Bônus
Após um sinal sonoro curto, mas alto e impactante, a porta de metal abre e fecha assim que o Supervisor passa. Um assistente o acompanha, desajeitado, tentando pegar os papéis que caem de suas mãos. O jovem está nervoso, é sua primeira semana de trabalho, e tenta fazer tudo certo como lhe fora dito, mas ele é muito atrapalhado para cumprir seus deveres sem deixar de se atrapalhar.
O Supervisor, por sua vez, é o exato oposto. Inabalável, ele passa pelos corredores com o semblante sério, a postura ereta e o terno muito bem ajustado ao seu corpo, mal se movendo durante a caminhada. Finalmente, os dois chegam à Sala 36. A mais importante entre todas as suas irmãs, da 1 até a 89. A Sala 36 é onde está a mais importante descoberta científica de toda a história da civilização deste planeta: ali, quase dez anos atrás, criou-se vida pela primeira vez.
Séculos de trabalho, pesquisa, tentativas e muita persistência foram necessários até que o objetivo fosse enfim concluído — na verdade, a primeira fase do objetivo. Mais especificamente, na Fase Cinco do Projeto Lacuna. O corpo esquelético azul projetado durante anos por especialistas no assunto finalmente tomara vida e consciência, dando sentido e finalidade às inúmeras equipes e toda sua dedicação ao projeto, que já está secretamente ativo há cento e dois anos.
Hoje, dez anos depois de a primeira Lacuna ter nascido, um novo evento importante acontece: a aplicação da Fase Sete, a última fase.
O Supervisor, que esteve acompanhando todo o projeto desde o início, sorri orgulhoso de si mesmo e de sua equipe. Ele passa seus dedos compridos e gosmentos pelo topo de sua careca reluzente e abre a porta da Sala 36. Imediatamente, todos os cientistas de jaleco param o que estão fazendo para reverenciá-lo.
— Boa noite, meus caros. É um grande dia para todos nós, não é mesmo? — os trabalhadores concordam em conjunto, demonstrando suas animações. — Quero vê-la. Onde está?
Um assistente, parecido com aquele que acompanha o Supervisor, sai de seu posto e vai até uma parede afastada das mesas de trabalho do laboratório. Ele a tateia até encontrar um botão escondido que, ao acionado, revela uma sala secreta por trás. Assim que revelada completamente, uma figura se destaca em meio ao branco por sua cor não usual.
O Supervisor, que assim como os outros seres ao redor, possui um corpo alto e rechonchudo, assim como um crânio grande e exposto, que abriga os cérebros e mentes por trás disso tudo. Eles têm tons de pele brancos como papel ou de cinza claro, quase se misturando aos ambientes de cor branca que eles mesmos construíram.
É por isso que a Lacuna chama tanta atenção. Seu corpo esguio, esquelético e asqueroso de tom azulado é como uma mancha de sangue gritando por atenção em uma cena do crime toda branca. Mais que isso, ela também literalmente grita como uma alma condenada. Parece estar sofrendo como nunca na vida, mas todos ali sabem que é apenas um truque dela para que seja liberta — e que não seria uma ideia tão boa fazer isso.
— Impressionante — seus olhos brilham, admirados pela sua criação. — Fizemos um belo trabalho, pessoal. Tudo pronto para a última fase?
Ele se vira e estala os dedos como um sinal para o assistente, que se aproxima e procura nos papéis.
— Ahn... Sim — diz ele, ainda um pouco nervoso. — Só precisamos daquela amostra para manter por aqui antes de enviá-la pelo espaço.
— Então providencie isto, sim? Bem, equipe, estamos prontos. Preciso apenas checar o pessoal do transporte. Aqueles azuis malditos finalmente terão o que merecem! Viva o Projeto Lacuna!
— Viva o Projeto Lacuna! — todos respondem em coro.
Depois de arriscar sua própria vida e arrancar um dos dedos da Lacuna, o assistente que já estava no laboratório o entrega ao assistente do Supervisor, que pede a ele permissão para ir até a Sala 31, onde corpos são conservados, e assim ele faz. Em algumas semanas, o dedo crescerá e dará origem a uma nova Lacuna, como fazem as estrelas do mar.
Antes de sair, o Supervisor discute mais uma vez cada uma das fases do projeto, ressaltando os pontos que mais demoraram a ser concluídos, mas que no fim demonstraram que tudo é possível.
Fase Um: projeto. Desenvolvimento da ideia inicial.
Fase Dois: aplicação. Como o projeto será exercido na realidade?
Fase Três: pesquisa. Início dos testes de desenvolvimento da vida.
Fase Quatro: corpo. Projetar um corpo para a cobaia.
Fase Cinco: vida. Trazer a cobaia à vida.
Fase Seis: molde. Moldar a cobaia até que se encaixe em seu objetivo.
Fase Sete: aplicação oficial. Liberar a cobaia para exercer seu objetivo.
Tudo isso apenas para que o povo Pergulo tivesse sua tão desejada vingança com os "azuis malditos", que os escravizaram por milênios até que uma revolta popular os expulsasse. No entanto, ainda que livres, o sentimento de justiça nunca se fez presente. Não até hoje, quando a Lacuna for enviada até seu planeta como uma infiltrada que destruirá cada ser vivo que um dia fez mal aos seus pais criadores.
Ela grita agonizando mais uma vez em sua cela antes de ser desacordada por um cientista sábio e experiente. Em seguida, depois de uma rápida chamada por ondas cerebrais, uma equipe de seres fortes surge para carregá-la até a Decolagem, onde está preparada uma nave de pequeno porte única e exclusivamente para a Lacuna. Ao seu lado, o piloto, o copiloto e o comandante aguardam ansiosos pela sua missão.
O Supervisor caminha orgulhoso ao lado de sua criação, cumprimentando a equipe ao chegar.
— Boa noite, está tudo pronto para partirem?
— Tudo certo, senhor — responde o piloto. — Vamos dar àqueles azuis asquerosos o que merecem. Mas antes, posso vê-la?
Com a permissão do Supervisor, o assistente levanta o pano branco que cobre a Lacuna para revelar parcialmente sua aparência. O piloto observa fascinado.
— É incrível a semelhança. Vocês fizeram um trabalho excelente. Mas garantem que ela ficará desacordada durante todo o percurso?
— Com toda a certeza. Temos total controle sobre ela.
Assim, a Lacuna é colocada no compartimento inferior da nave e suas portas são trancadas. A tripulação se despede, entra na nave e em poucos minutos já estão na rota espacial. Com sorte, pegando o buraco de minhoca certo no momento certo, chegarão ao destino em menos de um dia.
No entanto, depois de algumas horas na velocidade da luz, algo acontece. Um barulho no compartimento de carga. Isso não estava nos planos.
O copiloto se oferece para checar, mas não sabe que é uma péssima ideia. A Lacuna acordou, e, silenciosamente, utiliza uma de suas garras afiadas para apunhalar sua garganta. Antes que morra, ela arranca um de seus olhos.
O copiloto retorna ao seu lugar. Mas não é ele. É a Lacuna fingindo ser ele. Logo, não consegue mais se controlar e avança em direção aos dois ocupantes. A nave perde direção e controle. Há um planeta verde e azul ali por perto, e ela cai em direção a ele.
O interior da cabine esquenta devido ao calor gerado pelo atrito da nave com a atmosfera terrestre. Apenas a Lacuna está viva. A nave cai em direção ao mar, e ela sabe que precisa fazer algo.
A Lacuna então consegue abrir uma porta. Ela impulsiona seu corpo para a frente, mudando seu rumo para um local em terra firme, e se prepara para o impacto.
A humanidade não sabe, mas está tendo seu destindo selado pela presença da Lacuna entre eles.
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