Braeburn

  A certeza de que você vai morrer é algo engraçado. Você começa a refazer sua vida inteira, se perguntando se aproveitou o suficiente seu último dia. Não aproveitei. E as preocupações que surgem são as mais supérfluas possíveis, se você deixou o fogão ligado ou se a quantidade absurda de chocolate que você ingeriu vai render muitas espinhas. Então esses pensamentos ficam mais mórbidos. Você se pergunta se deu um último abraço no seu pai antes de sair de casa ou se olhou o céu uma última vez.

  Lembrei do dia em que conheci Catarina, encarando o metrô vir em nossa direção. Eu sabia que não morreria naquele dia. Eu sabia que não morreria.

— Ideias? — tentei me manter calma e centrada, não focada nos bipbip da bomba que eu segurava ou no fato de que Primazia era minha melhor amiga. — Não estava pensando em morrer hoje, não que normalmente as pessoas pensem sobre morrer no dia em que realmente morrem.

— Considerando sua tendência suicida, achei que estaria preparada — Iddie brincou, mesmo que tensa.

  Manter o clima leve fortalecia a nossa calma e eu esperava que isso pudesse nos levar a alguma solução. Egor não pareceu entender. Ele sufocou um gritinho francamente adorável nos lençóis da cama, sua paciência se esgotando.

— Não tenho tendências suicidas — resmunguei, tentando arrebentar as cordas dos meus pulsos mais uma vez.

— Qual é a das piadas? — Iddie cruzou os braços, cética. — Você não deveria estar surtando ou algo assim?

— Li em algum lugar que é o mecanismo de defesa dos perdedores — brinquei, vendo Iddie ganhar uma expressão ofendida. — Além disso, você também faz piada.

— Eu existo há séculos, quase morrer é rotina — disse como se fosse uma boa justificativa.

— Vocês duas pensaram em alguma coisa? — Egor choramingou, voando para perto de mim.

  Ele parecia exausto. Todos estávamos exaustos desde que compramos a luta contra Primazia. Férias seriam requisitadas depois que tudo isso acabasse.

— Vocês conseguem desatar as cordas?

— Já olhou para as nossas mãos? São pequenininhas — Iddie flexionou os dedos na minha cara. — E Emilly obviamente soube fazer os nós mais difíceis, ela aprendeu no acampamento e só ela conseguiu o distintivo por ser uma chata que sabe dar nós — Iddie imitou o tom de Emilly, com direito as piscadelas e risinhos típicos da mulher.

— Meninas — Egor chamou nossa atenção. — Dal, crie alguma coisa com a magia de Iddie, algo que ajude você.

— Como eu faço isso? — alternei meu olhar entre os dois.

— Da mesma forma que projetou aquelas flechas.

— Isso não deu muito certo pra ninguém — relembrei e eu e Iddie rimos.

— Principalmente para Primazia — Iddie completou.

— Não sei se vocês lembram, mas nosso tempo é limitado, Emilly está explodindo o Starbucks enquanto vocês brincam,

— Parece que ela star louca — gargalhei com isso.

— Ela está descafeinada — Iddie continuou.

— Precisando coar a negatividade dela — balancei as sobrancelhas. — Eu não quero morrer — exclamei de repente apavorada, respirando rapidamente e deixando parte do meu desespero vazar para fora.

  Egor soltou um suspiro cansado, indo voar mais perto da janela, como se estivesse deixando a missão para Iddie.

— Certo, certo — tentei me manter focada, sem desespero. — Você precisa me ajudar — olhei para Iddie. — Como invoco uma tesoura?

— Tesoura? É melhor uma espada.

— Espadas são muito grandes — assoprei um fio de cabelo que insistia em cair no meu rosto. — Vamos, Iddie, precisamos estar em sincronia.

— Não é minha culpa — cruzou os braços, dando de ombros. — Catarina conseguiu isso em uma semana.

— Eu não sou a Catarina, ok!? — gritei para Iddie. — Por que quer tanto que eu faça as coisas como ela? Não pode achar que detalhes assim vão me tornar mais parecida com ela, a Catarina morreu — demorei para perceber o que estava gritando quando terminei, uma frustração há muito guardada saindo para fora antes que me desse conta. Catarina morreu. Eu era Dalila Silvestre. Precisávamos lidar com esse fato.

— Eu sei! — Iddie também gritou, então seus olhos se arregalaram com o que tinha dito e, mais baixo e vulnerável, repetiu: — Eu sei.

  Iddie suprimiu a dor, a solidão e a tristeza, focando na nossa busca por vingança, na raiva e no sarcasmo. Egor tirou seu tempo para o luto, contando suas memórias ou conversando sobre tudo o que Catarina foi para ele. Tentamos coisas diferentes. Todos falhamos. Não existe método certo ou mais curto para isso. Só o tempo. Nem o tempo.

— Está tudo bem — suspirei, concentrando minha atenção nas cortinas da janela que se balançavam pacificamente.

— Eu só... — Iddie confessou baixinho. — Acho que ainda não superei.

— Você acha? — brinquei, recebendo uma risada fraca como resposta.

— Eu gosto de você, Dal — Iddie confessou a contragosto. — Eu nunca te contei porque não queria que você ficasse se achando, mas você ganhou esses poderes, não foi porque você salvou ou teria salvado a vida da Catarina, na verdade, o que você fez foi o pior salvamento que já vi na vida.

— Iddie, nosso tempo está acabando — lembrei para que ela falasse mais rápido, sem ter certeza do que esperava que ela dissesse. Com certeza não era isso...

— Esses poderes — Iddie virou-se para mim, seus olhos não pareciam mais tão doentios como os descrevi da primeira vez, eles eram de uma cor única, familiar acima de tudo. — Não é sobre salvar a vida de alguém, é sobre se sacrificar.

  Oh!

  Arregalei os olhos. Tudo que vivi até aquele momento passando como um filme na minha cabeça, as peças simplesmente se encaixando, meus olhos sendo abertos e...

— Não entendi — inclinei a cabeça em confusão.

— O quê? Sério? — Iddie revirou os olhos, parecendo ofendida com isso. — Tanto faz, o importante é que você... Você é digna.

— Obrigada, Iddie — não pude evitar de sorrir, sabendo que tinha uma amiga ao meu lado. Uma amiga de verdade.

— Agora projete alguma coisa para cortar essas cordas.

  Assenti determinada. Trouxe minhas mãos um pouco para o lado e virei o pescoço. Primazia deu várias voltas com a corda e finalizou com um nó complicado, que não tinha começo e nem fim. Meus dedos estavam dormentes devido à falta de circulação sanguínea.

  Depois de conversar com Iddie, foi fácil projetar uma faca e guiá-la com o pensamento para que cortasse as amarras. Uma faca de serra, pequena, dessas que vendem em qualquer lugar, brilhando em vermelho vivo, pulsante, como a cor das pimentas que Emilly comeu na minha frente.

  Meu estômago embrulhou quando lembrei que tinha a intenção de confiar Iddie e Egor a alguém tão horrível quanto Emilly. Eu perdi a amizade de Emilly, mas isso nem se compara com o pensamento de perder Iddie e Egor.

— Finalmente livre — comemorei quando cortei a corda, pegando a faca que criei e cortando a corda dos pés também.

— Ainda temos um problema — Egor lembrou, apontando para um canto no chão.

  Meus olhos seguiram a direção que ele indicou, encontrando o pequeno e inocente coração explosivo de Primazia, esquecido no chão, apitando conforme o temporizador se aproximava do zero. Tínhamos um minuto.

  Um minuto!

  Peguei o coração e corri para a porta, mexendo na maçaneta várias vezes tentando sair do quarto. Trancada.

— O que vamos fazer? — repeti na intenção de clarear a mente, como se isso pudesse me fazer perceber algo que ainda não estava claro. — Por que passamos tanto tempo conversando? Só temos um minuto!

— Eu avisei — Egor falou como o sabe-tudo que era.

—É um coração! Meu cérebro não raciocinou o perigo! É como me dizer para desconfiar que um pneu é um assassino.

— Uma vez eu vi a história de um pneu que... — Iddie parou de falar quando recebeu olhares raivosos meus e de Egor.

  Quarenta segundos. Ajoelhei-me no meio do quarto, minhas mãos tremendo. Não era sobre o que Catarina ou Emilly faria. Não era mais sobre ser ou não ser digna. Eu tinha que me fazer ser. Tudo ou nada. Faça-se digna. Catarina, Gabriel, Amanda, Iddie, Egor... Todos acreditaram em mim. Estava na hora de eu começar a acreditar também.

  Estendi as mãos, respirei fundo e coloquei uma esfera, projetada com a energia de Egor, ao redor da bomba. Uma esfera verde-clara, flutuando à nossa frente, o dispositivo repousando no fundo de forma quase inofensivo, o pequeno canalha. Se ignorássemos que a qualquer segundo iria explodir, até parecia uma fofa bolha de sabão radioativa.

  Ficamos parados. Observando os números do contador mudar. Vinte segundos. Tínhamos que fazer alguma coisa.

— Uma redoma? Está louca? — Iddie gritou, gesticulando loucamente. — Não pode comprimir uma explosão!

  Meus olhos se arregalaram ao entender o que ela quis dizer com isso.

  A bomba explodiu.

  Observamos temerosos o coração desabrochar como uma pequena flor e a explosão acontecer. A bolha não iria aguentar. O impacto continuava se expandindo. Eu não iria conseguir segurar. Não estava conseguindo manter a projeção.

  Não pensei muito quando movi as mãos na direção da janela, vendo a esfera voar para fora e explodir no meio do céu da avenida Paulista. Corri para a sacada, assistindo quando as janelas dos prédios ao redor foram todas quebradas com a explosão, a fumaça invadindo os apartamentos por perto e assustando as pessoas que observavam tudo de baixo.

— Droga — murmurei ofegante. — Espero que não tenha matado ninguém.

— Não seria novidade para você — Iddie comentou ao meu lado, de alguma forma sem parecer ofensiva. — Que bom que Alice está na cobertura, a explosão só deve ter afetado a estrutura superior dos prédios, estamos quase seguros.

— Aline — Egor corrigiu.

  Ficamos parados, encarando o estrago que fiz. Só acordei do meu transe quando ouvi alguém mexer na maçaneta, virando-me bruscamente na direção da porta, esperando ver Primazia ou seus capangas atacando o lugar.

— Oooi — uma mulher de cabelos escuros e olhos puxadinhos passou a cabeça pela porta. — Camareira! Estamos olhando se todos estão bem depois da explosão.

— Você é minha salvadora — gritei agradecida, correndo para fora do hotel em seguida.

  Segui direto para o elevador, apertando o botão do térreo.

— Rebeca vai te matar por perder as folhas dela — Iddie tagarelou enquanto derrubava os chapéus das pessoas que estavam com a gente no elevador, agitadas demais com a explosão para se importarem.

  Corri em disparada pela avenida, tinha que desaparecer antes que a polícia chegasse. As pessoas também corriam apressadas ao meu lado, como formigas quando o formigueiro é danificado. Torci o nariz com a comparação, odiava quando comparavam pessoas com animais.

— Pare de andar como uma tartaruga — Iddie berrou.

  Quase parei de andar para reclamar, não fossem os gritos, o choro e o burburinho entre as pessoas, todas correndo pela rua, gritando sobre Primazia e as explosões acontecendo em tempo real. Consegui parar em frente a uma vitrine de eletrodomésticos, observando as telas de TV para compra ligadas no jornal, a âncora Marina Amaral anunciava:

— A terrorista nacional, conhecida como Primazia, volta a atacar a Avenida Paulista, explodindo prédios e estabelecimentos — seus olhos se apertaram para ler algo atrás das câmeras. — Ainda não se sabe o motivo, mas esse é o terceiro dia em que enfrentamos ataques consecutivos — a câmera foi dividida entre Marina e um repórter em frente a uma loja que foi explodida. — Estamos acompanhando o caso há dias, hoje Primazia finalmente aceitou dar uma entrevista, fiquem ligados para mais notícias.

— Se conheço bem a Emilly, ela não vai recusar a oportunidade de passar horas na frente das câmeras, espalhando sua filosofia do caos — comentei apreciativa, voltando a correr. — Acho que ganhamos algum tempo, precisamos achar o Gabriel.

  Tinha esperança de encontrar algum sinal do meu irmão, precisava saber o que tinha acontecido no tempo em que fiquei apagada e receber algum direcionamento, porque se dependesse só de mim, Iddie e Egor, ficaríamos discutindo sobre o que fazer por tanto tempo que quando decidíssemos Primazia já teria instaurado uma ditadura na cidade.

— Vocês que leram aquele panfleto ridículo do Gabriel, o que ele diz para fazermos quando se está perdido? Tem algum ponto de encontro? — não me preocupei em diminuir minha voz, as pessoas pareciam mais interessadas em correrem para um lugar seguro do que com minha possível loucura em falar sozinha.

— Devemos ir até uma letra gigante — Egor informou.

  E apenas porque foi Egor quem disse, considerei a sugestão. — Por quê? — a descrença estava nítida na minha voz.

— Bola Branca diz que você pode encontrar letras gigantes em todos os lugares que for, é universal.

  A contragosto, me posicionei de pé sob o brilhante e amarelo M, que decorava a entrada de um dos muitos McDonald’s da avenida, sabendo que teria de enviar a Gabriel uma localização mais exata dessa vez.

  Havia uma TV dentro da lanchonete e eu consegui assistir, pelo lado de fora, a preparação dos repórteres antes da entrevista e algumas das imagens dos dias em que fiquei presa no hotel. Foram contabilizados 4 ataques ordenados e consecutivos, 228 mortes, 100 feridos e 39 desaparecidos. Os chamados "super-heróis legalizados e oficiais do governo" sempre chegavam tarde demais, ninguém nunca prevendo onde seria o lugar onde Primazia atacaria. Meu estômago embrulhou. Eu chorei um pouco mais.

— Espero colocar um fim nisso — bati o pé em um tique nervoso. Quanto tempo fazia? Uma hora?

  A espera era angustiante. A única coisa que me mantinha plantada à espera de Gabriel era a certeza de que Emilly estava, nesse momento, fazendo um discurso muito longo sobre seus padrões de explosões e não realmente explodindo algum lugar aleatório com pessoas inocentes dentro.

  Iddie se aquietou em cima do meu ombro e Egor se distraiu olhando alguns arbustos perto da entrada. A avenida parecia mais cheia do que nunca. Eu não tinha certeza se estava assim por se tratar de um domingo ou se as pessoas vieram ver o show que Primazia faria assim que saísse da entrevista.

— As pessoas sabem que correm perigo e mesmo assim continuam se colocando em situações de risco — comentei irritada. — Isso dificulta o trabalho de todo mundo.

— Sim, quem faria isso? — Iddie zombou com ironia, olhando para mim com uma sobrancelha arqueada.

  Desviei o olhar de volta para a tela da TV. Eles estavam no topo de um prédio residencial que já havia sido evacuado, restando apenas Primazia e a equipe de produção do jornal. Em paralelo, a polícia se aproximava devagar, torcendo para que conseguissem enrolar a maluca mais um pouco, antes de estarem completamente equipados para capturá-la.

— A Divisão pode cuidar disso — Iddie murmurou, a cabeça caída para o lado, seus pequenos chifres furando meu pescoço. — Por que ainda estamos nisso?

— Porque isso é uma luta pessoal — estiquei o pescoço para olhar as lojas do outro lado. — Você não quer se vingar?

— Não se você morrer no processo — Iddie tossiu, desconfortável com a demonstração de afeto.

— Eu não vou — afirmei com veemência.

— Não vai o quê? — a voz alegre de Gabriel soou atrás de mim e eu não pensei que uma voz poderia melhorar tanto o dia de alguém.

  Virei a cabeça, vendo Bola Branca, vestido com seu tradicional terno e chapéu brancos, os óculos estavam faltando. Corri até ele para um abraço, sentindo que uma parte do meu plano insano finalmente havia sido concluída.

— Você não faz ideia do quanto me preocupou — Gabriel me apertou um pouco mais, antes de se distanciar para me olhar, segurando meu rosto entre suas mãos. — Você ficou maluca? Sério, Dalila? Hotel, Emilly e Paulista? Sabe quantos hotéis tem nessa avenida? Pelo menos você me deu o endereço do Mac — e então balançou meu rosto de um lado para o outro, procurando algum machucado, felizmente Iddie calou a boca e Emilly não chegou a arrancar meus dentes.

  Comecei a rir, apesar da situação. Gabriel parecia exausto, seu terno tinha manchas de ketchup e os cabelos estavam mais bagunçados que o normal.

— Eu sabia que você escolheria o McDonald 's, você não é original o suficiente para escolher uma loja com um B ou um C — continuou a reclamar, enquanto entrava na confeitaria intitulada Para Sempre que ficava ao lado.

  Sentamos em uma das mesas dos fundos. A confeitaria estava vazia, somente uma única funcionária corajosa no caixa. Gabriel pediu que a caixa/garçonete/cozinheira/solteira colocasse a televisão no canal onde a entrevista de Primazia passava e pediu o prato especial, Amor-Perfeito, com uma quantidade desnecessária de flerte, para só então iniciar nossa conversa com:

— Parabéns pelo seu primeiro sequestro — disse em tom orgulhoso, feliz em me parabenizar. — Como se sente?

  Arqueei uma sobrancelha, como quem diz: Isso é sério? Quantas vezes você já foi sequestrado?

  Gabriel deu de ombros, colocando em cima da mesa seus óculos escuros que estavam pendurados na gola do terno.

— Você estava certa, os óculos não escondem minha identidade — admitiu com um encolher de ombros, tendo a decência de parecer envergonhado.

  Iddie gargalhou, chegando a colocar as mãos na barriga e a derramar uma lágrima de felicidade.

— Descobriu isso agora? — questionei risonha, feliz por estar de volta ao lado do meu irmão.

— Eu não sei o que aconteceu, mas Primazia descobriu minha identidade — suspirou dramático. — Obrigado, boneca — agradeceu quando a garçonete trouxe seu pedido.

— Gabriel — chamei e ele virou a cabeça para me olhar. — O que aconteceu com o nosso pai? — perguntei o que não parou de me incomodar desde que falei com Primazia.

  Gabriel se mexeu desconfortável na cadeira em que estava sentado. Iddie e Egor desviaram o olhar, focando suas atenções nos potes de palito de dentes e sal no centro da mesa como se fossem a coisa mais interessante do mundo.

— E então? — incentivei com mais nervosismo do que o esperado, torcendo, implorando, para que não fosse o que eu estava pensando. Não poderia ser.

— Primazia ficou irritada comigo por roubar o dinheiro dela e não dar nenhuma informação em troca — Gabriel falou apressado, batendo a faca na borda do prato. — Ela começou todos esses ataques e você desapareceu, então eu fui atrás dela, lutamos uma vez e ela, de alguma forma sobrenatural, descobriu minha identidade secreta, o que deixou ela tão impressionada que… Ela pode ter explodido a Catwalk no processo? Eu não sei, estava chapado.

— ELA FEZ O QUÊ?

— A maioria das pessoas ficou bem, sério, não é a primeira vez que isso acontece, Amanda já deu um jeito em tudo, as coisas que aquela mulher faz com uma vassoura, sério, é inacreditável — ergueu as mãos na intenção de me acalmar. — Mas papai engoliu muita fumaça e...

— Meu pai morreu? — arregalei os olhos, temerosa, olhando de relance para Iddie e Egor.

  Por favor não. Apenas não. Ele não podia ter morrido. Não!

— Não! Ele está vivo, papai está vivo — Gabriel enrolou-se nas palavras, mordendo o lábio superior. — Na verdade, ele inalou muita fumaça e agora está em coma.

— Isso deveria ser um consolo? — gritei de espanto, sem saber como reagir a isso.

— Ele não está morto — riu nervosamente. — Vai ficar tudo bem, uma feiticeira me garantiu que ele vai acordar em breve, vai voltar como novo.

— Estamos falando da mesma feiticeira que te vendeu esses óculos? — resmunguei, batendo a cabeça na mesa.

— Talvez... — falou baixinho, esperando que eu não ouvisse. — Termina logo de comer, temos uma supervilã que vai atacar em algumas horas.

— Acho que vão conseguir prendê-la antes disso — olhei o desenvolvimento do caso na tv, havia helicópteros se aproximando e a polícia invadiu o prédio da entrevista.

— Eles não vão pegá-la — afirmou, digitando algo no celular. — Porque aquela na entrevista não é a Primazia.

— Como assim? — indaguei confusa, levantando a cabeça e puxando para perto de mim o prato com a sobremesa.

  Morango nunca foi minha fruta preferida, mas meu estômago estava vazio. Se tratava de uma tartelete de massa dourada, recheada com creme de morangos silvestres, coberta por uma geleia de frutas vermelhas e um único morango no topo, dividido em dois. Sorri para a sobremesa, feliz por poder comer algo depois de tantos dias.

— Dal, você acha mesmo que nossa maluquinha de amarelo e rosa iria se deixar prender por agentes de segunda categoria da D.Q. disfarçados de policiais? — disse tudo em um tom infantil. — Aquilo é um holograma, a verdadeira Primazia está planejando explodir o Masp e mais algumas coisas.

  Parei no meio da mordida que estava prestes a dar no meu doce. Não sabia o que era mais insano: Gabriel não saber diferenciar amarelo de dourado, o repórter entrevistar um holograma e não saber disso ou o plano de explodir o museu mais importante de São Paulo.

— Um holograma? — definitivamente a coisa mais louca de toda a situação.

— Ela tem asas e explosivos, o holograma é o de menos!

  Considerei. Parecia plausível.

— Mas por que o Masp?

— E outras coisas — Egor completou, que prestativo.

— Por que explodir o Masp e outras coisas? — repeti.

— Eu não sei, Dal — Gabriel bufou, já sem paciência. — Você deveria saber, passou dois dias com ela.

— Eu estava desmaiada — chutei sua canela por baixo da mesa. — Emilly só me disse que planejava um "show" aqui, mas não disse que tipo de coisa horrorosa ela decidiu fazer.

— Espere, espere, Emilly? — seus olhos se arregalaram e eu percebi que ainda não tinha contado a ele da minha descoberta. — Está me dizendo que Emilly Diniz, a Emilly Diniz, que irradia bondade e felicidade, é a maluca?

— Você não sabia? Por que acha que te chamei até o hotel em que ela estava?

— Porque... — pensou um pouco. — Oh não! O que vão fazer com a personagem dela na novela se ela for presa?

— Ele é um idiota — Iddie cantarolou, atirando o chapéu de Gabriel do outro lado da lanchonete.

  Não chamei sua atenção dessa vez.

— Tudo bem — comecei, contente depois de finalmente dar uma mordida na tortinha, provando um pedaço de uma das bandas do morango. — Se aquela não é a Primazia de verdade — apontei para a televisão. — Por que não estamos indo atrás da verdadeira?

  Gabriel tirou os olhos do celular, apagando a tela do aparelho e o depositando em cima da mesa.

— Estou esperando por um amigo — olhou para o teto, tentando pensar em um novo assunto enquanto esperávamos. — Falando em amizade, fala sério, achei que a Emilly fosse sua amiga, como cê tá com isso? — havia certa preocupação em sua voz, uma careta de pena em seu rosto.

— Amizade é superestimada hoje em dia — dei de ombros, me concentrando em comer.

— Nesse ramo é bastante comum esse tipo de coisa — Gabriel consolou e eu sabia que isso tinha muito mais peso do que só uma simples frase.

— Acho que... — hesitei, lançando um olhar para Iddie, que ainda estava entretida com o saleiro. — Estou feliz por ter entrado nesse mundo, por ter conhecido mais da sua vida, Catarina, Amanda...

— Eu não vejo a hora de te inserir nos negócios da família — sorriu encantado, mais animado. — Vamos nos mudar para um apartamento maneiro e você vai poder escolher uma bola de bilhar para ser seu novo codinome!

— Eu não vou me juntar aos seus negócios, Bola Branca — cortei suas fantasias, antes que começasse a ir longe demais, embora, se fosse ser sincera, eu também disse que não ficaria com os poderes, então...

— Você poderia ser a bola preta! Ou a vermelha — Gabriel apenas ignorou minha fala.

— Desculpa, qual é o seu plano mesmo?

  Gabriel deu de ombros, não parecendo preocupado.

— Descobrir a localização da verdadeira Primazia antes que ela exploda mais coisas.

  Foquei minha atenção na entrevista. Primazia estava sentada, um sorriso arrogante emoldurando seu rosto, o pôr do sol se estendendo ao fundo. O repórter mantinha distância de alguns metros e o rosto de Primazia só era mostrado com zoom. Todos assustados demais para se aproximarem.

  Conforme a noite chegava, eu começava a me preocupar. Primazia era imortal! Como podemos deter alguém imortal? Ela seria presa? Se você é imortal e vai preso, prisão perpétua ainda é uma pena viável? Não é tortura manter alguém eternamente na cadeia? Balancei a cabeça. Emilly tentou matar minha família. Quem se importa com sua eternidade na cadeia? No Brasil nem tem prisão perpétua! Existe um jeito de matar alguém que é imortal? Eu teria coragem de fazer isso? Eu queria matar alguém?

— Raio de Lua? — ouvi Júnior chamar.

  Virando a cabeça encontrei Júnior, ele parecia feliz, segurando uma sacola plástica e vestindo sua camiseta verde. Eu amava quando ele usava essa camiseta. Tropecei para fora da cadeira no mesmo momento, correndo para ir abraçá-lo, sentindo que estava em casa após muito tempo. Júnior deu alguns tapinhas sem jeito nas minhas costas, dando um passo para trás, sem sequer me encarar. Oh, sim, o término...

— Trouxe o que eu pedi? — Gabriel cortou o clima.

  Franzi o cenho, desconfiada, vendo Júnior entregar ao meu irmão a sacola que segurava. Gabriel pegou, checou seu conteúdo e a estendeu para mim.

— O que é? — Iddie se interessou.

  Abri a sacola, sorrindo quando tirei de lá minha capa e...

— A fantasia de Jigsaw?

— Gabriel disse para trazer a roupa que você tinha deixado lá em casa — Júnior disse de forma indiferente. — Eu não sabia qual delas.

— Vá se vestir, Dal — Gabriel mandou, indo até o caixa falar com a garçonete que observava tudo com olhos atentos, apreensiva com a reportagem rolando na tv.

  Fui até o banheiro dos fundos, vestindo a blusa social e o paletó da fantasia de Jigsaw. Estava sendo um dia frio e em breve iria anoitecer, infelizmente a saia era minha única opção de roupa de baixo

— Aw — Egor arrulhou. — Você se lembra dessa gravata?

  Olhei para o fundo da sacola, vendo a gravata com as cores da bandeira de Portugal que peguei no dia da luta no Brás. Acabei vestindo-a junto, rindo ao perceber que estava praticamente com a mesma roupa de quando lutamos perto da Tentação, fosse a intenção ou não...

— Gabriel conseguiu — suspirei rendida, saindo do banheiro e dando uma rodadinha. — Meu uniforme de heroína é oficialmente um terninho feminino — olhei para os dois, vendo Júnior com sua expressão assustada e Gabriel atrás do caixa. — Cadê a garçonete?

— Foi para casa — respondeu simplista, pegando um pirulito de um dos potes de doces. — Por livre e espontânea vontade.

  Arqueei uma sobrancelha duvidosa.

— Tudo isso vai explodir Dal, não ia deixá-la aqui — meu irmão se rendeu.

— O que quer dizer com "tudo vai explodir"? — fiz aspas e imitei sua voz. — Não era só o Masp e outras coisas?

— Exatamente — Gabriel resmungou, sua atenção toda no celular. — Aqui pode ou não ser "outras coisas".

  Não tinha certeza do que fazer com essa informação, apenas torcer para que Gabriel fosse o meu “homem com um plano” e descobrisse logo onde Primazia estava.

— Você vai me explicar o que está acontecendo com você agora? — Júnior se inseriu na conversa, cutucando meu braço, sem tempo para brincadeiras.

— É complicado — recuei para mais perto do balcão, esperando que Gabriel tivesse alguma desculpa.

   Mas Gabriel estava distraído, vendo algo no celular e se divertindo abrindo chicletes de sabores sortidos.

— Sua mãe deixou você sair com Primazia por aí? — desviei o assunto, olhando para o chão e arrastando o pé no chão.

— Estou na casa do meu pai essa semana, ele não... — se interrompeu. — Você está mudando de assunto.

— Não estou!

— Você sempre faz isso — Júnior disse com irritação. — Ou você me conta o que está acontecendo ou eu juro que você nunca mais vai me ver.

  Suspirei, sabendo que tinha chegado a hora. Era sempre assim comigo, fugindo da conversa até ser encurralada. Eu precisava de um psicólogo. Eu estava com medo. Eu não queria que Júnior soubesse. Eu estava envergonhada.

  Não pude evitar bater na nuca de Gabriel, exatamente como Amanda costumava fazer.

— O que você tem na cabeça para trazer o meu namorado pra cá com a Primazia planejando explodir todo o mundo.

— Ex-namorado — Iddie lembrou.

— Detalhes — a espantei do meu ombro, fingindo uma leviandade e sobriedade que com certeza eu não tinha.

— Agora que descobri que os óculos não funcionam, você vai precisar da capa para que ninguém descubra sua identidade, mas alguém aqui, e eu estou falando de você, deixou a capa com o Júnior — Gabriel se explicou enquanto mastigava seu chiclete de forma entediada. — É sua culpa, ninguém mandou você sair deixando seu uniforme de trabalho em lugares aleatórios.

— Desculpe, trabalho? — Júnior se intrometeu, confuso com todo o desenrolar da situação, seus braços jogados ao lado do corpo parecendo terrivelmente deslocado entre a gente.

— Ele só sabe fazer perguntas estúpidas? — Iddie resmungou.

— Ele só está confuso — Egor defendeu.

— Vocês podem, por favor, ficarem quietos?! — bati as mãos no balcão. — Gabriel, quanto falta para sairmos?

— Preciso falar com algumas pessoas para evacuarem a avenida, metade deve voar pelos ares em meia hora.

— Você disse que era só o Masp!

— E outras coisas — parou por um minuto para mastigar seu chiclete. — Eu disse que outras coisas também explodiriam.

— Verdade, é a terceira vez que te corrigimos — Iddie lembrou como a pequena praga que era. — Não está pegando bem para sua imagem, os heróis geralmente são inteligentes, mas você é… bem, você.

— Iddie — disse em falso tom de controle. — Se ocupe em manter o chapéu fora da cabeça do meu irmão.

  Puxei Júnior para a mesa em que estávamos anteriormente, ignorando a comemoração de Iddie. Egor ficou no meu ombro, apesar de seu foco estar na televisão.

— Eu tenho superpoderes — contei assim que nos sentamos, querendo resumir a história o máximo possível. — E eu estou lutando contra a Primazia.

— O quê? — Júnior piscou devagar, seu semblante imparcial, sem saber se eu estava brincando ou não.

  E, pela segunda vez na semana, comecei a explicar minha caminhada dos trilhos do metrô até o momento atual, em uma confeitaria aleatória, com uma vilã maluca prestes a explodir muitas coisas, uma jovem estrela e melhor amiga que era essa tal vilã maluca e meu pai em coma. Contei até mesmo sobre como li a mente dele para assegurar que eu estava bem. Júnior não precisava saber de tudo; eu não queria que ele fizesse parte de tudo..., mas eu estava tão cansada de esconder tudo o tempo todo.

  E eu estava com medo, como sempre. Acho que o medo apenas faz parte da vida. E contar tudo isso para Júnior foi uma das coisas maia difíceis que já fiz. Algumas partes de nós devem permanecer em segredo. E essa parte, a falha, a errada, a culpada, essa parte eu gostaria que fosse apenas para mim... E Iddie e Egor, por falta de escolha.

  Júnior mal se moveu, ele se sentou e escutou. E quando eu acabei de falar, ele coçou a cabeça de forma pensativa e com uma voz profundamente afetada perguntou:

— Emilly é a Primazia?

— Sim — murmurei do meu lugar, cutucando uma mancha fixa grudada na mesa, tentando me manter distante.

— Mas e a novela? — foi tudo o que Júnior perguntou, fazendo meus olhos se arregalarem de surpresa.

— Foi o que eu disse! — Gabriel gritou de trás do balcão.

— A novela não importa — resmunguei com impaciência. — De qualquer forma, você me perdoa? — fiz a pergunta de ouro, cuja resposta vinha me atormentando.

  Júnior, você me perdoa por invadir sua privacidade e manipular sua mente, tudo enquanto brincava de ser heroína, perseguia uma supervilã e mentia para você?

  E Júnior fez uma cara azeda, dessas que fazemos quando o vaso entope, o leite estraga e o apocalipse está próximo.

— Dalila, eu sinto muito, mas isso é.... Isso é loucura — confessou com um suspiro, inclinando-se para trás e gesticulando de forma vaga, sem parecer saber o que fazer com as mãos. — Super-heróis? Sério? Você nem gosta disso, eu sei que brincamos sobre às vezes, mas isso foi longe demais, você não deveria levar isso a sério.

— Júnior...

— Você está se machucando, está machucando as pessoas — seu semblante se franziu em uma careta amarga. — Você me machucou! Dalila, você sabe o quão preocupado eu fiquei? Aquele dia na minha casa... Aqueles machucados... E agora você vem me contar isso como se fosse uma coisa boa, sendo que não é! Essa vida não é boa para ninguém. O que você está tentando fazer? Ser como as garotas dos livros? 

— Eu nunca pensei que você entenderia, por isso não te contei — admiti com relutância. — Eu tive medo disso.

— Posso entender suas inseguranças, seus sonhos, suas maluquices até — um leve sorriso apareceu por um momento nos seus lábios. — Mas não isso, tudo isso que você me contou não é... Não é para pessoas como você, Dal.

  Bufei impaciente. Ele acha que eu não sabia disso? Que eu não passei tempo o suficiente me torturando por ter sido A Escolhida, tentando a todo custo jogar essa responsabilidade para outra pessoa, fugindo a cada oportunidade, me esforçando para tentar me fazer digna quando tudo que eu consegui fazer foi uma sucessão de desventuras francamente absurdas e erros traumáticos.

— Então eu fiz bem em não te contar — fui fria quando falei. — Eu não quero você nessa vida, isso é loucura, e eu também não vou me envolver nisso, é demais — cutucou parte da minha tortinha esquecida na mesa.

— Demais? Eu sou demais? Quem eu sou de verdade é demais para você? — comecei a sentir uma ligeira sensação de raiva, segurando as lágrimas que insistiam em cair.

— Entender o quê? Que você largou a escola, seus relacionamentos, sua vida, para se fantasiar e lutar contra uma terrorista? — tamborilou os dedos, pegando a banda do morango inteira que repousava na tartelete e a levando à boca. A minha metade do morango ficou lá, largada no prato sozinha, meio comida, exatamente como eu me sentia sobre nosso relacionamento.

— Júnior, por favor, eu preciso de você.

  Júnior não estava do meu lado. Júnior não ficou feliz por mim ou foi acolhedor. E eu não podia culpá-lo. Como poderia? Quando eu invadi sua privacidade, o manipulei, menti para ele e tudo por quê? Porque estava correndo por aí em um terno, perseguindo uma vingança sem infantil e não conseguindo impedir a morte das pessoas.

  Faziam o quê? Alguns meses desde que comi aquela maçã? E nesses meses eu já tinha sentido mais dor e desenvolvido mais traumas do que em toda a minha vida. Eu apanhei muito. Desrespeitei a lei. Matei alguém temporariamente. Desenvolvi PTSD e ansiedade, algo próximo da depressão, estava prestes a perder o ano por faltas. Além de estar envolvida com um mercenário, agiota e assassino e todos eles são o meu irmão. É tão inesperado que Júnior esteja bravo?

— Júnior, talvez seja mesmo melhor... Talvez seja... — não consegui falar. Eu não queria perder o Júnior também.

— Raio de Lua — Júnior chamou em um tom doce demais para a conversa que estávamos tendo. — Eu te amo.

  Olhei para ele assustada, vendo seu semblante mais calmo, a postura relaxada, os olhos brilhando. Cor de uva. Algo havia mudado. O que havia mudado?

  Antes que eu pudesse responder, começamos a ouvir as explosões que vieram do início da rua. Como um jogo de dominó, com suas peças empilhadas, prédio por prédio da avenida Paulista, A Paulista, avenida mais popular de São Paulo, foi sendo explodido.

  Saímos do estabelecimento assim que ouvimos o primeiro prédio desabar. Observando, por um segundo, as explosões ordenadas se aproximarem, para só então começarmos a correr. Senti Iddie e Egor serem puxados para meus ombros, independente de suas vontades.

  Mas não corremos rápido o suficiente. Uma loja de tecidos explodiu assim que passamos por ela, o som pareceu chegar primeiro, depois o impacto. Rolamos os cinco pela avenida, nossos corpos batendo uns nos outros e se encaixando entre a quantidade alarmante de destroços, a dor virando ruído de fundo no meio da sucessão de mudanças que foram feitas em tão pouco tempo. Foi muito para processar. Não pensei, só agi.

  Criei o maior escudo que consegui, cobrindo a mim e a Júnior, que caiu ao meu lado, nossos corpos juntos no meio de uma cratera aberta no asfalto. Júnior que olhou assustado para a cúpula verde ao nosso redor, pedaços de construção caindo como chuva em meio aos gritos e à fumaça. Torci para que Gabriel estivesse bem. Ele tinha que estar.

   A essa altura o pessoal da Divisão Quimera deveria ter percebido que a Primazia que estava sendo entrevistada era apenas uma distração. Eu precisava chegar até a Primazia verdadeira e detê-la, antes que mais gente se machucasse. Como Gabriel não previu isso antes? Oh, céus, torcia para que meu irmão estivesse bem.

  "Seria uma bela hora para ler sua mente, seu idiota."

   Pensei desgostosa, enviando o pensamento para Gabriel, mesmo sabendo que não haveria uma resposta. Eu só precisava que ele soubesse que eu estava bem.

  Iddie encarava a sequência de destruição através da proteção que criei com crescente nervosismo. Egor estava encolhido no meu ombro, os olhos bem fechados para não ver o estrago ao nosso redor. Júnior agarrou minha mão quando nos levantamos, vendo pelo menos um terço de toda a avenida destruída por dentro da nossa cúpula. Eu estava certa. Depois das tragédias vem o silêncio. Metros e metros de destruição, vidas tiradas sem qualquer justificativa. Todos calados, processando o que aconteceu, gritos perdidos no vazio.

— Raio de Lua — Júnior falou com o pouco de fôlego que encontrou. — Não vai, por favor, fica comigo.

  Olhei para Júnior. Ele tinha os cabelos bagunçados e a face manchada, seus olhos verdes brilhando no cenário escuro criado pelo fim de tarde, pela poeira e pela fumaça dos incêndios que começavam a se formar.

  Eu tinha que fazer alguma coisa. Era meu destino. Eu tinha que ser digna.

  "Eu te amo."

  Enviei para Gabriel uma última mensagem. Depositei um último beijo nos lábios de Júnior.

— Eu te amo — tentei sorrir antes de sair, para o caso de que fosse a última vez que ele me visse.

  Coloquei o capuz da minha capa e corri.

  Ouvi Júnior chamar pelo meu nome, gritando para que eu ficasse. Eu sabia o quão desesperado ele deveria estar e só podia torcer para que, caso sobrevivesse, ele me perdoasse.

  Corri reto, tentando identificar entre os destroços o caminho que me levaria até o Masp. Tentei focar em chegar até o Masp e não em observar o cenário apocalíptico à minha volta. Eu tinha que fazer alguma coisa, não poderia deixar isso continuar acontecendo. Eu precisava virar o jogo.

  Eu queria chorar e queria gritar. Não pela primeira vez sentindo vontade de me vingar. Derrubar o pequeno pedestal onde Primazia se colocou e ouvi-la gritar como todas as suas vítimas. As pessoas gritavam. Eu tinha que fazer parar. Fumaça cobria toda a avenida, os incêndios iluminando meu caminho depois que todos os postes vieram ao chão. Eu sentia o peso de todas aquelas vidas. Eu tinha o sangue de cada uma delas nas mãos e eu iria me vingar. Não importava quantas vezes tivesse que alcançá-la. Não importava quantas vezes ela saísse do meu caminho e eu tivesse que encontrá-la. Eu iria me vingar. Por todos que morreram. Custe o que custasse.  Eu precisava fazer alguma coisa. Catarina me deu esses poderes e eu iria honrá-los.

  Usei a magia de Egor para criar apoios e escudos, salvando quem eu pudesse pelo caminho. Ainda havia tantas pessoas... Gente sob os escombros ou sufocando entre as cinzas. Eu não poderia salvar todos. Não conseguiria.

— Jovem-Alma, foco — Egor alertou.

  Assenti. Correndo, sofrendo, morrendo.

  Não foi difícil encontrar Primazia no topo do Masp, sorrindo ao contemplar a bagunça que tinha feito. Seu show.

— Você ainda está viva — exclamou em falsa felicidade, seus punhos cerrando, a cabeça inclinada como se estivesse curiosa sobre o que eu faria em seguida.

  Não respondi. Ela disse que não falava com Iddie e Egor porque eles eram inferiores. Naquele momento decidi que eu também não falaria com seres inferiores como ela.

  Usei a magia de Iddie para convocar o máximo de flechas que pude pensar. Primazia saltou de cima da estrutura, ficando na minha frente, seus olhos brilhando em diversão. Ataquei. Os pés. As mãos. A respiração. Usei tudo que sabia, tudo que tinha, tudo que eu era. Porque eu treinei para isso. Porque eu podia fazer isso. Porque eu tinha pessoas que acreditavam em mim e naquele momento eu também acreditei. E eu lutei.

  Eu lutei por todas as pessoas que morreram. Gritei a frustração de todos que perderam alguém. Como ela ousava continuar sorrindo depois de tudo o que fez. Dizimando pessoas, porque era uma mimada que não sabia receber um não como resposta, não sabia lidar com uma derrota.

— Você nem deveria ter esses poderes — Primazia esbravejou com todo o seu ódio, desviando das flechas, correndo de um lado para o outro como se isso pudesse me impedir.

  Meu nome é Jovem-Alma e eu sou digna sim do poder que herdei de Catarina e de todos aqueles que vieram antes dela.

— Eu deixei você irritada? — ela zombou, com um sorriso rasgando seu rosto. — Você resolveu lutar a sério?

  Ataquei com a magia de Iddie, avançando em sua direção, as flechas dançando pelo ar em padrões que, em outra hora, seriam bonitos de se verem. Primazia voou para além da nuvem de fumaça que se formou, sumindo no meio do crepúsculo da tarde. Usei a magia de Egor para me defender caso ela tentasse atacar por cima, apertando os olhos para enxergar alguma coisa no meio da bagunça caótica.

— Você é promissora — cantarolou de algum lugar. — Eu acho que não somos mais tão amigas, Lila, você costumava ser mais simpática comigo.

  Mordi o lábio inferior até sangrar.

  Primazia atacou de cima, quebrando o escudo que construí com um único golpe. Meu corpo rolou pelo asfalto, as mãos sangrando quando tentei parar o impulso.

— Não deixa ela te distrair — Iddie motivou.

  Levantei-me do chão, conjurando uma porção de flechas e as enviando por todas as direções, esperando ouvir qualquer sinal da presença de Primazia. Eu queria que ela ficasse parada, apenas para eu fincar aquelas flechas na cara dela mais uma vez. Eu sabia que estava com raiva. Sabia que me arrependeria no final. E isso era tão injusto.

  Não era a Primazia que ficaria traumatizada pelo barulho das explosões, pelas pessoas que perdeu, as coisas que viu. Primazia tiraria sua máscara e iria para a porra de um hotel cinco estrelas, vestindo roupas bonitas e fazendo uma cara triste na frente da televisão, deixando o cabelo cair na frente do rosto para esconder sua expressão de felicidade, enquanto falaria sobre todas as pessoas que morreram como se importasse alguma coisa para ela. Pessoas que ela matou.

— Você se acha digna, Lila? Depois de todas essas vidas que você está me deixando tirar? — gargalhou ao meu redor, como se soubesse o quanto isso me afetava.

  Primazia puxou a ponta da minha capa, golpeando minhas costelas e peito. Minha respiração parou. Primazia me puxou em sua direção pela abotoadura da capa, começando a voar e me levando junto. Me contorci em suas mãos.

— Acha que é melhor do que eu agora, Lila? — sua voz estava preenchida de amargura.

  Parecia inveja. Soava como inveja.

  E mais uma vez me arrependi. Às vezes a culpa queima mais que a raiva. Eu tentei passar meus poderes para ela. Eu ia confiar Iddie e Egor a ela. Como pude? Como poderia?

  Suas mãos soltaram minha capa. Senti meu corpo cair em queda livre. Criei um laço com a energia de Egor e o prendi em Primazia, puxando-a para baixo junto comigo. Porque se eu caísse ela cairia junto.

  Ela planou antes que nossos corpos chegassem ao chão. Minhas pernas fraquejaram, mas eu permaneci de pé. Tinha que continuar. Não parei um minuto sequer, enviando quantas flechas fossem necessárias, fazendo pequenos dardos seguirem o rastro dourado que Primazia deixava quando voava pelo céu, atirando seus explosivos e destruindo o que ainda estava de pé. Ela atirou uma sequência de corações na estrutura do Masp, chutando minhas costas em seguida. Senti meus joelhos baterem no chão, a dor colapsando pelo meu corpo, protestando contra o esforço que eu estava fazendo.

— Iddie, Egor — gritei e atirei uma flecha na direção dos corações, sinalizando o lugar.

— Eu fiz de tudo para ser boa! — Primazia acertou um soco no meu rosto, o golpe rachando meu lábio, virando minha cabeça para o lado e arrancando lágrimas dos meus olhos. — O que você tem de tão importante? O que faz você ser melhor que eu pra ela te escolher?

  Me levantei para revidar seu golpe. Meu corpo inteiro doía, mas não podia deixar de sorrir quando acertei o rosto de Primazia com um chute, apenas para ver o roxo que se formou no lugar ser curado quase imediatamente. Como seria divertido fazer isso repetidas vezes, apenas para ver seu sorriso cair mais um pouco a cada ataque.

  Porque sim, eu era digna. Eu me sacrifiquei para salvar alguém que não conhecia e não me importaria em fazer isso de novo. E de novo. E de novo. Me sacrificaria por Catarina, por Iddie, Egor, por meu irmão, por meu pai e por Júnior. Me sacrificaria por qualquer outra pessoa que eu pudesse ajudar. Porque é o certo. Porque é isso que os heróis fazem.

  As pessoas que encontrei pelo caminho me ensinaram o verdadeiro significado de ser uma heroína e eu finalmente entendi o que Iddie quis dizer sobre sacrifício. Eu havia encontrado meu propósito e não desistiria. Não importava quantas vezes eu caísse. Quantas vezes Primazia me batesse. O quanto ela risse e duvidasse de mim. Eu não a responderia. Eu não precisava, porque eu fui escolhida para herdar esses poderes. Eu era digna. Catarina viu isso e eu não iria decepcioná-la.

— Eu odeio como eu não posso ver suas lágrimas por trás dessa capa — comentou enquanto continuava a se aproximar.   Andei para trás o máximo que pude, tentando me afastar do Masp. Primazia pegou uma das minhas flechas ainda no ar, correndo em minha direção, a ponta da flecha virada para mim. Quando ela estava perto o suficiente, meus braços fracos demais para afastá-la, senti a flecha perfurar minha barriga. A dor foi alucinante, me levando do paraíso ao inferno. A energia da flecha se dissolveu logo depois, meu sangue pingando no chão. Minha camiseta começou a se encharcar. Cambaleei para trás, tonta, a visão desfocando.

  Senti que iria morrer. E dessa vez, ao contrário do dia do metrô, da noite do assalto ou de quando Catarina morreu, de qualquer outra luta com Primazia ou quando estava presa no hotel, eu vi os melhores momentos da minha vida.

  Às tardes dançando com Iddie e Egor. Os cafés com meu pai e meu irmão. As noites na Catwalk. As conversas com Egor. As tintas de Júnior na minha pele. As discussões bobas com Gabriel. Minhas tardes de cinema solitárias. O metrô. As folhas. A cereja no chantilly. Os brincos de maçã. Os olhos únicos da Iddie. A risada do Egor. O amor de Júnior. A voz do meu pai. Gabriel e suas piadas horríveis. A maçã que mordi.

  Inspirei fundo, talvez fosse a última vez... E tudo clareou.

  Arregalei os olhos. Vi Primazia parada na minha frente, seu sorriso voltou ao rosto. Ela achava que eu iria morrer. Expirei, soltei o peso de mil vidas e nunca me senti mais viva. A adrenalina me fazendo esquecer a dor apenas por um momento. Por tempo suficiente.

  Convoquei uma espada e avancei. Tentando golpear a cabeça de Primazia. Ela se abaixou para se defender, fazendo com que a lâmina passasse raspando por seu cabelo. O coque trançado que ela usava foi cortado, o aplique de cabelo loiro rolou pela rua, restando apenas seu cabelo natural. Iddie foi rápida em arrancar a máscara de seu rosto, revelando a primeira e única, Emilly Diniz.

  Torci para que alguém estivesse filmando, nem que fosse uma única câmera. Para que todos vissem o que se escondia por baixo do sorriso doce e do disfarce de empatia que Emilly fazia tanta questão de mostrar ao mundo.

  Senti nojo. Emilly havia discursado sobre o quão horrível Primazia era. Ela abraçou os pais dos alunos que ela matou. Ela arrecadou dinheiro para recuperação das lojas que ela destruiu. Foi tudo ela.

  Senti pena. Aline estava tão desesperada para orgulhar Catarina, para executar um papel que importava para ela, que não aguentou quando falhou. Se afundando cada vez mais em sua fantasia de ser uma heroína. E quando não pôde ser uma heroína, virou vilã e quis orgulhar o pai. Sempre vivendo a base da aprovação dos outros. Eu a entendia e a repudiava.

  Senti raiva. Primazia era tão egoísta. Sempre querendo se sobressair, chamar atenção, nem que fosse explodindo uma parte do coração da cidade de São Paulo. Sempre procurando o caos, sorrindo com a desgraça que causava.

  E entre o nojo, a pena e a raiva, eu fiquei bem. Conformada. Parei um único segundo, contemplando que não havia nada que eu pudesse fazer para recuperar tudo o que Primazia destruiu. Sim, ela era um monstro. E ela pagaria por seus crimes, mas da maneira certa. 

  As asas de Emilly estavam destruídas e eu joguei suas armas para o outro lado da avenida, prendendo-a em um combate corpo a corpo em terra. Egor me entregou os três corações que ela lançou no Masp. Segurei-os com força. Em breve nosso tempo acabaria. Faltavam o quê? Um minuto?

  Dezenas de carros pretos pararam ao nosso redor. Senti quando as pessoas saíram dos carros, mirando suas armas em nossa direção. Uma mulher de cabelos escuros e olhos puxados saiu de um deles, tinha um distintivo nas mãos e uma postura com quê de superioridade.

— Divisão Quimera — gritou alto o suficiente para que ouvíssemos, mas sem se aproximar. — Rendam-se, garotas.

  Os ignorei. Eu ainda tinha uma missão. Golpeei a perna de Primazia, fazendo-a cair e ficar de joelhos na minha frente. Quanto tempo eu não esperei por isso?

— Você vai me matar, Garota da Maçã? — Emilly ergueu a cabeça e continuou sorrindo em desafio, como se esperasse que eu não tivesse coragem para isso.

  E no fim a pena ganhou. Eu senti apenas pena de Emilly. Seu sorriso não me incomodava mais. Eu só queria acabar com isso e voltar para minha família.

— Eu vou sair disso com as minhas mãos limpas — afirmei, não para Emilly, mas para mim mesma.

  Envolvi os corações que tinha nas mãos em uma esfera com a energia de Egor, mandando-os para cima. Os agentes da Divisão atiraram na projeção, mas minha energia foi mais forte, brilhando em verde intenso, quase cegante em meio a noite densa. Esperança.

— Você vai apenas deixar ela viva? — Iddie indagou exasperada, observando os explosivos subindo.

— Ela vai ter muito tempo para pensar na prisão — murmurei para a entidade. — E não é como se eu soubesse uma forma de matá-la permanentemente.

  A esfera explodiu no céu.

  Ao contrário da forma como terminei a luta com Primazia na Tentação, dessa vez eu não me sentia culpada. Sentia que tinha terminado algo. As pessoas da Divisão prenderiam Primazia e a colocariam em uma cela protegida, com sorte ela teria acompanhamento psicológico e muito tempo para pensar no que fez. Não importava, não era meu dever cuidar disso. O que eu podia eu fiz. E dei tudo de mim para isso.

  Mesmo que ela ainda não entendesse, que ainda se ressentisse e se achasse certa, senti que tinha feito a coisa certa. As coisas pareciam bem, finalizadas. Eu não podia recuperar as vidas que foram tiradas. Torturar Primazia repetidas vezes não a faria entender. Mesmo se ela pudesse morrer, matá-la não traria ninguém de volta. Eu não ganhei meus poderes tirando vidas. Eu não era uma assassina.

— Você não pode fazer isso! Tem que me matar, Garota da Maçã — Emilly gritou, tentando se levantar, seu corpo cambaleando pateticamente. — Eu matei a Catarina! Eu matei sua família! Eu tirei tudo de você — me encarou, seu sorriso tremulando ao não ver qualquer reação da minha parte, mas ainda estava lá. — Você não merece esses poderes! Me prove que eu estou errada, me mate! Me mate! Me torture! Você não está com raiva? Depois de tudo o que eu fiz? É essa a sua vingança? 

  Dei de ombros, começando a correr logo em seguida, desviando dos tiros dos agentes da Divisão, que começavam a se mover para tentarem me pegar.

— ME PROVE QUE VOCÊ É DIGNA — foi a última coisa que ouvi Emilly gritar no meio da noite.

  Ri comigo mesma, pensando em como fui tola por deixar isso me afetar. Eu não precisava provar nada para ninguém.

  No entanto, eu ainda tinha problemas. A mulher que anunciou ser da Divisão Quimera continuou me perseguindo, correndo mais rápido do que uma pessoa normal deveria poder correr, enquanto a maluca da Primazia era deixada para trás junto com seus crimes e protestos gritados ao vento.

— Ela não vai desistir — Egor alertou, sentado de costas no meu ombro. — É melhor respondê-la logo.

— Mata ela logo — Iddie reclamou.

— Acabei de encontrar a filosofia de que não mato pessoas — parei em cima de um bloco de concreto jogado no meio da rua. — E esse é seu primeiro seu conselho?

  Iddie deu de ombros, sem se importar.

— Você é rápida — a mulher elogiou quando me alcançou, parando ao meu lado sem que eu mal me desse conta. — E você não é a Donzela Vermelha — concluiu sem realmente parecer surpresa.

— Sou a nova herdeira, prazer, Jovem-Alma — ia estender a mão quando senti um comichão na barriga. — Droga — afastei a capa, vendo a mancha de sangue que cobria meu uniforme, a dor voltando com força.

— A lei me obriga a deter você, se puder me acompanhar vamos dar um jeito nisso e ter uma conversa amigável — a mulher ofereceu, a boca apertada em uma linha fina.

— Desculpa, me aconselharam a ficar longe de vocês — cortei qualquer proposta ou ordem que ela pudesse me dar. — Eu só parei para avisar que Primazia é Emilly Diniz, ela é imortal e sim, provavelmente vão ter que substitui-la por uma atriz menos adorável na novela das oito, mas, de qualquer forma, se não querem a outra metade da avenida sendo explodida, é melhor não subestimarem ela — terminei com a respiração ofegante, a dor estava aumentando.

  A mulher considerou minha fala, assentindo devagar, seus olhos focados na destruição ao nosso redor.

— Ainda vamos nos ver, Jovem-Alma.

— Primeiro vão ter que me achar — gritei enquanto voltava a correr, saltando pelos resquícios das explosões, buscando chegar no último lugar onde estive.

  Encontrei Júnior e Gabriel escorados nos restos do que foi uma loja de maquiagens, dividindo uma garrafa de dois litros de Coca-Cola e conversando aos cochichos sobre algo.

— Gabriel! — gritei quando o vi, tirando o capuz, alívio marcando cada traço do meu rosto. — O que aconteceu? — perguntei ao olhar para ele, que não se mexeu ao me ver, apesar de acenar alegremente.

— Está tudo bem, é só minha perna que está quebrada, já liguei para a doutora Anna — tranquilizou com um aceno.

— Ela é dentista, não médica — me ajoelhei ao seu lado, puxando meu irmão e meu namorado para um abraço, aliviada por estar nos braços das minhas duas pessoas preferidas. Finalmente seguros.

— Você conseguiu? — os olhos de Júnior me analisaram.

  Gabriel parou de respirar em ansiedade.

— Eu consegui — sorri com o restante de forças que tinha, me acomodando entre eles.

— Essa é minha irmã! — Gabriel gritou logo em seguida, comemorando com uma alegria tão grande que eu só imaginei receber quando dissesse que estava na faculdade.

  Gabriel me abraçou de lado e de forma torta, arrulhando baixinho e com um sorriso enorme no rosto. Todo o cansaço da batalha pesou nos meus ombros, mas eu senti o verdadeiro significado de vitória quando pude finalmente suspirar, olhar para o céu e saber que tínhamos vencido.

— O que fazemos agora? — perguntei com uma risada, porque eu realmente não esperava que chegássemos tão longe para contar a história.

— Esperamos a ajuda chegar — Gabriel passou o refrigerante para mim. — Cara, tanta gente morreu.

  Olhamos a imensidão à nossa frente, a tristeza caindo como uma pedra no estômago. Teríamos uma longa semana e eu sabia que eu teria muito para desempacotar no futuro. Não se vive esse tipo de coisa sem carregar sequelas. Eu ainda estava com medo. Mas sem Primazia e com minha família ao meu lado, tudo pareceu um pouco mais fácil de lidar.

— Tem certeza de que não seria melhor ter matado ela? — Iddie questionou, descansando no topo da minha cabeça.

— Iddie — Egor repreendeu do meu ombro. — Não provoca. — Mas essa é a minha função!

  Inclinei a cabeça no ombro de Júnior, ignorando as entidades que começavam a discutir.

— Você ainda está bravo? — perguntei baixinho a ele.

— Eu amo você, Dal, você é minha alma gêmea — passou um dos braços pelo meu ombro, depositando um beijo no topo da minha cabeça, sem hesitar ou pestanejar.

  Ficamos sentados, esperando pelo caos que se seguiria, quando os bombeiros, policiais, ambulâncias, repórteres e curiosos corajosos chegassem.

  Eu imaginei o que aconteceria com Primazia. A figura de Emilly Diniz sendo desconstruída, cada frase sendo questionada. Quantas pessoas não ficariam decepcionadas…

  E pensei nas inúmeras pessoas que perderam entes queridos na tragédia, e esperava, com todo o meu coração, que o pouco que eu tinha feito, para entregar Primazia nas mãos da Divisão Quimera, tivesse valido a pena, que servisse como uma espécie de consolo para o luto que se seguiria. Ainda assim, pela primeira vez, desde o incidente do metrô, eu sentia que tudo começava a se encaixar. Primazia foi derrotada e eu voltaria a minha velha vida, com o adicional de Bola Branca, duas entidades e Jovem-Alma.

  Sabia que ainda precisávamos resolver muitas coisas. Meu pai ainda estava em coma, a Catwalk foi explodida e eu perdi minha única amiga porque ela era uma lunática.

— Sério, esses brincos estragaram tudo — resmunguei ao lembrar de toda a confusão.

— Eu sabia que abotoaduras teriam sido um presente melhor — Gabriel disse dramaticamente, embora alheio ao porquê de os brincos terem sido um problema.

— Que brincos? — Júnior, sempre perdido, indagou.

— Eu vou bater nesse garoto — Iddie gritou irritada

  Sim, estava tudo bem agora. Vencemos. A número 1 caiu.

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