam chamando Gabriel de Quadrado Branco e a mim de Jovem-Alma, o nome que Primazia usou. Agora era oficial para a comunidade de heróis e vilões, Catarina, a Donzela Vermelha, foi oficialmente substituída.

— Você se saiu bem hoje — Egor elogiou quando, ao que pareceram horas depois, as coisas se acalmaram, as pessoas foram embora e tudo pareceu um sonho.

— Obrigada — Iddie acomodou-se no meu ombro, cansada do dia cheio que tivemos.

— Estava falando da Dal.

  Iddie estava pronta para rebater a fala do anjo quando um professor me chamou para avisar que meu pai havia chegado, tirando minha atenção da troca das entidades que eu havia aprendido a conviver e amar. Corri até meu pai sem esperar por mais nada, me jogando em seus braços e recebendo um dos melhores abraços da minha vida, indiferente a tudo e todos que estavam ao nosso redor, só importou que meu pai estava comigo, lágrimas começaram a escorrer sem minha permissão, junto com soluços e tremores. Havia acabado. Mais um ataque e mais uma vez eu havia sobrevivido. Sem baixas dessa vez. Dessa vez com Gabriel ao meu lado. Iddie e Egor também.

— Está tudo bem — meu pai disse quando me ouviu chorar em seu ombro. — Você foi muito corajosa passando por tudo isso, estou orgulhoso de você.

  Apertei um pouco mais o abraço, aproveitando a satisfação momentânea de ter meu pai ao meu lado. Isso era tudo que eu precisava ouvir para ficar bem.

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