Fuji

  Ouvir a história da Branca de Neve no jardim de infância não me impediu de aceitar uma maçã de uma velha estranha. Eu sei, os narradores dos contos de fadas estão decepcionados, é por isso que eu narro o meu próprio livro.

10 de abril de 2017

  Era um fim de tarde. Tudo o que eu mais queria era tomar um banho e ignorar a única mensagem de Júnior que teria no meu celular. Eu deveria respondê-lo. Eu sou Dalila Silvestre e Dalila Silvestre não tem amigos e é por isso que deveria responder meu namorado quando ele manda mensagem.

  De qualquer forma, lá estava eu, trilhando meu caminho solitário em direção à estação de metrô. Fones de ouvidos ligados e com sucesso ignorando as conversas das pessoas ao meu redor. No entanto, achei que deveria começar a prestar atenção quando todos pararam de andar, apontando suas mãos para o alto com expressões engraçadas. Também parei de andar, olhando para o que poderia ser tão importante.

  Esse foi meu primeiro contato com Primazia, em toda a sua glória dourada e gritos histéricos. Ela flutuava com asas mecânicas cor-de-rosa e douradas e tinha duas pistolas em mãos, disparava pequenos coraçõezinhos delas, sua armadura brilhante refletindo o desespero dos rostos das pessoas que sabiam que tinham altas chances de morrerem.

  E, como em um videoclipe com a fotografia bagunçada, eu comecei a correr, porque os malditos corações eram explosivos e o supermercado estava voando pelos ares. Pedaços de plástico, concreto e presunto caindo como uma louca chuva de tudo o que há de bom.

  Gritos ecoaram por toda a rua, pessoas correndo para longe da mulher disparando explosivos dentro de casas e veículos, sem se importar com as pessoas. E eu só queria chorar, porque como se não bastasse a maluca tentando matar a mim e a todos em um raio de 1 km, se esse fosse meu último dia de vida, foi um último dia deploravelmente comum.

  Para minha surpresa, os metrôs ainda estavam funcionando, no entanto, eu e mais todas as pessoas ao redor tiveram a brilhante ideia de nos escondermos na estação também, tornando a movimentação praticamente impossível.

— É o terceiro ataque do ano e eu estava em todos eles, não aguento mais isso — a mulher ao meu lado desabafou. — Primeiro ataque de supervilão?

— É — murmurei com insegurança. — Quando acaba?

— Demoram algumas horas até a polícia chegar, mas a doida deve ir embora dessa área até lá — explicou enquanto abria sua bolsa. — Os super-heróis locais estão na Amazônia ou algo assim, ninguém vem nos salvar, então se prepare para morrer ou correr, ok? — "me tranquilizou". — Calmante?

10 horas atrás

 

  As manhãs são o único momento em que toda a família está reunida. Temos uma mesa redonda posicionada em uma sala muito escura e abafada. Em volta dessa mesa fica um banco velho, uma cadeira de praia e uma das cadeiras pertencentes à mesa anterior. Sou responsável por fazer o café, meu pai chega do trabalho com um saco de pães e Gabriel, meu irmão mais velho, liga a TV para termos algum ruído de fundo, enquanto tentamos conversar como seres humanos normais e resistimos ao desejo de começar a dormir ali mesmo.

  É comum meu irmão nos dar algo para observar, nessa manhã ele trouxe um... Livro de colorir para crianças?

— Não é para crianças — resmungou a contragosto. — Existem livros de colorir para adultos, são desenhos complicados de mandalas ou um monte de espirais sem fim.

— Sim, mas esses são desenhos das princesas.

  Gabriel abraçou o livro contra o peito, mostrando a língua em um gesto de indignação, ao qual apenas ignorei.

— Como foi no trabalho? — perguntei ao meu pai, que me olhou com os mesmos olhos cansados de sempre.

— Cheio de clientes bêbados — falou entre dentes, bebendo sua xícara de café.

— O quê? — não entendi.

— Ele disse, cheiro de doentes babados — Gabriel explicou.

— É claro que não, essa frase nem faz sentido.

— Ele deve estar falando de você, Dal — o idiota do meu irmão disse alegremente.

   Conversar com nosso pai assim que ele chegava do trabalho era um enigma, suas falas saiam emboladas e quando pedíamos para repeti-las ele dizia algo completamente sem sentido, apenas para ver a gente tentando decifrar.

  É assim que o conhecemos. Meu pai trabalha todas as noites, sem exceção, folgas ou férias, exceto em casos muito especiais, na boate Catwalk, como segurança. Ele chega cansado em casa e passa o dia dormindo, o que faz do café da manhã a refeição mais importante do dia, porque é o único momento em que podemos estar com ele.

— Eu disse que estava lotada de animais silvestres — meu pai repetiu.

— Fantasias rupestres? — tentei adivinhar.

— Aliás, e os cotonetes?! — Gabriel me corrigiu.

— Certo, já chega, estou indo embora daqui — terminei minha bebida e me levantei da mesa, indo calçar os sapatos.

— Está desistindo, irmãzinha? Significa que eu ganhei? — Gabriel provocou.

  Olhei para ele irritada, Gabriel tinha metade do corpo virada em minha direção e um sorriso de lado no rosto. Não pude deixar de sorrir de volta, meu irmão é uma pessoa incrível.

  Gabriel tem 19 anos, está terminando o ensino médio (depois de repetir dois anos) e não faz ideia do que quer fazer quando sair da escola. Ele tem fartos cabelos castanhos escuros que crescem mais rápido do que pode cortá-los, olhos castanhos que sempre estão se divertindo com algo, pequenos apontamentos de fios no rosto que ele insiste em chamar de barba e, não importa o tempo, ele só usa regatas coloridas.

  Meu pai não parece se importar e eu não tenho certeza se Gabriel me contaria se eu perguntasse, mas, todas as noites, Gabriel me deixa sozinha em casa. Cheguei a pensar que ele poderia estar usando drogas, mas Gabriel não é a pessoa mais sutil do mundo, eu saberia se fosse esse o caso. Gabriel tem um segredo, suas noites são um mistério.

  Eu tenho os mesmos cabelos e olhos castanhos que ele, a diferença é que meu estilo se baseia em blusas listradas e calças confortáveis. Sou muito mais estilosa, tenho certeza.

— Diz pro Júnior para manter aquelas mãos de pintor em zona segura — Gabriel gritou assim que saí.

  O caminho da minha casa até a estação durava pouco mais de vinte minutos, deixando tempo para duas músicas felizes e um discurso motivacional para encarar o novo dia de aula.

  Na plataforma do metrô encontrei Júnior, aspirante a poeta, pintor extraordinário e meu namorado. Como isso aconteceu? Eu também não sei. Nos conhecemos no primeiro ano do ensino médio e começamos a namorar no final do ano passado, quando tivemos de conversar durante uma semana por causa de um trabalho em dupla.

— Aí está o meu Raio de Lua — cumprimentou assim que cheguei à estação, deixando um pequeno beijo nos meus lábios e um na testa. — Como foi o fim de semana?

— Você saberia se tivesse falado comigo — brinquei, andando em direção às cadeiras no final da plataforma.

— Desculpa, minha mãe confiscou meu celular — se explicou com um bufo. — Aparentemente eu não posso faltar no curso de espanhol para assistir um jogo de futebol.

— Mas e se você assistir com a narração em espanhol?

  Júnior considerou a pergunta, sentando-se ao meu lado nas pouco confortáveis cadeiras azuis da estação.

— Suponho que ela teria me perdoado se tivesse dito isso — ele concluiu, cruzando os braços, desanimado, seus olhos vagando em direção às pessoas do outro lado da linha. — Ela me deu uma lição de moral sobre poder e responsabilidades.

— Como o tio Ben? — brinquei.

— Quem é esse?

— Júnior, não acredito que não entendeu — bati em seu ombro. — Você precisa ver os filmes da Marvel comigo, sabe, grandes poderes, responsabilidades e aulas de idioma.

— Claro, porque aprender espanhol com certeza vai fazer eu salvar o mundo um dia — debochou, cutucando meu quadril.

— Um dia eu com certeza vou salvar o mundo, vou precisar de um intérprete quando acontecer.

  Júnior balançou a cabeça como faz quando eu falo alguma besteira, puxando meus ombros para um abraço de lado, seu corpo quente e acolhedor me fazendo esquecer do lugar barulhento em que estávamos.

  Gostava de aproveitar esses momentos. Sendo filho único de pais ricos e divorciados, eu disputava o tempo de Júnior com a escola, cursos, eventuais compromissos e as casas do pai e da mãe. Erguendo um pouco a cabeça observei meu namorado, com grandes olhos cor de uva e abundantes cabelos pretos, parecia exatamente o mesmo de quando o conheci, exceto por uma touca verde que dei a ele no nosso primeiro mês e desde então ele não tirou mais.

— O que está olhando? — perguntou quando me notou o observando.

— Não quero ir à escola — murmurei, voltando a esconder a cabeça em seu ombro. — Ficou tudo tão estranho agora que você mudou de sala.

— Não pode ser tão ruim assim — depositou um beijo em meus cabelos. — Tenho certeza de que você pode encontrar uma amiga para falar sobre... maquiagens e garotos?

— É disso que você acha que a gente fala?

  Júnior bagunçou meus cabelos e ficamos em silêncio por um tempo, encarando o cartaz a nossa frente com a figura de dois heróis genéricos do governo.

— Veja — Júnior começou. — Um ataque acontece na cidade, para onde você vai?

— Vou me esconder em algum mercado, ninguém é louco o suficiente para atacar um mercadinho — disse com minha voz de sabedoria.

— Doce e ingênua Dalila, você deve correr para longe, e só pare quando ver algum super-herói vindo salvar o dia.

  Franzi o cenho, levantando-me para entrar dentro do metrô.

— Você sabe que não confio nesses malucos fantasiados.

— Então espere pela polícia, eu também não confio neles, contando que você não tente ser uma heroína e se assassine no processo... — Júnior deu de ombros, levantando-se. — Marquei de encontrar alguns amigos, você se importa?

— O quê? Não, tudo bem — fiz um gesto solto com a mão, já entrando no vagão. — Vejo você amanhã!

— Se cuida, Raio de Lua — acenou e as portas se fecharam.

  A última parada do meu dia era na escola Futuros Caminhos, uma das melhores de São Paulo, na qual eu não fazia ideia de como havia ganhado uma bolsa de estudos integral. Eu não sou burra, mas também não sou o que se pode chamar de genial. Minhas notas são medianas e eu sei pouco mais do que o exigido como "conhecimento geral".

  De qualquer forma, lá estava eu, todos os dias, mochila azul, uniforme verde e frio na barriga. Aquele não era o meu lugar. Eu sei, eu sei, a escola nunca parece ser o seu lugar, mesmo que os adultos insistam em chamá-la de segunda casa.

   O ensino médio é completamente indiferente a minha presença. Eu não sou a garota nerd odiada por ser mais inteligente. Eu não sou uma das garotas ricas e bonitas, odiada por ser rica e bonita. Essa notável falha na minha vida social tornam os dias mais produtivos. Em contrapartida, não é muito divertido passar oito horas diárias sozinha.

  Quando as aulas terminaram, segui caminho para a tragédia que narrei no começo, Primazia ataca um mercadinho! Eu e minha maldita boca...

  E então eu corri para dentro da estação do metrô, uma ideia não tão boa agora que olho em retrospecto. A mulher que estava ao meu lado desapareceu depois de me dar o calmante, me deixando para trás com uma mochila pesada, o coração acelerado e a adrenalina acumulada, o que entra no top 3 sentimentos mais comuns durante seu primeiro ataque de supervilão de acordo com a revista Chilique.

   Quando se trata de ataques de seres superpoderosos você pode identificar várias reações no meio da multidão. Algumas pessoas se desesperam, gritando ou desmaiando pelos cantos. Outras se ocupam reclamando, também gritando, mas porque estão atrasadas para algum compromisso ou acabaram de perder seu carro. A única coisa em comum é que todos sempre parecem, em algum nível, conformados com a situação.

  Ninguém ali se atreveria a enfrentar a maluca dourada lá fora, essas pessoas querem ir para suas casas e tomar duas garrafas de vinho ou duas cartelas de calmante, apenas para esquecerem do quão indefesos nós somos.

  Conforme as pessoas iam entrando nos vagões que chegavam, consegui achar espaço o suficiente para me espremer em algum canto da plataforma e torcer para que toda a destruição do lado de fora não me acompanhasse até em casa quando eu conseguisse pegar o metrô.

  No entanto, houve um pequeno contratempo nos meus planos. Com a bagunça de corpos se empurrando em um pequeno espaço, era uma questão de tempo até que alguém se desequilibrasse e caísse nos trilhos. A felizarda foi Catarina, uma velha senhora de pernas fracas e visão prejudicada.

   As pessoas em volta gritaram, alguns xingamentos, outras exclamações de pena. A senhora bateu o joelho na queda, não conseguia levantar e ninguém parecia ter certeza do que fazer. Não é como se oferecessem tutoriais de emergência caso alguém caia nos trilhos... Na verdade, acho que tem tutoriais em todos aqueles cartazes espalhados pela estação... Não importa, não daria tempo de ler mesmo.

  O metrô estava se aproximando e a senhora mal conseguia se mover. Já podia imaginar todo PTSD e ansiedade com que teria que lidar depois disso, mas, de alguma forma, a ideia de ver alguém prestes a morrer e não fazer nada para impedir me apavorava mais do que tudo, pior do que presenciar essa cena seria presenciar e ficar parada.

  Minha cabeça martelava com as frases: tem uma pessoa nos trilhos e o metrô está se aproximando. E enquanto eu pensava isso de forma clara, uma outra voz, um pouco mais escondida, dizia que eu deveria fazer alguma coisa. E rápido.

  Talvez eu seja uma suicida, talvez o calmante que tomei tenha desacelerado meu raciocínio, mas a próxima coisa que fiz não foi gritar alguma instrução ou correr para chamar ajuda, mas sim pular nos trilhos, caindo ao lado de Catarina, que me olhou com olhos castanhos arregalados.

— Você é idiota?! — algumas pessoas lá em cima gritaram e eu me fiz a mesma pergunta.

  Porque eu estava no meio dos trilhos do metrô prestes a ser atropelada. O que eu esperava fazer? Salvar a senhora? Correr até um lugar seguro? O que a mulher disse mesmo?

— ... Se prepare para morrer ou correr, ok?

  Engoli em seco, não queria morrer, mas não podia correr. Olhei Catarina prestes a chorar porque eu tinha acabado de condenar a gente à morte certa.

— Posso ler sua mente? — ela perguntou, assim, do nada.

— O quê? — pisquei embasbacada. — Que tipo de último desejo é esse?

— Posso ou não? — disse alegremente e eu dei um passo para trás, me esforçando para raciocinar.

— Pode — gaguejei, meus olhos indo em direção a frente.

   O metrô devia estar vindo devagar. Ou talvez a gente estivesse fazendo tudo muito rápido.

  E eu sentia tanto, porque talvez alguém mais preparado pudesse ter salvado a senhora, se eu não tivesse me intrometido talvez ela fosse ficar viva e outra pessoa seria a salvadora. Eu não era uma heroína. Era uma idiota que se jogou nos trilhos do metrô, tentando salvar alguém cujo não tinha forças para carregar, nem sanidade mental para tranquilizar.

— Eu sinto muito — lembro de pensar, olhando para Catarina com lágrimas nos olhos.

  Cientificamente comprovado, antes de morrer sua vida passa diante dos seus olhos. Isso não aconteceu dessa vez. Em algum lugar, dentro de mim, bem fundo e escondido, eu devia saber que tudo ficaria bem. Talvez eu acreditasse que pudesse sobreviver e foi por isso que me arrisquei. E mesmo com as pernas tremendo, um choro feio deformando meu rosto e com uma ligeira sensação de culpa, eu me virei, ficando na frente do corpo de Catarina, respirei o fundo e olhei para frente. E nada aconteceu.

  O metrô nem mesmo chegou a aparecer nos trilhos, porque alguém decidiu fazer algo inteligente e foi chamar os seguranças para avisar que havia pessoas nos trilhos. Essa pessoa foi Emilly Diniz, estrela em ascensão e aluna modelo da Futuros Caminhos, estudávamos na mesma turma.

  E enquanto as pessoas me davam tapinhas nas costas, perguntando se eu precisava de ajuda ou, não sei, um psiquiatra! Emilly recebeu todos os abraços e "parabéns" animados. Eu fiquei chateada. Minha façanha vergonhosa distraiu as outras pessoas de buscarem ajuda, não fosse por Emilly, Catarina estaria...

— Viva — ouvi alguém falar ao meu lado e virei o pescoço para encontrar Catarina. — Você teria me salvado.

— Me desculpa, mas eu tenho certeza de que não ajudei — mordi o lábio, apertando as alças da mochila. — Apenas agi por instinto, não queria chamar atenção ou... Morrer.

— Eu posso ver, não se preocupe tanto com isso, heróis agem por instinto — a senhora riu um pouco, balançando as mãos no ar de forma aleatória. — Aqui, coma isso — ela me entregou uma maçã. — Você parece muito pálida.

  Assenti devagar, aceitando a fruta e indo em direção ao vagão mais próximo, sem ter certeza do que tinha acabado de acontecer. O metrô já havia esvaziado, o ataque da nova supervilã seguiu na direção contrária da estação.

  Suspirei deprimida, mordendo a maçã que Catarina me deu de forma desanimada. — Heróis agem por instinto — a frase se repetiu nítida em minha cabeça.

  Não, eu não era uma heroína. Heróis salvam pessoas, não se matam com elas. Eu não sou digna de ser uma heroína.

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