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New Chamor, 24 de dezembro de 2017
16:22
20 dias
É véspera de Natal, mas sinto falta da energia que sempre pairava no ar durante esse dia, mesmo quando eu já não me empolgava mais com o evento. Parece mais um dia qualquer do ano, que ninguém dá importância. Sei que as pessoas lá fora já voltaram aos preparativos, mas para mim não há diferença nenhuma. Poderia ser dia cinco de agosto, e eu nem sequer perceberia.
Passei o dia de ontem me escondendo em casa, ignorando as ligações de Helena. Ainda sentia um pressentimento ruim, aquela sensação de que não seria uma boa ideia reunir inúmeras pessoas juntas em um local cujo cenário foi recentemente palco do início de um caos. Não sei se quero ir à apresentação, mas cogito apenas por Helena.
E talvez por Rachel.
Nós não nos falamos mais, mas não foi por falta de vontade minha. Fiquei morta de vergonha por ter estado naquela situação constrangedora, eu de vestido colado e praticamente decotado enquanto ela ficava parada dentro da minha casa, sem saber o que fazer depois de me trazer para dentro. Tentei não ficar pensando nisso, mas não consegui controlar.
Percebo que Helena está me ligando mais uma vez, e agora decido atender. Ela está irritada não por eu não ter mais voltado à igreja para ajudá-la, mas sim por ter sido ignorada nas outras vezes que tentou entrar em contato comigo hoje.
— Eu odeio quando você faz isso — diz sem mais nem menos. Posso ouvir burburinhos ao fundo.
— Foi mal. O que você quer?
Não vejo, mas conheço minha irmã tão bem a ponto de saber que ela está revirando os olhos agora.
— Agora já está tudo pronto, então só quero saber se você vem hoje à noite.
— Ah, eu não sei... — fico quieta e Helena também. Ela quer uma explicação. — Essa história toda de sequestro...
— Foram só crianças, e elas estão bem vigiadas aqui. Você é criança, por acaso?
Suas respostas curtas e ríspidas demonstram o quão farta ela já está desse assunto.
— Mas e se agora estiverem atrás de adultos também?
— Não tem nenhum motivo pra você acreditar nisso.
Talvez eu tenha um bom motivo, sim. O casal suspeito da esquina da igreja poderia, sim, ter um plano mirabolante de começar por idades mais baixas.
Toda vez que penso neles sinto calafrios. Tenho certeza de que estão envolvidos de algum jeito, mas não posso provar. Fiquei sabendo que as outras pessoas que os viram naquele dia já relataram o ocorrido à polícia da cidade vizinha, mas nada foi feito. Assim como nada foi feito a respeito do olho que eu mesma encontrei. Eles simplesmente não se importam.
— Certo — decido ceder para evitar conflitos. — Mas se um psicopata me puxar pro mato pra cortar a minha garganta, eu vou levar você junto!
— Combinado.
Helena encerra a ligação, e então percebo uma notificação recente do Instagram, um novo seguidor. Meus lábios se contorcem involuntariamente em um sorrisinho idiota quando vejo a foto de Rachel na tela.
Me sento meio deitada no sofá, apoiada com o braço no encosto para segurar minha xícara de chocolate quente. Já estou quase enjoando de tanto que tomei nos últimos dias, mas ainda é uma companhia bem vinda para os meses de frio. Beberico algumas vezes enquanto descubro mais informações sobre a mulher que aos poucos vem entrando em minha vida.
Neste momento descubro seu nome completo, Rachel Winter. É chique assim como ela, um ar de classe e elegância que nunca imaginei vindo de um simples nome. Sigo de volta, e passo um tempo olhando suas fotos.
Além de fotos de rosto, vejo viagens, pets, amigos. Uma vida aparentemente interessante. Ela sabe se valorizar bem nos retratos que faz de si mesma, sempre ressaltando sua beleza natural. Não percebo muita maquiagem nem edições de imagem.
Suas fotos mais antigas não têm muita qualidade, provavelmente seu celular anterior não tinha uma câmera tão boa. Mesmo assim, desço até a última pois tenho curiosidade em saber como ela era antes de nos conhecermos.
Quando abro a primeira foto que postou em seu perfil, em 2015, algo me chama a atenção por ser diferente. De início não consigo dizer exatamente o que é, mas então encaro fixamente seus olhos e percebo: os dois são verdes, a exata mesma cor. Volto para a última foto postada para confirmar se o que tenho na memória de vê-la pessoalmente está correto, e está; um olho é verde, mas o outro é azul.
Aparentemente, ela finge ter heterocromia. Mas não faz muito sentido para mim, já que ela nem sequer mencionou a cor de seus olhos nas vezes em que conversamos. Não me parece ser um fato do qual ela gostaria de chamar atenção.
Talvez ela realmente tenha olhos de cores diferentes, mas antigamente usava uma lente de contato verde para disfarçar por algum motivo, o que agora não faz mais. Acho que isso é bem mais provável.
Um leve impulso de adrenalina percorre meu corpo quando vejo uma notificação de mensagem no topo da tela, vinda da própria Rachel. Aperto o botão de desligar e deixo o celular no sofá, indo passear pela casa para demorar a responder e não parecer uma desesperada por atenção. Alguns minutos depois, volto e leio sem abrir a conversa.
Oi, tudo certo?
Queria saber se você estará presente na igreja hoje à noite.
"Estará"?, penso num deboche mental. Ninguém fala assim por mensagens, mas talvez ela seja uma pessoa séria virtualmente. Preciso agir de acordo, então penso bem em como responder.
Olá, eu estarei, sim. Podemos nos encontrar por lá.
Assim que envio a mensagem, me arrependo em não ter colocado um ponto de interrogação no final. Ela pode pensar que a estou forçando a alguma coisa, mas agora já é tarde demais.
Sua resposta não chega no momento esperado, então desligo o celular novamente para evitar o constrangimento.
Me levanto para ir até o quarto e decidir as roupas que usarei à noite, mas o som de notificação do celular me faz retornar imediatamente. Já nem me importo mais em não parecer uma obcecada, mas não foi Rachel quem me mandou mensagem, e sim, Helena.
Não lembro se te falei, mas começa às 18h. Pode ir um pouco mais cedo, quero te mostrar uma coisa.
Os emojis de risada me fazem ficar imaginando o que seria essa tal coisa, e, sinceramente, posso imaginar de absolutamente tudo vindo dela. Mas então vejo o horário mais uma vez e um leve desepero toma conta de mim.
18 é daqui menos de duas horas, e por que tão cedo? Preciso me arrumar logo, e ainda nem tomei banho. Vou apressada ao segundo andar para ligar a banheira, percebendo no meio do caminho que esqueci de responder Helena. Bem, ela vai ter que esperar. Ninguém mandou me avisar sobre o horário de última hora.
Enquanto a banheira se enche de água quente, separo algumas opções de roupas para vestir. Não posso evitar que fiquem falando coisas sobre mim, então quero ao menos garantir que falem bem. Nada muito "vulgar", por mais que seja o que eu queira, pois tenho certeza de que as mentes retrógradas desta cidade vão fazer questão de usar isso para me criticar. Fico em dúvida entre duas opções, que são ao mesmo tempo bonitas, confortáveis e ideais para o frio. Deixo de lado e vou ao banheiro antes que a água ocupe espaço demais no meu banho.
Permaneço deitada na banheira durante o tempo que julgo suficiente para não me atrasar. No momento em que fecho os olhos, parece que automático ressurge em minha mente a visão do sonho que tive na casa de Helena.
Donnie. Eu ainda não o vi.
— Isso é ridículo — digo para tentar acalmar a mim mesma dessa sensação que de repente retornou a mim. Donnie está bem, e eu o verei hoje.
Termino o banho depois de mais algumas tentativas falhas de fechar os olhos. Desisto, me levantando para me secar o mais rápido possível e não passar frio. Com a toalha enrolada no corpo, olho mais uma vez para as roupas que estão na cama enquanto seco o cabelo. Finalizo passando um creme e penteando, e então decido pela peça com o sobretudo e calça vermelho escuro. Sei de uma bota que tenho e não uso há um tempo, mas que é da mesma cor. Sei que ainda vai me tornar alvo de comentários, mas já estou bem acostumada.
Volto ao primeiro andar para comer algo antes de ir, pegando meu celular para ver se Rachel disse mais alguma coisa. Vejo a notificação e logo abro a conversa para ver.
Que bom! Podemos fazer algo depois ou você tem outros planos para a noite?
Quero responder que nunca tenho planos para nada porque a única pessoa que converso por aqui é a minha irmã, mas não quero espantá-la assim.
Claro, eu estou livre hoje. Nos falamos melhor depois.
Esquento um sanduíche na frigideira apenas para matar a fome casual que surge todas as tardes, pois sei que vou jantar apenas depois do evento da igreja. Quando termino de comer, subo para escovar os dentes e finalmente ir, imaginando que Helena já deve estar lá me esperando.
Não tem muita gente nas ruas, provavelmente estão ou em casa terminando de se arrumar ou já lá na igreja. Imagino se Rachel não estará também, e se virá diretamente falar comigo.
No entanto, ao chegar perto da igreja percebo um vazio incomum no pátio. Não tem ninguém ali. Será que estão todos dentro?
Me aproximo da porta de entrada a passos demorados, olhando o tempo todo ao redor para chegar de novo e de novo se estou realmente no lugar certo.
— Estranho.
Abro a porta, surpreendida ao ver apenas uma única pessoa lá dentro. Está de costas, mas reconheço que é o pastor Felix. Ele está ajoelhado em frente à cruz vazia, fazendo uma oração. Caminho até ele silenciosamente, para não atrapalhar. Olho para os bancos, todos vazios, e me pergunto se não estou alucinando. Talvez eu esteja na igreja cheia de pessoas, todas elas me encarando enquanto caminho até a parte da frente.
— Tenho fé que o Senhor fará o que for necessário, e assim Te peço humildemente — ouço sua conversa particular com Deus e me sinto um pouco culpada. — Amém.
Quando estou prestes a me virar e sair da igreja, o pastor se levanta ainda olhando para a cruz.
— Chegou cedo, não?
Ele dá meia volta e olha para mim, abrindo um sorriso um tanto perturbador ao perceber que sou eu. Seus olhos azuis elétricos parecem olhar para dentro da minha alma.
— Minha irmã me disse para vir um pouco mais cedo, mas nem ela chegou ainda...
Ele ri, ajeitando o paletó cinza escuro e depois a gravata azul escura.
— Acho que você exagerou. Uma hora é bem mais do que "um pouco mais cedo".
Não sei o que dizer, visivelmente confusa. Não consigo entender como Helena me diz um horário e, quando chego neste horário, é cedo demais.
— Ela me disse 18 horas.
— Bem, começa às 19.
Sinto minhas sobrancelhas se apertando sobre os olhos, irritada. Por que é que ela iria me dar uma informação falsa desse tipo?
— Vadia desgraçada — me pego deixando escapar, sentindo vergonha imediatamente após o olhar reprovador do pastor. — Desculpe. Bem, o jeito é voltar depois.
— Sinta-se à vontade.
Ele então volta a sorrir com seus dentes exageradamente brancos, e permanece assim enquanto me viro para sair. Em um momento olho para trás, e ele continua sorrindo. É extremamente desconfortável.
Assim que chego ao lado de fora, inicio uma ligação com Helena para tirar satisfações. Estou aqui, sozinha, fazendo papel de palhaça por causa dela.
— Oi, o que foi?
— Que história é essa de dizer pra eu vir uma hora antes do horário certo?
Ela permanece quieta um tempo, aparentemente tão confusa quanto eu.
— Como é?
— Você, ué! Você me mandou aquela mensagem do nada dizendo que ia começar daqui a pouco, às 18 horas.
Mais um tempo em silêncio, e ela provavelmente abre a conversa comigo para entender o que aconteceu.
— Ah, é isso. Foi mal, eu digitei errado. É às 19 horas mesmo.
Reviro os olhos tão intensamente que eles doem.
— Pois então trate de vir logo! Eu não quero ficar aqui sozinha.
— Certo. Eu tenho que ir bem mais cedo mesmo, já estou aí, ok?
— Acho bom.
Desligo e então fico sem saber o que fazer. Olho ao redor e então percebo como a decoração finalizada ficou maravilhosa. Todos esses enfeites devem ficar ainda mais lindos à noite, quando as luzes foram ligadas. Mas agora sou a única pessoa aqui, e minha única alternativa é esperar
Helena chega cerca de quinze minutos depois, quando já estou prestes a ir até a casa dela puxá-la pelos cabelos até aqui. Donnie está junto, ainda lutando para se mover com as muletas. Nesse momento, ao vê-lo são e salvo, sinto como se toneladas tivessem sido tiradas de cima de mim.
— Irmã, me desculpa mesmo, eu nem tinha percebido — ela já chega se justificando, e dou de ombros. Cumprimento seu marido com um aceno de cabeça. — Ai, mas vem cá pra eu te mostrar aquilo! Fica aí, amor, a gente já vem.
Ela joga um beijo para Donnie, que fica abandonado na calçada, e me leva para o prédio ao lado da igreja, destinado aos eventos a parte dos cultos. Ela tira um molho de chaves do bolso e abre a porta de vidro, nos levando até um grande álbum de fotos que já estava previamente disposto em uma mesa.
— Olha só essas fotos que eu achei nossas! — ela diz sorrindo, e me aproximo para ver. Em meios a várias crianças brancas, estamos nós duas no canto, sorrindo com alguns dentes faltando na boca, sempre grudadas uma na outra. Não consigo deixar se sorrir também.
— Que fofas. Nem me lembrava dessas fotos.
— Tem muito mais! Eu passei muito tempo olhando ontem. Ai, que saudades dessa época.
Folheamos as páginas, observando as fotos que aparecemos. Em todas elas estamos juntas.
Não sei quanto tempo se passa, e quando percebo já está escuro lá fora e outras pessoas já apareceram. Em dado momento, Helena se despede temporariamente e diz que precisa ir, e eu continuo olhando o álbum.
Uma das fotos chama atenção por eu estar sozinha ao lado da árvore de natal. Eu devia ter uns quinze anos, nitidamente forçando um sorriso. Na época eu costumava alisar meu cabelo, que na foto cai sobre os ombros de maneira forçada. Sinto pena dessa menina por um momento, pensando em tudo que ela passaria apenas dois anos depois. Então um detalhe ao fundo me chama atenção.
A foto é colorida, e consigo distinguir uma mancha azul entre as árvores do plano de fundo. É pequena e quase imperceptível, mas por algum motivo me atrai. Parece que reconheço de algum lugar, mas não sei dizer de onde.
Decido fechar o livro e ir até a igreja me sentar em um dos bancos e esperar. Encontro algumas pessoas andando para lá e para cá no caminho, mas nenhuma criança. Devem estar todas no mesmo lugar, monitoradas a fio por um adulto responsável.
Entro na igreja e observo para ver se encontro Rachel, mas ela ainda não chegou. Vou até um dos bancos e me sento para guardar lugar, e então sinto meu coração acelerando de repente, sem motivo nenhum. Aos poucos também percebo que minhas mãos tremem, mas não consigo identificar um motivo. Talvez seja o nervosismo de pensar em Rachel.
Besteira. Eu mal a conheço.
Mas então também sinto falta de ar, e todas essas pessoas falando ao meu redor passam a me incomodar. Também percebo que todas as portas e janelas estão fechadas, o que me deixa levemente claustrofóbica. Decido me levantar para ir até o lado de fora tomar um ar, mas assim que faço isso as luzes se apagam. Tudo fica escuro.
As crianças, que vi agora há pouco todas sentadas nos primeiros bancos, começam a chorar, e logo todos passam a falar ao mesmo tempo. Depois, começam a caminhar, e sinto várias pessoas esbarrando em mim. Perco o equilíbrio e caio no chão.
Uma situação simples como um apagão de repente se torna uma espécie de apocalipse, todos falando, gritando e caminhando para tentar achar a saída, mas é difícil na escuridão total. Ninguém encontrou a porta de entrada até agora, e tento gritar para que percebam que estou no chão, mas é inútil. Sinto pessoas pisando em mim, e sinto que posso morrer pisoteada aqui mesmo, uma vítima do pânico coletivo.
E então um toque diferente vem a mim, uma mão se fechando ao redor do meu braço. As unhas se apertam me causando dor, e me arrastam em direção a um local que não sei dizer qual.

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