Cortland
19 de maio de 2017
Não dormimos na noite passada. Depois que Gabriel passou na dra. Anna, ele achou que seria uma boa ideia gastar o resto da noite comemorando nossa vitória na Catwalk. Eu fui, não porque estava bem para uma festa ou porque queria comemorar a derrota de Primazia, mas apenas porque a ficha ainda não tinha caído, eu apenas agi no automático, entorpecida e em algum momento, o meu choque se transformou em negação e eu apenas aproveitei a noite, mandando todos os sentimentos confusos dentro de mim para o fundo da minha mente em um baú chamado "ver depois".
Muitos refrigerantes e músicas eletrônicas mais tarde, Gabriel e eu estávamos correndo contra o tempo para entrar pela janela de casa antes que nosso pai chegasse.
- Ele vai perceber, ele vai perceber - tentei falar, enquanto ainda ria das imitações de Gabriel sobre como destruímos os sonhos da Primazia.
- Não vai não, faço isso há anos, ele vai pensar que passamos a noite acordados.
Continuamos rindo um com o outro e eu me aproveitei das distrações do meu irmão para correr para o banheiro antes que Gabriel o interditasse pelas próximas horas. Foi como tirar um peso das minhas costas quando tirei as roupas. Até que eu tinha começado a gostar do terninho. Foi uma longa noite e embora não satisfeita pelo desfecho, Primazia ter morrido trazia uma leveza estranha para minha vida.
- Crianças, cheguei - ouvi meu pai dizer quando entrou em casa e eu não lembrava como estava com saudade dessa voz.
- Ele disse "caguei"? - indaguei quando saí do banheiro.
- Tenho certeza de que foi "chequei" - Gabriel deu sua sugestão, já vestido com uma de suas regatas.
- Estava com saudades disso - sorri em sua direção. - É bom saber que tudo acabou.
- É sim - Gabriel passou um braço pelos meus ombros, os olhos focados na janela com vista para a rua. - Esse seria um momento mais bonito se houvesse um pôr do sol ali.
- Com certeza - concordei, mas continuei olhando a rua, apenas feliz por estar lá... até Egor estragar tudo.
- Não está esquecendo de nada? - o anjo começou.
Virei a cabeça para ele, sem ter certeza do que estava falando. Egor podia ser bem sorrateiro quando queria, sorrindo sapeca quando me lembrou:
- O que vai fazer com a gente agora, Dal?
Arregalei os olhos, lembrando-me da outra parte do plano. Aquela parte que vinha em seguida, depois de derrotar Primazia e ter minha vingança. A parte onde eu finalmente me livraria de Iddie e Egor, onde eu passaria meus poderes para Emy. Meus poderes...
Desde quando comecei a me referir aos poderes de Catarina como meus? Meus poderes, minha capa, minha vida. Mas eles não eram meus, eram? Não de verdade. Não quando eu não os merecia e não sabia como lidar com eles. Eu não sabia o que responder, então não fiz. Mais tarde haveria tempo.
- Espero que ainda tenha café - Gabriel cortou meus pensamentos, indo em direção à cozinha. - Bom dia, pai - o ouvi gritar, provavelmente dançando pela cozinha com sua animação rotineira, ainda mais depois da nossa vitória.
Desviei do olhar questionador de ambas as entidades, também seguindo para a cozinha. Como sempre, fiquei responsável por fazer o café, meus pensamentos evitando o tópico a respeito dos poderes. Sentei-me no banquinho quando acabei, pegando a manteiga e um dos pães que.
- Não precisam perguntar - Gabriel começou, levantando-se da cadeira onde estava e indo até o sofá. - Eu sei que estão loucos para saberem o que eu trouxe hoje.
- Não estamos não - Iddie cantarolou, provocando apenas para manter o personagem, ela estava bastante contente.
Gabriel retornou à mesa com um cachecol vermelho de lã.
- Eu ganhei um cachecol - exibiu a peça, enrolando-a no pescoço e até fazendo uma pose estilosa.
- Um cachecol? - Iddie e eu falamos ao mesmo tempo.
- Por que você ganharia um cachecol? - arqueei uma sobrancelha enquanto mordia um pedaço do pão.
- A professorinha e eu voltamos - piscou para mim e o dia tinha começado tão bem que nem me dei ao trabalho de protestar. - Eu gosto, vermelho combina comigo.
- Vermelho é uma cor - meu pai disse sem fazer sentido.
- Valho uma se for! - Gabriel apontou com rapidez.
- Velho e com dor - comentei logo atrás, confiante.
- Como vocês aguentam isso? - Iddie choramingou.
Suspirei contente, terminando de tomar meu café. Meu pai começou a nos contar sobre sua noite, falando das fantasias mais malucas que viu no Dia dos Heróis e Heroínas, alheio ao fato de que vimos com nossos próprios olhos a maioria delas. Depois do café, nosso pai se trancou no quarto para dormir o sono que perdeu durante a noite.
"Como eu amo meus filhos."
Não evitei ouvir seus pensamentos antes dele ir se deitar e não poderia ter ficado mais feliz com isso. As coisas pareciam estar se encaixando, eu nem me lembrava direito porque estava preocupada. Primazia estava morta, a cidade segura, meu pai e Gabriel estavam felizes e eu... Eu ficaria bem. Voltando a vida normal.
Fui lavar a louça e Gabriel se jogou no sofá para resolver os negócios da sua identidade secreta, Bola Branca.
- Vou te dar essa semana de folga - Gabriel avisou enquanto digitava algo no notebook. - Mas depois vamos voltar à rotina, você ainda tem muito o que aprender.
Notei o olhar reprovador de Egor, que flutuava perto das xícaras e de vez em quando reclamava sobre as gotículas de água que caíam em cima dele.
- Sobre isso... - comecei, sem ter certeza se era o melhor momento para contar sobre meu dilema atual, felizmente Gabriel me interrompeu.
- Te contei que não encontraram o corpo da maluca? Ela desapareceu - Gabriel comentou distraído.
Virei a cabeça em sua direção.
- Como assim "desapareceu"? - fiz aspas com as mãos, espuma voando pela cozinha com o movimento. - Eu a matei, não tem como alguém ter sobrevivido depois da quantidade de flechas que cravei na cabeça dela - franzi o cenho para meu próprio vocabulário, mas não consegui pensar em uma escolha de palavras melhor.
- Você ficaria surpresa - Iddie voou mais perto de mim. - Uma vez ouvi a história de um homem que perdeu todo o corpo, só sobrou a cabeça, mas ele ainda ficou vivo.
- Essa é uma das histórias de super-heróis mais clichês que existem - sacudi os braços em sua direção, mandando o resto da espuma que tinha nas mãos para longe.
- Deselegante - Iddie deu um gritinho, saindo de perto.
- Fique tranquila Dal, alguns dos caras que trabalhavam para ela devem ter cuidado disso - torceu um pouco a boca para algo em sua tela. - Ou foi a Divisão Quimera.
- Não está preocupado com isso? - porque eu estava, um ligeiro desconforto surgindo no meu peito.
- Não é como se fosse a primeira vez que algo assim acontece - Gabriel bocejou dramaticamente, dando de ombros. - Coloquei gente para investigar o caso.
- Checou se Rebeca ainda está viva?
- Dá um tempo, Dal, eu levei um tiro - fechou o notebook, deitando-se no sofá. - Por que você mesma não faz isso? Ela mora aqui perto - sugeriu, virando-se de costas para não continuar o assunto.
Resisti à vontade de arremessar o copinho de plástico que lavava em sua cabeça. Gabriel merecia uma pausa depois de tudo o que fez por mim.
- Não pode me ignorar para sempre - Egor insistiu, invadindo meu campo de visão.
Enxuguei as mãos no pano de prato, indo até meu quarto para vestir algo que não fosse pijama. Meus planos de passar o dia na cama acabavam de ser cancelados.
- Estou ignorando você apenas há uma hora - vesti a mesma saia e sapatos da noite anterior, com preguiça de procurar pelos meus jeans, minha visão embaçada e o cansaço batendo depois de virar a noite. - O assunto que você quer discutir é irrelevante se Primazia ainda estiver viva, certo, Iddie?
- Na verdade - Iddie interrompeu. - Concordo com Egor dessa vez, precisamos conversar.
Torci a boca para Iddie, como ela podia? Normalmente estávamos empenhadas para ignorar as tentativas de "conversa responsável" de Egor.
Não é como se fosse tão importante assim. O que eu faria com os poderes? Ora, Catarina os deu para mim. E se eu quisesse ficar com eles? Quer dizer, eu sei, eu sei, é estúpido, mas talvez... Se eu me esforçasse muito? Se eu pudesse provar que os merecia para mim mesma?
Não é que eu quisesse ter poderes, é só que tanta coisa mudou com eles. O futuro me assustava e a cada dia que passava, enquanto eu treinava e me aproximava mais do meu irmão, me apegava a Iddie e a Egor, e conhecia esse mundo louco de superpoderes, organizações secretas e roupas bregas... A cada dia parecia mais que eu estava em casa. Um lugar onde me encontrei.
Era egoísmo, eu sabia. Porque enquanto eu só não queria abrir mão das boas pessoas que conheci graças a esses poderes, eu sabia que poderia encontrar alguém que faria mais do que eu, que poderia mudar o mundo e ser uma verdadeira benção para as pessoas. Esse alguém não era eu.
- Tudo bem - suspirei rendida, sabendo que não tinha chances contra os dois. - Sobre o que querem conversar?
Saí de casa antes que pudessem falar apenas por despeito.
- Isso é trapaça - Iddie protestou.
- O que é trapaça? Eu não entendi - Egor piscou seus lindos e grandes olhos inocentes.
- Ela veio para a rua porque sabe que é uma forma de adiar a conversa - Iddie cutucou minha bochecha. - Adivinha só, não vamos desistir dessa conversa, eu quero saber o que pretende fazer com a gente.
Parei de andar, franzindo o cenho para a forma como Iddie falou, como se fossem objetos que eu posso usar e jogar fora. Pensei no quanto as coisas mudaram desde o dia em que encontrei duas entidades nos meus ombros. Um sorriso carinhoso se estendeu no meu rosto, porque essas mesmas entidades tinham se tornado minhas melhores amigas.
- Não vou fazer nada - disse o óbvio.
Temi que Egor e Iddie ainda estivessem assustados. A conversa que tive com Egor sobre os portadores antigos voltava a ter minha atenção de vez em quando, pensando nos horrores que os dois teriam passado.
Olho para Egor. Não apenas ele tem a aparência angelical, mas ele também age como um anjo. É ele quem me auxilia a seguir os caminhos que a maioria das pessoas considera como o certo. Como alguém poderia machucar uma coisinha tão inocente quanto Egor? Que consegue entender até mesmo o lado dos vilões, que estende a mão para qualquer um que precise de ajuda e chora toda vez que assiste Titanic.
Iddie era diferente. Ela era agitada, crítica e falava as coisas sabendo que iria magoar as pessoas. Se ela pudesse incendiaria o mundo, enlouqueceria as pessoas com suas sugestões absurdas para problemas simples. Iddie era complexa, ela tinha seus momentos de carinho, pequenos gestos que diziam o quanto se importava. A melhor versão dela estava escondida nos detalhes. E ainda que ela me enchesse a paciência todos os dias com suas piadas ofensivas e sugestões agressivas, eu jamais tocaria um dedo nela com intenção de machucá-la, porque aprendi a adorá-la.
- Não poderia - reafirmei, querendo que tivessem certeza de que eu não era uma ameaça.
Egor e Iddie trocaram olhares estranhos e eu voltei a caminhar, dando a eles algum espaço.
- Quer dizer que não vai mais nos passar para Emilly? - Egor perguntou, um sorriso espertinho no rosto.
Parei de andar mais uma vez.
- Era disso que estavam falando? - perguntei perdida.
- Sobre o que você achou que era? - Iddie franziu o cenho. - Hum... - desviei o olhar. - Nada, foi bobagem, é claro que queriam saber da Emilly, sobre o que mais seria? - soltei uma risada estranha, sabendo que tinha ficado um pouco sentimental demais. - É que Iddie falou como se vocês fossem objetos que estivessem esperando para serem doados.
- É o que somos, não é? - Iddie soltou em tom desgostoso. - Me diga, Dalila, em qual buraco você vai enfiar a gente agora que se livrou da sua arqui-inimiga?
- Não gosto quando você fala assim - mordi o lábio inferior, sem saber como responder. - E... Eu não sei.
No começo tão certo abrir mão desse poder, deixar que outra pessoa controlasse e fizesse um uso melhor dele, alguém que quisesse e pudesse fazer a diferença. Alguém que não falhasse como eu, alguém que fosse melhor, o que, convenhamos, não seria tão difícil de encontrar.
E foi, com tremenda surpresa e honestidade, que constatei que eu queria ser esse alguém. Eu queria continuar com Iddie e Egor por perto; eu queria continuar lutando e evoluindo meus poderes; eu queria sair mais com o meu irmão e com todas as pessoas legais que conheci na Catwalk; eu queria essa responsabilidade.
Porque foi divertido e eu nunca me senti tão bem em minha própria pele, como se eu finalmente tivesse um propósito, onde eu nunca estou sozinha e a vida nunca é tediosa. Era emocionante. E louco. E mágico. E tanto quanto me achava indigna, os poderes foram dados a mim. Então sim, eu queria ficar com eles, eu queria ser digna. No entanto, essa não era uma escolha que dizia somente respeito a mim:
- O que vocês querem? - perguntei a Iddie e Egor.
Voltei a caminhar, esperando que pensassem na resposta. O outono estava acabando. Eu gostava do outono, as ruas ficavam cheias de folhas secas, que eram agradáveis de andar por cima e ouvir o barulho que faziam sob meus pés. Júnior e eu costumávamos fazer torneios de sapateado em cima das folhas secas no quintal da casa do pai dele. Às vezes apenas observávamos o céu, quase sempre nublado, uma imensidão que dança entre o cinza e o branco, nosso clima preferido e uma das poucas coisas que tínhamos em comum.
Cheguei em frente à casa de Rebeca. Um grande retângulo coberto por azulejos azuis. Grades circulavam a casa e um cachorro de pelagem marrom latia sem parar.
Não tinha certeza do que esperava encontrar quando me aproximei da casa. O fato de não terem encontrado o corpo de Primazia poderia tanto significar um desencontro inocente, como também um presságio catastrófico. Eu não estava exatamente torcendo para que a casa de Rebeca estivesse vazia, que seus pais estivessem preocupados e sofrendo o luto pela filha perdida, a filha que eu matei.
Ainda assim, eu não esperava não encontrar nada. Literalmente nada. Na casa dos Teruel era apenas mais um dia normal. Porque Rebeca estava viva. E não viva como um corpo sem cabeça ou um zumbi, mas viva de verdade.
Uma mulher mais velha, mais ou menos da minha altura, vestindo um avental amarelo e secando as mãos em um pano, apareceu na porta para me atender.
- A Rebeca está? - perguntei insegura.
A mulher olhou para dentro, então voltou sua atenção para mim e disse que iria chamar a filha.
- Aquela é a mãe da Primazia? - indaguei estupidamente. - Não faz sentido, porque a mãe da Primazia é a Catarina.
- Da última vez que chequei ambas estavam mortas - Iddie complementou e eu não segurei uma risada, a preocupação se esvaindo por um momento.
Vi Rebeca aparecer na porta. Ela sorriu quando me reconheceu, vindo até mim e abrindo o portão como se nada estivesse fora do lugar. O cachorro dela correu ao meu redor, cheirando meus pés e latindo na direção de Iddie.
- Eles podem sentir a gente - Egor esclareceu.
Rebeca riu um pouco, pegando o cachorro no colo e o levando para dentro de casa.
- Ela não se parece com alguém cuja cara foi atravessada por flechas - Iddie sussurrou para mim.
- Eu sei - sussurrei de volta, sorrindo torto quando Rebeca tornou a aparecer.
Então essa era a sensação de não entender absolutamente nada? Porque eu achava que esse tipo de tortura era reservado apenas para as aulas de exatas.
- Garota da Maçã! - Rebeca saudou alegremente e meu sangue gelou ao ouvir o apelido, um arrepio me subindo pela espinha. - O que veio fazer aqui?
Fiquei em silêncio. Ainda não tinha pensado em um plano. O que fazer quando sua colega de classe aparentemente não é uma supervilã, mas diz coisas de supervilã?
- Diga que você veio ver como ela está depois de tudo que aconteceu na escola - Egor aconselhou.
- Quase uma semana depois? - Iddie zombou. - Apenas se vire e vá embora, você não precisa se justificar, viemos aqui ver se ela estava viva e ela está.
- Garota da Maçã? - Rebeca se aproximou mais de mim, preocupada com meu silêncio ambíguo. - Você está bem?
- Por que me chama assim? - fui direto ao ponto, não evitando o tom acusador.
- Oh - exclamou, surpresa pela minha explosão. - É que eu não sei o seu nome, no dia que Primazia atacou a escola, seu namorado e eu ficamos procurando por você e pela Emy, para eu conseguir te identificar, ele disse que você era a garota que estava usando brincos de maçãs.
Toquei os brincos que estava usando, sem acreditar no que estava ouvindo. Então ela não sabia o meu nome???
- Estudamos juntas há dois anos - me senti ofendida.
- Eu não gosto das pessoas da sala, por isso não conheço todas - Rebeca encolheu os ombros. - Me sinto deslocada, Emy é minha única amiga.
Eu podia me identificar. Talvez eu tenha julgado Rebeca da forma errada? Com certeza sim, porque eu estava crente de que ela era uma superterrorista e agora ela apenas parecia meio babaca. Mas ainda assim, algo nisso tudo não parecia certo, porque se Rebeca não era a Primazia, então quem era?
- Você quer entrar? - a garota apontou para dentro da casa, parecendo feliz em me receber.
- Não, eu... - olhei de um lado para o outro, vendo Iddie e Egor fazendo sinais estranhos e exagerados.
- Vá embora - Iddie insistiu.
- Peça ajuda com o dever de casa - Egor sugeriu.
- Você tem a última lição que a Carla passou? Estou precisando de nota na matéria dela - não era mentira e parecia mais certo seguir Egor do que Iddie nesse momento.
Rebeca assentiu, correndo até a casa e voltando pouco depois com algumas folhas tiradas do seu fichário.
- A metade está certa, tenho certeza.
- Obrigada - sorri para ela, virando-me para ir embora. - Nos vemos quando as aulas voltarem? - perguntei só para ser educada, um cansaço profundo se abatendo sobre mim ao perceber que eu tinha chegado a um beco sem saída e talvez nunca descobrisse quem Primazia era.
- Eu espero que sim - Rebeca balançou a cabeça com empolgação. - Até, Garota da Maçã.
Sorri torto antes de sair, o apelido me dando calafrios, eu só queria voltar para casa e tentar encaixar as peças.
- Isso foi... - comecei.
- Estranho - Iddie completou.
- Intrigante - Egor corrigiu. - Quem era Primazia então?
- Talvez alguém que nem conhecemos - considerei a hipótese. - Oh não! - fiquei escandalizada ao perceber, minha exclamação preocupando Iddie e Egor. - Eu desperdicei muitas lágrimas no banheiro do shopping.
Iddie e Egor soltaram sons indignados pelo susto e eu ri do drama deles.
- Vocês pensaram na pergunta que fiz? - mudei de assunto, antes que Iddie começasse a me provocar sobre minha bola fora com Rebeca.
As entidades trocaram olhares conspiratórios, restando para mim apenas a opção de encará-los, esperando que dissessem o que eu queria ouvir. Mesmo que eu não merecesse. Mesmo que eu não fosse a melhor opção. Por favor...
- Quero ficar com você - foi Egor quem falou primeiro, uma expressão confiante no rosto, tão certo como nunca de sua decisão. - Sempre achei que você era a pessoa certa.
Resisti a vontade de "abraçar" Egor em comemoração enquanto estávamos em uma avenida movimentada.
- E você Iddie? - olhei para os dois lados da rua, esperando uma oportunidade para atravessar.
- Minha opinião importa? Você sempre faz o que quer mesmo - respondeu de forma evasiva, voando para fora do meu campo de visão.
- Iddie - insisti baixinho, virando a cabeça para encará-la.
- Bom, até onde sabemos, Primazia ainda pode estar viva - sentou-se no meu ombro, alongando as palavras de forma preguiçosa. - Acho que ainda vamos passar mais algum tempo juntas.
- Vou considerar isso como você me dizendo que...
Meu mundo parou nesse momento. Dois carros bateram na minha frente. Um acidente. Durou menos de dois segundos e me marcaria a vida inteira. Ambos os carros colidiram, as pessoas gritaram e os veículos foram um para cada lado da calçada. As pessoas ao redor se moveram para ajudar, gritando instruções umas com as outras, para chamarem uma ambulância, os bombeiros ou a polícia. Ajudaram a tirar as pessoas que estavam no carro. Elas pareciam machucadas, assustadas, mortas. E eu... Eu não consegui fazer nada. Fiquei ali parada. E então eu corri.
Corri para longe do cenário macabro, as vozes de Iddie e Egor se misturando às diversas reclamações que recebi por esbarrar nas pessoas. Corri até minhas pernas doerem, pegando o primeiro ônibus que parou ao meu sinal. Eu não conseguia respirar. Como nos primeiros dias, quando tudo era novo e eu estava com medo de tudo. Porque é isso que eu sou, medrosa, covarde, fraca.
Tão rápido quanto veio minha vontade de acreditar que de alguma forma eu poderia ser uma heroína, ela se foi, esmagada pela bruta realidade de que eu não conseguiria fazer isso. Não quando estava na minha frente as marcas de vidas que não pude salvar, acidentes que não pude deter e vilã que não pude parar.
Surtando a cada acontecimento, um ataque de pânico a cada catástrofe e uma crise de ansiedade em cada revelação, eu era uma bagunça sem classificação. Que louco foi me imaginar salvando o mundo e fazendo alguma diferença que me tornasse campeã. Mas não eram assim que as coisas funcionavam. Heróis não matam pessoas, não travam na hora que um acidente de trânsito acontece, sem saber o que fazer, para que lado olhar e torcendo para não serem notados. Não, eu não era uma heroína e esses poderes não me pertenciam.
Tentei controlar minha respiração. Eu deveria ter feito alguma coisa. Qualquer coisa em vez de ficar parada. Deveria ter impedido... O que eu poderia ter feito? O que Emy faria? Emilly teria conseguido evitar? Eu sei que sim.
- Ela não evitou o ataque de Primazia na escola - Egor falou próximo ao meu ouvido. - Você sim.
- Eu disse tudo isso em voz alta? - ri exasperada.
- O que mais você poderia ter feito? Acidentes acontecem o tempo todo, acostume-se - Iddie teve a intenção de me consolar. Não funcionou.
Olhei para as entidades. Ri depreciativa. Percebi que eu era uma bagunça. Não conseguia nem mesmo impedir um acidente de acontecer. Eu deveria ter previsto. Deveria ter impedido. Deveria ser melhor. Iddie e Egor não mereciam isso. Eu queria ser o que eles mereciam. Queria ficar com esse poder e usá-lo para fazer o bem. Para ser uma heroína. Digna. Mas eu tinha medo. Tanto medo.
- Eu já estou farto disso - Egor gritou, assustando a mim e a Iddie. - Não pode mudar de ideia a cada obstáculo que aparece, você quer essa vida? Aprenda a lidar com a perda.
Olhei para ele sem respostas, surpresa com seu tom e o modo como Egor parecia chateado.
- Egor - até Iddie chamou sua atenção.
Egor engoliu em seco, afastando-se um pouco de nós.
- Desculpa, eu me exaltei - falou baixinho, corando.
Relaxei as costas no assento, sabendo que precisava refletir sobre o que aconteceu.
- É incrível como você nunca consegue salvar ninguém - foram as últimas palavras que Primazia me disse.
A frase que me fez estremecer de raiva, evocar uma energia destrutiva e destruir o sorriso fixo do seu rosto. A verdade dura e que eu não queria encarar, era que Primazia estava certa. Sua frase se repetiu na minha cabeça, o cansaço nublou minha razão e eu só quis procurar o conforto de um abraço.
Não me dei conta de qual ônibus havia pegado ou para onde meus pés estavam me levando até chegar à casa de Júnior. Eu estava decidida a passar os poderes para Emilly. Ainda assim, foi Júnior quem eu fui procurar primeiro, em busca de algum conforto, talvez procurando alguém que me fizesse mudar de ideia ou alguém que eu pudesse controlar, ao contrário de toda a minha vida, escapando das minhas mãos como areia.
Eu sabia que se eu fosse até meu irmão ele me convenceria a desistir dessa ideia. Talvez se eu tivesse sido sincera com Gabriel desde o início as coisas tivessem sido diferentes. Se desde o primeiro dia eu falasse com ele que não ficaria com os poderes, que eles não me pertenciam, talvez aí, ao chegar nesse momento, onde eu entro em pânico e decido passar meus poderes para Emilly, eu tivesse sido recebida com palavras consoladoras, em vez do nítido e claro desgosto de Júnior ao me ver parada em sua porta.
Eu fui até Júnior, porque estava com medo de decepcionar Gabriel se contasse a ele que não era boa o suficiente, que não era a pessoa certa para ajudar nos "negócios da família", só uma civil confiante demais e com PTSD recém-adquirido.
E mesmo percebendo que eu era um desastre, que acabará de deixar um acidente acontecer e pessoas morrerem, mesmo ao lembrar de todos os erros que cometi ao longo da minha jornada, eu ainda tinha esperanças de que Júnior pudesse me dizer alguma coisa... Qualquer coisa que me convencesse do contrário, como nos filmes, quando os personagens mais alheios são aqueles com os melhores conselhos.
Bati na porta apressada, olhando de forma paranoica para o jardim. Parecia que Primazia sairia dos arbustos, atirando como a louca que era e sorrindo com minha ingenuidade em achar que ela estava morta.
- Dal? O que está fazendo aqui? - Júnior me analisou de cima a baixo, procurando por algo que mostrasse o que poderia estar errado, sem muita paciência ou delicadeza, frio como nunca o vi antes, seu tom ríspido, sua postura defensiva e seus pensamentos arredios.
- Foi tão assustador, houve um acidente e eu... - me joguei em seus braços, enterrando a cabeça em seu ombro.
Perfume de marca e tinta. Casa.
- O que aconteceu? - passou a mão pelas minhas costas sem jeito, como se não soubesse onde mais colocá-las. - Dalila, o que aconteceu? - repetiu quando eu não respondi.
Encolhi os ombros, eu não podia contar a história toda. Eu contaria do acidente e Júnior me perguntaria por que tanta culpa com relação a algo que eu não poderia impedir; só que eu podia impedir, eu deveria poder, porque ganhei esses poderes para salvar as pessoas. E Júnior saberia o que aconteceu. Júnior saberia que Primazia aconteceu.
Júnior suspirou, segurou meus ombros e me afastou.
"O que está errado? O que ela não está me contando? Quando a Dal passou a ser uma estranha? Olha! Uma borboleta. O que eu estou fazendo de errado?"
- Você não está fazendo nada errado - me apressei para me desculpar.
Júnior franziu o cenho, passando a mão pelos cabelos.
- Você está fazendo aquilo de novo - resmungou, seu semblante se contorcendo em uma careta angustiada.
- Fazendo o quê? - fingi inocência.
- Não pode vir até mim, dizer o que eu quero que diga e achar que vai ficar tudo bem - disse um pouco mais alto.
- Eu não...
- Sim, você faz! Ou pelo menos começou a fazer - bufou, desviando o olhar para longe, dando um longo e reprovador suspiro. - Eu sou para você tão importante quanto um daqueles pets virtuais, que você eventualmente lembra que existe e que precisa ser alimentado.
- Júnior - usei meu tom reprovador, não era bem assim...
- Não! - balançou a cabeça com veemência. - Saia da minha mente, Dal! Não sei o que você anda fazendo, não sei dos seus problemas ou o que está acontecendo, porque você não me conta, mas não pode continuar me manipulando para "me poupar" ou o que for, isso foi longe demais.
Senti os pensamentos Júnior se distanciarem. Eu não tinha mais seu consentimento.
Egor explicou que a mente de alguém pode ser comparada a uma casa cheia de pessoas. Está sempre em movimento, dividida em andares e andares são divididos em cômodos e nos cômodos tem móveis, alguns pensamentos inconvenientes sendo empurrados para baixo do tapete ou ganhando um lugar de destaque na mobília central. Quando as pessoas me dão permissão para ler a mente delas, é como se deixassem a porta da frente aberta, permitindo que eu vague por seus cômodos e xerete suas gavetas. E quando alguém, de repente, me nega o acesso, é como se eu estivesse sendo expulsa. As portas trancadas e janelas fechadas. Júnior me expulsou da sua mente.
- Eu não quero parecer egoísta, como se estivesse me afastando no momento em que você mais precisa, mas - ele estava agitado, falando tudo que vinha segurando por todo esse tempo. - Eu não posso mais fazer isso Dal - sorriu fraco, apagado. - Você realmente me ama ou eu sou só a pessoa que você procura quando não tem saída?
- Você não é só isso pra mim - neguei rapidamente.
- Prove, me conte o que está acontecendo - ergueu a cabeça, seus olhos encontrando os meus. - Sem mentiras, eu sei que o Lúcio não está doente, Gabriel me contou.
- Por que andou falando com o meu irmão? - cruzei os braços, foi minha vez de ficar na defensiva.
- Porque você desaparece! Não me diz mais para onde vai ou que está fazendo, simplesmente para de me responder e volta dias depois como se nada tivesse acontecido.
Gaguejei para responder. Como poderia explicar? Me desculpar? Júnior estava certo afinal. Nosso relacionamento vinha sendo posto em segundo plano e eu não podia justificar. Júnior não merecia passar por isso.
- Eu sei que Primazia está mexendo com muita gente, você tem estado estranha desde aquele primeiro acidente no metrô - soltou um sorriso trêmulo, compreensivo, embora magoado. - Você pode confiar em mim, Raio de Lua.
- Eu confio! - afirmei, balançando as mãos como se pudesse demonstrar o quanto.
- Confia tanto que não pode nem me contar quem está te machucando.
- Júnior... Olhos cor de uva... - murmurei, de repente parecia ter sido uma péssima ideia ter ido até ali.
- É melhor darmos um tempo, Raio de Lua - sorriu triste, apertando a maçaneta da porta.
- Está terminando comigo? - senti vontade de chorar, de gritar minhas frustrações para os insetos do jardim.
- Eu... - respirou fundo, hesitando. - Estou.
Júnior esperou que eu falasse alguma coisa. Qualquer coisa.
- Diga que o ama - Egor instruiu.
- Vá logo embora - Iddie declarou.
Abaixei a cabeça, me virei e fui embora. Júnior estava certo em terminar comigo, não podia continuar mentindo para ele. Tudo porque eu estava com medo.
Eu quis falar, quis de verdade. Quis entrar na casa de Júnior, sentar-me ao seu lado e contar tudo a ele, sem poupar detalhes, sem encurtar a história e, principalmente, sem mentiras. Mas como poderia? Quando as palavras travaram na minha garganta. E não tem sido sempre assim? Eu fugindo das conversas, dos encontros e das lutas, evitando a todo custo olhar para dentro de mim e apenas me permitir ser feliz. Com as escolhas que fiz, com os acertos que tive e os amigos que fiz. Eu estava feliz em ser a Jovem-Alma. Mas a insegurança sempre estava comigo. Sempre com medo, sempre fugindo. Dalila Silvestre, uma piada de filha, irmã, namorada, amiga e heroína.
Tudo isso era culpa da Primazia. Estragando meus relacionamentos, meus objetivos, minha vida. Ela destruiu tudo. Era culpa da Primazia que tantas pessoas foram machucadas. Era culpa da Catarina por me deixar essa responsabilidade. Era minha culpa por levar isso longe demais. Ergui a cabeça e segui na direção do metrô. Já tinha passado da hora de resolver meus problemas.
Porque não importava que acreditassem em mim. Eu não acreditava. E isso é tudo que há para saber.
🍎🍎🍎
Emilly ainda estava hospedada em seu hotel na avenida Paulista, gravando as últimas cenas da novela das oito. Os dias estavam sendo corridos, mas Emy, sendo a gentil amiga que era, sempre estava disposta a me receber.
- Você disse que não faria isso! - Egor voou ao meu redor, confundindo minha atenção na hora de apertar o botão do elevador. - Disse que ficaria com a gente.
Não respondi, encostada na parede do elevador, encarando as luzes do teto. Controlando a respiração. Era só uma questão de tempo e tudo acabaria. Fechei os olhos para não ter que ouvir Egor, a forma como seu tom soava quebrou algo dentro de mim.
- Você prometeu que não machucaria a gente, prometeu que faria a coisa certa - Egor continuou a falar, batendo as asas e indo de um lado ao outro.
Senti Iddie suspirar do seu lugar no meu ombro, sem se pronunciar, apenas aceitando a minha decisão.
- Não acha que Gabriel merece opinar sobre isso? - o anjo balançou as mãos com irritação.
- Estou fazendo a coisa certa - reafirmei o que vinha pensando desde que saí a casa do Júnior. - Além disso, você e Iddie concordaram em serem da Emilly.
Saí do elevador sem mais palavras, rapidamente chegando até o quarto de Emilly, que abriu a porta com olhos cansados. - Dalila - me cumprimentou com um aceno de cabeça vago, minha presença já tendo sido anunciada na portaria. - O que faz aqui?
- Preciso te contar uma coisa.
Emy franziu o cenho, abrindo espaço para que eu entrasse. O quarto parecia o mesmo e de alguma forma louca me fez sentir mais segura.
- É sobre Primazia? - falou sem seu entusiasmo habitual, pegando uma tigela cheia de pimentas dedo-de-moça no balcão e indo na direção da sacada.
- Mais ou menos - deixei as folhas do dever da Rebeca em cima de uma cadeira e a segui até a varanda.
Emy se inclinou um pouco sobre o parapeito, observando o movimento da sempre agitada Avenida Paulista, enquanto comia as pimentas como se fossem cerejas.
- Você está mesmo comendo pimentas? - arqueei uma sobrancelha, também me escorando no parapeito.
Emilly olhou a tigela reflexivamente, como se só então tivesse se dado conta do que estava comendo.
- Faz parte da minha dieta.
- Está tudo bem? - estranhei seu comportamento.
- O que você veio me falar? - olhou-me com curiosidade.
Pisquei atônita, sem saber como dizer isso. Eu não quis contar a Júnior porque estava com medo de que ele não me apoiasse. Mas se Emilly me tiraria dessa vida, ela merecia saber todos os contras que existem antes de aceitar.
A forma como você às vezes pode acabar sabendo demais dos pensamentos de alguém e como a sua noção de privacidade pode ficar um pouco distorcida por isso e pelo fato de que Iddie e Egor estão o tempo todo por perto. Como parece que ver sangue e sentir dor acontece de maneira corriqueira e você passa a ter um alvo nas suas costas, porque todo mundo quer esse poder. De como é assustador e eu não sei por que alguém desejaria essa vida, mas algumas pessoas querem e eu não a mereço.
- Certo, hum... - vi Egor gesticulando para que eu não fizesse nada, Iddie ainda quieta no meu ombro.
Respirei fundo. Se eu fosse fazer isso seria agora. Eu contaria tudo a Emilly, passaria meus poderes para ela e iria embora sem olhar para trás. Iria reatar meu relacionamento com Júnior, fingiria que Gabriel ficaria bem com isso e esqueceria que o corpo de Primazia estava perdido.
- Isso pode parecer loucura - hesitei por um momento.
Me lembrei de como Iddie gritou comigo quando Catarina morreu. Nesse dia eu prometi que depositaria ela e Egor em boas mãos e eu não conhecia ninguém mais apropriada do que Emilly. Estava fazendo a coisa certa.
Foi por isso que contei tudo a ela. O incidente com Catarina no metrô. A aparição da Iddie e do Egor. O encontro com Catarina. A morte de Catarina. O acordo com Iddie para passar os poderes para alguém mais apropriado depois de derrotarmos Primazia. O encontro com o Bola Branca. O treinamento. A investigação sobre Aline, a filha perdida da Catarina. A luta no Brás. A luta na escola. A suspeita de Rebeca. E a luta final no prédio em frente à boate Tentação.
Emilly piscou bem devagar, seus olhos castanhos mais arregalados do que jamais os tinha visto antes, parecendo encantada com tudo que contei, mesmo eu tendo dado bastante ênfase nas partes ruins.
- Isso é mesmo verdade, Lila? Você pensou em mim?
Seus lábios se abriram em um sorriso inocente e eu soube que tinha feito a escolha certa. Emilly me abraçou apertado, a tigela de pimentas esquecidas no parapeito. Emy agradeceu repetidas vezes por pensar nela entre todas as pessoas, sempre um raio de sol alegre.
- É claro que pensei em você - ri divertida, apertando mais o abraço, feliz por ela estar feliz. - Quem seria mais apropriada que você? Emy, você é a pessoa mais incrível e gentil, Catarina ficaria orgulhosa da minha escolha.
Ela franziu o cenho, afastando-se um pouco.
- Eu não sei... - enrolou um dedo no cabelo. - Afinal, ela escolheu você no metrô, não eu.
Encolhi os ombros, sem saber como responder.
- O importante é que eu estou escolhendo você - sorri amigável, queria que Emilly visse como ela era a pessoa certa. - Eu não levo muito jeito para essa coisa de heroína.
- Não leva mesmo - riu baixinho, apenas para arregalar os olhos em seguida. - Desculpa, desculpa.
- Está tudo bem - bati levemente em seu ombro.
- Então, o que eu preciso fazer? - pulou no mesmo lugar.
- Dal, não faça isso - Egor pediu em tom choroso.
- Vocês vão ficar bem - passei o dedo em sua cabeça. - Emy vai cuidar bem de vocês.
- Sim, eu vou cuidar muito bem - Emy sacudiu a cabeça, confirmando para si mesma. - Até melhor que a Lila, comigo vocês nunca ficarão entediados.
- Sim - ri nervosa, virando a cabeça para olhar para Iddie. - Apenas tenha paciência e não os machuque.
- Eu não faria isso - Emilly pareceu ofendida, levantando as mãos em redenção.
- Iddie pode ser um pouco difícil de lidar no começo, mas ela é ótima! Ela gosta de dormir dentro das xícaras, então cheque antes de colocar qualquer líquido em uma - me lembrei de quando quase derramei café quente nela. - E ela gosta de tomar sol de manhã, basta deixar a janela aberta - não precisei me esforçar para instruir Emilly, as memórias dos dias que passamos juntos vindo à memória facilmente. - E não use perfumes muito doces, ela não gosta.
- Eu entendi, eu entendi - Emy disse apressada, ainda dando pulinhos animados. - Eu vou ser uma heroína - soltou um gritinho feliz com isso.
- Egor é mais carinhoso, não coloque filmes de terror para ele assistir e não deixe o armário aberto durante a noite - sorri afetuosa com a memória de um Egor assustado me acordando tarde da noite para fechar as portas do guarda-roupa. - Ele gosta de falar sobre flores, se puder comprar um ou dois livros sobre jardinagem seria ótimo.
- Eu já entendi, Lila - Emy choramingou impaciente. - Você vai me passar esses poderes ou não? Isso não faz bem para minha ansiedade.
- Preciso de uma maçã - me apressei em informar.
Emilly correu para dentro do quarto, me fazendo rir, não é sempre que se vê Emilly Diniz tropeçando pelas paredes.
- Dal - Egor chamou.
- Eu vou sentir sua falta, anjinho - toquei seu rosto levemente com o indicador. - A sua também - falei para Iddie, mas não arrisquei tocá-la, algo em seu silêncio me dizendo que ela arrancaria meu dedo fora se tentasse.
- Eu tenho uma maçã! - Emilly voltou segundos depois, segurando perto do meu rosto uma maçã, grande e muito vermelha. - Agora eu preciso salvar sua vida, não é?
- Talvez? - peguei a fruta de suas mãos, girando-a como se procurasse alguma mancha em sua superfície. - Como você também salvou Catarina, achamos que não precisa fa...
Emilly me empurrou para fora da sacada antes que eu pudesse terminar a frase. Senti a gravidade me puxar para trás, minha coluna se dobrando, metade do meu corpo ficando em cima do parapeito que cavava meu quadril de forma desconfortável. A única coisa que me impediu de cair foi Emilly, segurando-me pela blusa que eu usava, sua mão firme ao redor da minha gola.
Foi assustador. Mesmo que eu já tivesse me jogado de um prédio e lutado em um, mesmo que estivesse treinando para me manter calma em situações assim, mesmo que a dor da posição não fosse nada em comparação com tudo que vinha sentindo nos últimos meses. Foi assustador. Mas mesmo com medo, eu não gritei, chorei ou me desesperei.
Agarrei o fino braço de Emilly, largando a maçã que segurava, vendo-a rolar de volta para dentro do quarto, com certeza agora ela tinha uma mancha.
- Emilly - gritei com o fôlego que tinha.
Emilly também não parecia estar tendo a reação habitual de alguém que está tentando assassinar sua amiga, ela não parecia feliz ou brava, apenas muito séria, uma ruga se formando na ponte do seu nariz, como se estivesse vivendo um dilema muito difícil, presa entre me jogar por 12 andares ou me trazer de volta para o quarto. Eu sabia que ela queria os poderes, mas não era exatamente isso que eu tinha em mente quando disse "você precisa salvar minha vida", não é salvar se foi você quem causou tudo!
- Dal! - Iddie gritou também, flutuando perto do rosto de Emilly, soando o mais desesperada que eu já a tinha visto, seu tom cheio de urgência.
Emilly balançou a mão livre, acertando Iddie, que foi parar do outro lado da sacada com o impulso, um gritinho saindo de seus lábios. Em seguida Emily puxou meu corpo de volta para dentro. Minha cabeça girou com o movimento, minha vista estava embaçada pelo susto e o cansaço de tantas horas sem dormir, meu corpo cambaleou pela sacada e eu tive dificuldade de processar o que estava acontecendo.
Franzi o cenho quando vi Emilly se agachar no chão e pegar a maçã de um canto qualquer, dando uma grande mordida na fruta. E depois outra. E outra. E outra. E eu me perguntei se era isso mesmo que eu estava vendo, ela estava comendo, enquanto eu mal conseguia me manter de pé?
- Não está funcionando! Por que não está funcionando? - Emilly gritou ao se levantar, jogando a maçã no chão e vindo até mim de uma forma assustadora que uma atriz teen que faz vídeo para criança realmente não deveria ser capaz. - Você me escolheu! Eu salvei você de cair! Por que não está funcionando? - acusou, um dedo apontado para o meu peito, seu semblante marcado com raiva, seus olhos cheios de sentimentos confusos e pouco lisonjeiros.
- Eu... - gaguejei, dando alguns passos para trás, chegando de volta ao parapeito. - Eu não sei, demorou um pouco comigo também, talvez você tenha...
- Para de mentir - Emilly gritou histericamente, parecendo triste, mas com um sorriso no rosto? Algo feio e cheio de dentes, que me fez preferir o parapeito a ficar perto dela.
Olhei na direção de Iddie e Egor em busca de respostas, confusa sobre o que poderia estar errado.
- Nada vai acontecer, ela não é digna - Egor declarou, simples assim.
Emilly olhou para onde eu olhava, virando a cabeça para mim e então para onde julgava estar as entidades.
- O quê? O que eles disseram? - exigiu respostas.
Eu não sabia o que dizer. Olhei para Emilly de novo, pela primeira vez enxergando mais do que a garota perfeita que por tanto tempo admirei. Ela tinha um sorriso trêmulo no rosto; a testa enrugada em uma careta raivosa; os olhos loucos, irados. Senti um pouco de medo. Estava encurralada. E antes que eu pudesse me defender ou atacar, antes que eu pudesse completar meu pensamento de que já havia visto essa mesma expressão em uma certa supervilã, Emilly não hesitou em pegar aquela tigela de pimentas e quebrá-la na minha cabeça.
21 de maio de 2017
É engraçado como podemos estar certos de algo em um momento e completamente errados no outro.
A primeira coisa que procurei quando abri os olhos não foi saber onde eu estava ou para onde Emilly tinha ido, eu procurei por Iddie e Egor. Eles eram minha responsabilidade. Meus amigos.
Encontrei os dois sentados na ponta dos meus joelhos, eles conversavam baixinho sobre algo, como se tivessem medo de serem ouvidos. Depois eu me localizei. Ainda estava no hotel, presa em uma cadeira, minhas mãos estavam amarradas atrás das costas por cordas grossas e ásperas, assim como meus pés. A cadeira estava posicionada ao lado da porta do banheiro, de frente para a cama arrumada do quarto de Emilly.
Emilly... O que foi que aconteceu?
- Vocês estão bem? - perguntei às minhas entidades.
Eles foram rápidos em virar os pescoços para me olharem, seus rostos assumindo uma expressão mais serena, voando para ficarem na altura dos meus olhos.
- Dal - Egor exclamou, parecendo aliviado por me ver acordar. Estranho.
- Nunca mais faça algo assim - Iddie brigou comigo, seus olhos brilhando em amarelo selvagem.
- Vocês estão bem? - insisti em saber.
Eles trocaram olhares estranhos, preocupados, tensos. Mas não tiveram tempo de responder.
- Você acordou! - Emilly saiu do banheiro tão sorridente como sempre, impedindo Iddie e Egor de me darem uma explicação sobre o que diabos estava acontecendo. - Como foi o sono, Lila? - inclinou-se em minha direção, levantando minha cabeça pelo queixo. - Ou você prefere que eu a chame de Garota da Maçã?
Arregalei os olhos. Todos os acontecimentos voltando a mim. Emilly. O parapeito da sacada. A maçã. A tigela de pimentas. O sorriso. Era ela?
Observei Emilly caminhar pelo quarto, vestindo apenas um colante cor-de-rosa, o rosto pintado com maquiagem dourada; exibindo olhos castanhos escuros e longos cabelos loiros, presos em um coque trançado. Me senti terrível. Como eu não percebi antes que era ela? Aplique de cabelo, lentes de contato e maquiagem. A personalidade, os trejeitos e o maldito sorriso. Tudo estava lá. Esse tempo todo foi Emilly.
Não fazia sentido que tanta coisa tivesse passado despercebido. Não podia ser, podia? Emilly era boa e gentil, eu era amiga dela! Nós viramos a noite conversando, trocando confidências e compartilhando sonhos. Eu estava disposta a dar Iddie e Egor para ela! Eu admirava Emilly, como um exemplo de garota que eu nunca poderia ser, a legítima herdeira de um poder que eu não merecia.
Foi tudo falso. Eu me sentia traída ao saber com quem estava lidando esse tempo todos, todas as mentiras, os sorrisos tolos jogados ao vento e suas palavras doces sem significado. Emilly brincou comigo e eu caí em cada pegadinha, apegada a ideia de pela primeira vez na vida ter uma amiga de verdade, fascinada por estar perto de alguém tão brilhante quanto Emilly Diniz.
- Acho bom não ter tocado um dedo neles - grunhi com irritação, tentando libertar minhas mãos das cordas, embora o movimento só parecesse piorar a cãibra que estava sentindo.
Emilly me olhou com curiosidade, estudando meu rosto com tanta atenção que me vi obrigada a desviar o olhar.
- Não se preocupe, Lila, eu não me envolvo com seres inferiores - não disfarçou o desgosto em sua voz. - Mas posso ter acertado a Iddie uma ou duas vezes, ela não parou de arremessar coisas na minha direção - contou distraída, afastando-se de mim e indo até sua penteadeira para passar delineador em um dos olhos. - Só parou quando ameacei começar a arrancar os seus dentes.
- Você é doente - olhei de relance para Iddie para ter certeza de que ela estava bem
Primazia riu e o som me causou calafrios, trazendo de volta memórias de todos que ela machucou.
- Até dois dias atrás você parecia me achar apropriada para cuidar dos seus bichinhos.
- Dois dias? - corri os olhos pelo quarto, a procura de algo que pudesse me mostrar a data. - Eu passei todo esse tempo desmaiada? - perguntei em um sussurro temeroso.
- Eu me certifiquei de que passasse - um sorriso perverso rasgou seu rosto, me fazendo engolir em seco, Emilly ser Primazia era... Eu não sei. Doeu. - Você ficaria surpresa com o quão louca a cidade ficou nesses últimos dias.
- O que você fez? - acusei, exigi uma resposta!
- Eu acho que você não vai ver o seu pai tão cedo, Lila - a vilã cantarolou, entrando no banheiro em seguida.
- O quê? O que você fez? Primazia! - me remexi na cadeira, tentando acompanhar seus movimentos, achar alguma dica do que ela pudesse ter feito.
Ela não faria, não é? Meu pai não tinha nada a ver com essa história, ele não fez nada. Eu não fiz nada, exceto por estar no lugar errado na hora errada. Ela não tinha esse direito. Por favor... Não.
- Sinto muito, Dal, nós tentamos impedir, mas... - Egor tentou soar reconfortante, conseguindo piorar o meu estado.
- O que ela fez? - perguntei de novo, dessa vez para as entidades, cobrando respostas, mas Iddie apenas apertou a mão de Egor, como se tentasse consolá-lo e me lançou um olhar confuso, algo como pena ou pura indiferença.
- Eu não me preocuparia muito com isso se fosse você - Emilly voltou a falar quando saiu do banheiro, dessa vez vestindo a parte de baixo da sua armadura. - Seu irmão teve mais sorte, eu quase o peguei.
- Eu não entendo - mordi o lábio, segurando as lágrimas. - Por quê? - foi a pergunta que eu fiz, sem entender por que Emilly era tão má, ela queria tanto esses poderes que estava disposta a tirar a minha vida por eles? Que pergunta. É claro que sim.
- Não, não, Lila, não chore - Emilly pegou um lenço de papel, se aproximando para enxugar algumas lágrimas que escaparam, o fato dela estar tão próxima do meu rosto e eu não poder me esquivar me deu arrepios, uma sensação incômoda de profunda impotência se apoderou de mim. - Vamos, eu ainda tenho algum tempo antes de começar o show, você pode me perguntar o que quiser.
- Show? - afastei minha cabeça de suas mãos, soltando um grunhido quando Emilly agarrou meu queixo com força o suficiente para deixar marcas e limpou minhas lágrimas.
Emilly sorriu de lado, indo se sentar na ponta da cama, focando sua atenção em calçar suas botas.
- Paulista, a Times Square brasileira! É o lugar perfeito para continuar meus ataques - falou como se fosse óbvio.
- Por que você está fazendo isso? - chorei, me sentindo patética com as lágrimas e o desespero na minha cara.
Emilly considerou a pergunta, fechando calmamente o zíper da bota. Depois ela apoiou os cotovelos nos joelhos, descansou a cabeça na palma e respondeu calmamente:
- Porque eu posso e porque eu quero.
Meus olhos se demoraram em Emilly e em seu tom frio, profundamente apático, como se realmente não se importasse com nada e nem ninguém.
- Como não percebi o quão egocêntrica você era? - ri da situação, cansada até para sentir medo ou raiva, sem acreditar no que estava vivendo, como uma ironia do destino ou uma piada cruel da vida. - Não pensa em como as pessoas estão se sentindo? Em quantas famílias você destruiu?
- Eu não posso responder pelos outros, Lila.
- Para de me chamar assim - gritei dessa vez, me contorcendo para tentar soltar as cordas nos meus pulsos.
- Prefere que eu te chame de Garota da Maçã?
- Como você me descobriu? - tentei encaixar as peças, ver o que eu tinha perdido durante todo esse tempo.
- Dalila e a Garota da Maçã são as únicas pessoas que usam ridículos brincos de maçã.
Suspirei. De novo os brincos?
- Ridículos? Você disse que eram bonitos - me irritei com isso, além de terrorista, Primazia também era mentirosa?
Emilly arqueou uma sobrancelha, um sorriso presunçoso surgindo nos lábios rosados.
- Eu não tenho raiva de você, Dalila - resolveu falar sério, sua expressão se suavizou e seus olhos capturaram os meus com interesse. - Eu realmente não pretendia te matar, eu não tocaria em um único fio de cabelo oleoso seu.
- Ela falou no passado - Iddie se desesperou, gritando pelo quarto e chacoalhando os braços. - Ela falou no passado!
- É só que eu odeio o fato dela ter escolhido você - seu rosto enrugou-se, como quando vemos uma ferida aberta ou tocamos em algo gosmento. - Catarina era a minha mãe! Por que tinha que ser você e não eu? Mesmo quando eu causei aquele acidente no metrô, mesmo quando fui eu a salvar a vida dela, ela ainda escolheu você!
- O acidente? - algo clicou em mim.
Mas é claro. Primazia queria os poderes. Primazia, Emilly, Aline, Alice... Que seja. Desde o começo. Foi ela quem empurrou Catarina nos trilhos? Esperando ganhar algo em troca arquitetando o caos. Ela só não esperava que uma idiota qualquer pulasse neles.
- Você sabia que eu tinha herdado os poderes desde o começo? - perguntei com a voz trêmula.
- Não, mas eu cheguei a suspeitar, por que acha que eu fiz amizade com você? - foi até o frigobar e pegou uma garrafa de vinho. - Eu não imaginei que ela escolheria alguém como você, então eu não fiquei tão em cima assim.
Fiquei em silêncio, observando Emilly encher uma taça até a boca e trazê-la de volta à cama. Alguém como eu.
- Você não tem dezesseis anos - afirmei o óbvio, tudo que sabia antes se misturando, enquanto eu tentava separar o que era mentira e o que é verdade.
Emilly soltou uma risadinha.
- Eu posso não ter herdado um poder da minha mãe, mas meu pai me passou algo decente - bebericou o vinho como quem tem todo tempo do mundo antes de começar um massacre. - Eu sou imortal, o fator de cura e o envelhecimento lento fazem parte do pacote.
Olhei feio para Iddie e Egor. Teria ajudado saber disso antes de ficar me culpando por supostamente ter matado ela e largado seu corpo no telhado de um prédio abandonado.
- Não sabíamos - Iddie balançou as mãos na defensiva.
- É - Egor concordou baixinho, analisando Primazia como se tivesse descoberto. - Ela fugiu antes que Catarina descobrisse sobre isso.
Me poupei de ter um ataque de pânico na frente da, como diria meu irmão, maluca. Precisava pensar em uma forma de escapar das amarras e impedir o ataque. Não havia tempo para falhas ou para dar atenção ao aperto no meu peito, a respiração dificultada e os pensamentos acelerados. Eu precisava fazer alguma coisa. Rápido.
E eu sabia que a pessoa certa para me ajudar seria Bola Branca. Se passaram dois dias e eu estava desaparecida, conhecendo meu irmão, ele já deveria ter alguma ideia do que estava acontecendo. Respirei fundo. Precisava passar minha localização para o Gabriel de alguma forma e tentar adiar o novo ataque de Emilly o máximo que pudesse.
"Hotel. Paulista. Emilly."
Foram as três palavras que entoei como um mantra, sem ter qualquer indicação de que estavam chegando até Gabriel. Talvez estivessem. E, se sim, ele ficaria muito irritado por ter a mensagem repetida tantas vezes em sua cabeça. Sorri pequeno com o pensamento, abaixando a cabeça para que Emilly não presumisse nada. Também precisava adiar o ataque e, de acordo com a pesquisa que fiz, com base em todos os desenhos animados e filmes que já assisti, só existe um jeito de se enrolar um supervilão.
- Eu tenho direito ao seu monólogo de vilã? - tentei soar mais confiante do que realmente me sentia, minha voz tremendo com lágrimas e soluços.
Sabia que Emilly não perderia a chance de falar mais sobre ela mesma, contando sua origem triste e os motivos que levaram ela a essa vida. Tão egocêntrica, praticamente podia ouvir Iddie bufando com o ridículo da situação.
- Bom - sorriu timidamente. -, se você quer tanto saber... "Hotel. Paulista. Emilly."
- Eu sempre quis ser uma super-heroína - estufou o peito orgulhosamente. - Cresci vendo Catarina e meu pai sendo heróis e achei que poderia ser como eles quando crescesse.
- Seu pai era um supervilão - lembrei das filmagens que vi sobre Akmé e as comparei com todas as reações que vi as pessoas terem quando Primazia chegava aos lugares. Idênticos. Vilões cruéis e sem qualquer empatia.
- Ele foi herói enquanto estava com a minha mãe -defendeu-se como se tivesse recebido uma ofensa grave.
- Você se parece com ele então.
Iddie e Egor buscaram respostas com o olhar, tentando entender o que eu estava fazendo. Encolhi o ombro em sinal de desculpas, em breve eles saberiam, embora eu mesma não tinha certeza do que eu estava fazendo.
- Eu sei! Meu pai e eu temos a mesma cor de olhos - ela piscou os olhos algumas vezes. - Ainda não sabíamos que eu tinha herdado a imortalidade dele, não é como se fossem tentar me matar para saberem - riu com fingido entusiasmo, como costumava fazer nas entrevistas para demonstrar empolgação. - Meu pai foi embora quando viu que Catarina era uma vaca difícil de conviver...
- Iddie - chamei sua atenção, antes que ela quebrasse a taça de vinho na cabeça de Emilly.
Primazia sorriu como se soubesse o que estava acontecendo. - Ela não mudou nada - comentou, checando as unhas pintadas de vermelho. - Enfim, passei a infância com Catarina, vendo-a falando com coisas que só ela via e criando armas e escudos do nada, não foi tão difícil sonhar que um dia seria eu fazendo essas coisas.
- É mesmo? - tentei parecer interessada. Eu estava apavorada. Eu não podia ficar apavorada. Controle-se, Dalila. - Sim, sim - Emilly exclamou, balançando a taça e derramando gotículas de vinho nos lençóis brancos. - Em dois mil e três, Catarina decidiu se aposentar da vida de Donzela Vermelha, disse que tinha passado da idade de ser chamada de donzela.
Sorri fraquinho, parecia algo que Catarina diria.
"Hotel. Paulista. Emilly."
- Eu já estava com dezenove anos na época, então eu decidi que estava pronta para herdar os malditos poderes - virou o resto do vinho, algumas gotas escapando e escorrendo pelo queixo. - Foi assim que começaram os testes surpresas, Catarina continuava se colocando em perigo de formas aleatórias, esperando que eu a salvasse - levantou-se da cama, entrando no banheiro. - E eu nunca passei, nunca funcionou! Ela disse que eu era egoísta demais, que eu não era digna ou outra coisa assim - soltou uma risada estrangulada. - Como pode eu não ser digna, mas você ser?
- Eu não consigo te ouvir - gritei de volta.
- O importante é que - Emilly voltou a aparecer, vestindo o restante da armadura. - Meu pai me ensinou que a vida é uma peça de teatro ruim - inclinou-se, ficando cara a cara comigo, sua respiração caindo na minha bochecha, por onde lágrimas ainda escorriam. - E nem sempre conseguimos o papel que queremos - finalizou colocando sua máscara.
Me desesperei quando percebi que Emilly estava se arrumando para sair.
"Hotel. Paulista. Emilly."
- E o que aconteceu? Você decidiu ser uma vilã só por isso? Com a tecnologia que você tem poderia estar salvando vidas, nem precisa dos meus poderes pra isso... Digo, dos poderes de Catarina - incentivei seu discurso, fale mais, fale mais, implorei dentro da minha cabeça.
- Eu aceitei o papel que Catarina determinou para mim, estou sendo a vilã - colocou uma mala de viagem em cima da cama, procurando por algo entre as peças de roupa.
- Ela nunca pensou em você como vilã - Egor protestou, apressado em defender a ex-portadora.
- Egor disse...
- Não quero saber o que Egor acha disso tudo - dispensou minha fala com um gesto de mãos. - Eu tentei ser boa, eu voltei para vê-la depois de todos esses anos, eu queria tentar ganhar os poderes da forma certa, do jeito honesto - seus olhos brilharam, mágoa e rancor escondidos por camadas de maquiagem e postura indiferente. - Mas ela continuou negando o que é meu por direito, então eu tive que matá-la, ooops. - Emilly caminhou de volta até mim, segurando entre os dedos um dos pequenos corações que vivia disparando pela cidade.
- Você é a prova de que eu sou digna, Lila, você me escolheu, tinhas várias opções, mas escolheu a mim.
- Eu escolhi a fachada que você criou, a garota bondosa que parecia se importar, não a terrorista que matou a própria mãe - gritei o mais alto que pude, torcendo para ser ouvida.
- Eu nunca fingi ser o que não sou com você, Lila - Emilly sorriu tristemente, contornando meu corpo para colocar o explosivo na palma da minha mão. - É por isso que vai doer tanto fazer isso.
- O que quer dizer? - amaldiçoei quando minha voz falhou, minha postura tensa com o que Emilly queria dizer.
- Esse poder que você tem é meu por direito - explicou calmamente, voltando ao meu campo de visão com um sorriso feliz no rosto. - Eu tentei ser uma heroína, de verdade, tentei mesmo, mas todos os meus esforços foram em vão, nada nunca foi suficiente para Catarina - passou os dedos pelo meu rosto, um gesto que deveria ter sido carinhoso. - Se eu não posso ser uma heroína, se eu não posso ser a número um, ninguém mais pode.
- Quanta ladainha - Iddie resmungou e eu não pude conter uma risada involuntária.
- Não é sobre você, Lila, é sobre seus poderes - Emilly terminou seu discurso e continuou a se arrumar, colocando as asas de sua armadura, olhando de perto parecia uma fantasia de carnaval muito mal-ornamentada.
- Ela está terminando com a gente usando a pior das desculpas - Iddie zombou ao meu lado. - Qual é a próxima desculpa? "Eu preciso focar na minha carreira" ou "Precisamos dar um tempo"?
- O que ela vai fazer? Me explodir? - brinquei também, mesmo sabendo que não era uma boa hora, mesmo que meu coração estivesse tão acelerado que parecia que iria parar.
Por que o que mais eu poderia fazer? Além de rir e apreciar a companhia daqueles que estiveram comigo desde o primeiro passo da minha jornada, rindo e chorando ao meu lado. Iddie e Egor estiveram nos trilhos, na minha descoberta e no pior momento da minha vida. Eles foram comigo investigar a vida de Emilly, procurar Bola Branca e estava lá durante cada treino, cada luta perdida e cada golpe levado. Na derrota e na vitória, (bem mais derrotas do que vitórias, é verdade), foram Iddie e Egor que sempre estiveram lá.
- Você está segurando um explosivo, tem mais ou menos quinze minutos sobrando - Emilly alertou, pegando duas novas armas da mala e colocando-as na cintura. - Não pode desativar a bomba, eu mandei tirarem essa opção, nunca entendi por que alguém colocaria um botão de desativar se o objetivo principal é explodir tudo - tagarelou e eu me poupei de responder. - Também não pode mandar seus bichinhos levarem para longe de você, se me lembro bem, eles têm um limite de até onde podem ir sem você e, caso não tenham percebido, estão presos em um quarto de hotel.
Me desesperei. Ela ia mesmo me explodir! Era assim que eu ia morrer?
"Hotel. Paulista. Emilly."
Primazia finalizou sua vestimenta colocando uma pequena coroa no topo da cabeça. Ela abriu as portas da varanda e se preparou para saltar. Não podia deixá-la ir. Ainda não.
- Quer mesmo fazer isso? Ser a vilã? - chamei sua atenção, desesperada para que ela ficasse um pouco mais, que eu pudesse convencê-la com o poder do "diálogo". - Quer provar que Catarina estava certa sobre você?
Primazia parou por um segundo, abaixando a cabeça para pensar, o som de pessoas, veículos e de vida metros abaixo de nós preencheu o ambiente. Por fim, ela voltou a olhar os prédios à frente, ainda de costas para mim.
- Isso não é mais sobre provar algo à minha mãe - me lançou um último olhar. - É sobre orgulhar meu pai - e saltou.
- Belo plano - Iddie gargalhou do jeito histérico que fazia quando as coisas davam errado.
Suspirei. Eu tinha uma supervilã imortal à solta, uma bomba prestes a detonar e duas entidades que estavam tão desesperadas quanto eu. Belo plano, Jovem-Alma.
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