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New Chamor, 13 de janeiro de 2018
23:30
30 minutos

Tento desesperadamente me soltar dos braços do homem, mas ele é forte e sabe que estou machucada. Na verdade, ela está forte. Nunca vi a Lacuna assumindo essa forma, mas sei que é ela. Os olhos azuis reluzentes a entregam.

Estou aflita e morta de medo. Ela está me levando de volta à cabana para fazer sabe-se lá o quê comigo.

Acabou. É o fim. É o meu fim.

— Me solta, sua múmia dos infernos!

— Cale a boca — diz a voz grossa do pobre homem que teve seu corpo roubado pelas garras impiedosas da Lacuna. — Você precisa voltar para ver.

— Ver o quê?! — já estou sem paciência, e começo a desejar que ela simplesmente me mate aqui agora mesmo. — Você já não se divertiu o suficiente?

— Ela ainda quer você viva.

Não digo mais nada, pois estou confusa. Ela, quem? A Lacuna, por acaso, tem uma chefe, gerente, ou algo assim?

A unica parte boa dessa situação é que as mãos do homem são quentes, e sinto um pouco menos de frio enquanto sou arrastada floresta adentro. Olho para o céu e percebo que as nuvens se dissiparam, revelando a lua e todo seu resplendor reluzente em sua fase cheia. Não sei o que significa, mas a lembrança do tal "evento grandioso" invade minha mente e me gera arrepios.

Conforme avançamos em frente, tenho um vislumbre de algo colorido brilhando algumas dezenas de metros à frente. Chegando mais perto, identifico uma fogueira.

Uma fogueira com chamas azuis.

Bem atrás dela, virada de costas, identifico uma silhueta feminina.

Preciso forçar muito a vista, mas então finalmente consigo ver melhor suas características físicas. Cabelo loiro, cortado na altura dos ombros, roupas brancas e luxuosas. Quando ela se vira, seus olhos azuis brilham como duas estrelas apontadas diretamente para mim.

É ela. É a Lacuna.

— Eu não sou nenhuma burra, Sarah Miller — diz a voz que um dia pertenceu a Rachel Winter, mas que agora está na posse desse ser asqueroso que destruiu minha vida. — Há dias eu suspeitava de suas intenções. De qualquer maneira, eu jamais deixaria que você fosse para muito longe daqui...

Ela estala os dedos e imediatamente o homem que me segura começa a me empurrar para perto da fogueira. Então percebo: se a Lacuna esteve aqui esse tempo todo, quem é ele?

— Onde está Lilith? O que você fez com ela?

— Como eu já havia dito, quero muito que vocês duas vejam tudo com seus próprios olhos. Ela está bem, não se preocupe.

— Eu não acredito em você. Cadê ela?

A Lacuna sorri debochando com o canto dos lábios.

— Mantenha ela no lugar, ouviu bem? — ela diz para o homem que me segura, e ele me aperta mais forte. — Aliás, gostou do meu ajudante? Descobri que posso controlar as pessoas para fazerem tudo o que eu quero.

Ela ri como uma vilã da Disney e se vira caminhando em direção à cabana.

— Quem é você?

— Eu sirvo apenas à Lacuna, senhorita.

— Qual é o seu nome?

— Eu não tenho mais um nome — a voz do homem soa robótica e programada. — Agora eu pertenço apenas a ela, não preciso de um nome.

Toda essa situação é apenas tão ridícula que começo a rir de nervoso. Um evento promovido pela Lacuna com uma fogueira azul em uma noite de lua cheia. Se, dez anos atrás, alguém me dissesse que eu passaria por isso, eu teria mandado essa pessoa pra puta que pariu.

Alguns minutos se passam e então a Lacuna retorna, segurando Lilith. Dou graças aos céus por vê-la viva, mas é nítido que nenhuma de nós duas está bem.

— Eu pensei que você fosse conseguir — diz ela com um sorriso triste, mas não como se estivesse decepcionada comigo ou algo assim. Sinto verdade em suas palavras. — Você é fodona demais.

— E eu pensei que ela tivesse te matado.

— Quietas, vocês duas! Prestem bem atenção. Vocês farão tudo o que eu mandar, está bem? — a Lacuna empurra Lilith em minha direção e o homem a segura com a outra mão. Sem muito esforço, mantém nós duas imobilizadas. — Ajoelhem-se.

O homem nos impulsiona para a frente a fim de nos fazer obedecer. Sinto o calor do fogo penetrar meu rosto, quase queimando minha pele.

— Prestem bem atenção — a Lacuna se agacha, revira na neve acumulada no chão e retira de lá um pote contendo algo. Depois de forçar um pouco a vista, sinto calafrios ao perceber que são vários olhos humanos. — Assim que a lua estiver no centro do céu, o destino deste mundo estará selado. Vocês duas serão o meu sacrifício para que o Universo aja em meu favor. Agora, ouçam bem.

Ela abre o pote e despeja todos os olhos de uma vez dentro da fogueira, fazendo suas chamas sacudirem por um momento. Então fecha os olhos e junta as mãos em um símbolo esquisito que nunca vi. Parece fazer uma breve meditação antes de recitar:

Parentes coelestes, adesto mecum in hoc magno novo itinere. Astra conlinea ut me in hac nova vitae periodo comitentur. Omnia mutabilia sunt. Gloria sapientibus, qui me ex suis magnificis studiis creavit, honor et memoria semper me comitantur.

Não tenho ideia do que essas coisas significam, mas sinto imediatamente a energia do local se manifestar de forma mais intensa. Um vento surge na direção oposta da Lacuna, intensificando o fogo em minha frente. Lilith e eu nos encaramos assustadas, sem saber o que fazer. Olho para o céu e vejo que a lua está quase alcançando o ponto central. Meu coração dispara com a incerteza do que está por vir.

A Lacuna repete a frase, sua voz engrossando cada vez mais e adquirindo um tom demoníaco. Folhas farfalham ao nosso redor, e penso estar ouvindo até um lobo uivando longe daqui.

Então, quando menos espero, Lilith se levanta, golpeia o pescoço do homem e o arremessa contra o fogo. Ela puxa meu braço para me levantar e começamos a correr.

Olho para trás e vejo apenas a silhueta escura do homem se debatendo nas chamas e uma Lacuna furiosa nos encarando.

— Não olha pra trás! A gente precisa correr!

Obedeço aos comandos de Lilith e só consigo pensar em como teríamos sido ótimas amigas caso tivéssemos nos conhecido antes. Ela é tão forte e inteligente que não consigo assimilar.

Mas agora não posso pensar sobre isso. Preciso correr, dar minha vida nessa fuga. A primeira não funcionou, mas agora precisa dar certo. Principalmente porque a própria Lacuna agora está vindo atrás da gente.

Ouço um grito demoníaco de longe e sei que ela se transformou. Se formos pegas, tudo está acabado.

Tropeçamos algumas vezes em galhos e pedras, mas não o suficiente para nos fazer cair. Corremos em curvas e zigue-zagues, tentando despistar nosso rastro. Mas é muito difícil fazer isso no escuro, e me sinto muito cansada pela correria.

— Ali! — digo ao ver uma luz, felizmente não azul, refletir em algum canto à nossa frente. — Vamos!

Estamos segurando nossas mãos para ficarmos juntas o tempo todo. Mal consigo respirar, mas mesmo assim continuo tomando a frente na corrida.

Mas logo me arrependo ao perceber que a luz é uma lâmpada pendurada em uma cabana. Fizemos tantas voltas para despistar que acabamos retornando ao ponto inicial.

— Não pode ser — Lilith leva as mãos ao rosto, tremendo e desesperada, assim como eu. — Estamos perdidas! É impossível sair daqui!

— Não, não é impossível! Eu cheguei à cidade antes, só preciso me lembrar por onde fui...

Fecho os olhos e aperto as têmporas para me forçar a traçar um mapa da minha fuga anterior. Conseguiria se estivesse de dia, mas à noite parece uma tarefa que simplesmente não pode ser realizada.

Mais uma vez, levanto o rosto para ver a lua. Ela está quase lá, e me sinto correndo contra o tempo.

— Lilith, a solução é correr em linha reta, sem ficar fazendo curvas. Vamos — tento segurar sua mão para continuar, mas ela não está mais aqui. Simplesmente sumiu. — Lilith?! Ah, não...

Olho ao redor ainda mais aflita, e vejo um corpo esquelético azul se afastando em direção ao escuro. É ela, e agora está brilhando completamente, não apenas nos olhos.

E ela levou Lilith.

Nunca pensei que fosse fazer isso, mas agora eu estou correndo em direção à Lacuna. Sei que é exatamente o que ela quer, mas não posso deixar que nada aconteça com Lilith.

Nem que eu precise dar minha vida por isso.

O brilho azul corre rápido, mas eu aperto o passo e corro mais, mesmo que ainda dolorida.

Então ele para. Fico até um pouco confusa, mas é isso mesmo. Eu, no entanto, continuo correndo até alcançar, e ao chegar perto vejo Lilith caída, recostada no tronco de uma árvore. A Lacuna, em sua forma física original, olha para mim.

— SUA PUTA! EU TE ODEIO!

Sem pensar duas vezes, porque se realmente pensasse jamais faria isso, corro na direção do ser esquelético para tentar atacá-lo. Consigo segurar seus braços por alguns segundos, mas logo surgem outros dois que perfuram meu abdômen e conseguem me conter. Sinto o sangue escorrer pelo meu corpo e a dor insuportável de suas garras me penetrando. Ela faz seus sons animalescos e me levanta, me deixando suspensa no ar.

Minha visão começa a embaçar, mas ainda assim consigo dar uma olhada em todos os seus detalhes. Principalmente o coração gigante e azul, que pulsa à mostra em meio aos seus ossos.

A Lacuna agora é apenas uma criatura feita de ossos, e sei que seu crânio não possui músculos que formem expressões faciais. Mas ela olha para mim e sorri. Sorri porque sabe que venceu. E eu sei que perdi.

Uma de suas mãos é levada ao meu pescoço, e ela começa a brincar passando as unhas pela minha pele. Está se divertindo com a presa antes de devorá-la.

Fecho os olhos e começo a aceitar meu destino. Eu o adiei enquanto pude, mas agora não há mais nada a se fazer.

Quando estou preparada para ver a luz branca e partir em direção a ela, de repente caio no chão. Levo um susto ao ver Lilith em pé, perfurando repetidas vezes o coração da Lacuna com um galho de árvore afiado. Ela, por sua vez, grita de dor e por se sentir sem o poder talvez pela primeira vez em sua vida.

Em poucos segundos, a Lacuna está morta.

— Puta merda, ela quase matou você!— Lilith se ajoelha e me abraça, e consigo sorrir e retribuir apesar da dor que sinto no abdômen. — Acabou. Dá pra acreditar nisso? Acabou! Vamos sair daqui.

Ela me ajuda a levantar e começamos a caminhar para tentar achar uma saída. Estou feliz pela Lacuna ter morrido, mas ainda assim não consigo acreditar que acabou.

A lua se movimenta em direção ao centro do céu. O que vai acontecer quando ela chegar?

Lilith diz mais algumas coisas, mas não consigo prestar atenção. Apenas olho para a lua, cada vez mais perto. Então,  ela chega.

Está lá, centralizada na escuridão do infinito, mas nada acontece.

Bem, é o que parece.

Lilith e eu caminhamos até um espaço aberto, uma área plana com inúmeros pontos azuis na terra abaixo de nós. Parecem cristais afiados, e a luz da lua os ilumina diretamente.

Então, eles começam a se mexer.

Não são cristais. São dedos.

Cada um deles começa a sair da terra como zumbis em filmes de terror. Os dedos se transformam em garras, que viram mãos. Centenas de mãos azuis esqueléticas saindo do solo, como plantas que foram cultivadas e agora finalmente cresceram.

— Então era isso... — é tudo o que consigo dizer. Lilith me encara gélida, sem saber o que fazer.

Juntas, nos abraçamos uma última vez enquanto os infinitos filhotes da Lacuna saem da terra e vêm em nossa direção.

Fim.

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