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New Chamor, 25 de outubro de 2004
15:40
13 anos, 2 meses e 19 dias
Matei a última aula de novo, e agora estou passeando no meio das árvores até ouvir o sinal da escola tocar e poder voltar para casa sem que meus pais saibam o que fiz. Tenho certeza de que em algum momento serei descoberta, mas prefiro evitar por agora. Chuto algumas pedrinhas e gravetos que se espalham pela terra ainda úmida da chuva de ontem.
Ouço um passarinho cantar bem acima de mim, pousado num galho fino. Ele tem penas com belas cores quentes e contrastantes com o verde da floresta, o que lhe chama bastante atenção. É lindo, mas sua beleza pode ser fatal por basicamente soar como uma gigantesca luz vermelha que brilha e indica aos predadores aonde devem ir.
— Sua qualidade também é um defeito — reflito ainda olhando para cima. — Eu poderia apostar dinheiro que você não vai viver por mais muito tempo.
Já estou ficando entediada de vir aqui quase todos os dias, mas ainda assim prefiro isso a ficar sentada numa daquelas cadeiras duras enquanto ouço o Sr. Watterson falando sobre conceitos matemáticos cuja única serventia é preencher um caderninho com as matérias obrigatórias que o governo impõe. A voz dele é tão entediante que poderia ser encapsulada e vendida como remédio para insônia.
Além disso, não aguento ficar tanto tempo em um local cujo outras pessoas ali presentes estão atualmente falando sobre mim.
Não sabia que havia me tornado um dos principais assuntos do colégio todo até ontem, na primeira aula do dia. Reparei que muitas pessoas estavam olhando de canto para mim, e eu tinha certeza disso pois meu lugar nas salas é sempre na última carteira, no canto das paredes sem janelas. Foi quando perguntei a Alec o que estava acontecendo e ele se virou para trás e cochichou em meu ouvido: estão dizendo que você... você sabe.
Demorei a entender, mas então percebi.
No início do ano letivo, uma das professoras do ensino médio mais respeitadas e que já nos lecionava há muitos anos simplesmente não havia mais sido vista. Todos ficaram especulando o que havia acontecido até na sexta-feira passada, quando descobriram que ela havia se mudado para a Nova Zelândia com a sua noiva — uma mulher que ninguém sabia existir, mas que já se relacionava com ela há tempos. Depois que essa informação foi revelada, o assunto ficou na boca do povo pelo resto do dia.
Agora eu sei porque todos estavam olhando para mim. Eles acham que eu também sou lésbica.
É claro, eu dou todos os motivos para acreditarem nisso. Não tenho "traços e comportamentos femininos", sou agressiva quando fazem algo que não gosto, sou uma das poucas garotas que nunca apareceu com um namoradinho, uso calças e camisetas largas, não gosto de me entupir com acessórios, só tenho amigos garotos...
E o pior de tudo é que eles estão certos. Eu não sou uma adolescente normal, e já sei disso há muito tempo.
Eu sei que isso não é um defeito. Sei que não sou "errada", mas é muito difícil fazer com que os outros pensem o mesmo. A única pessoa em quem confiei totalmente para dizer a verdade pela minha própria boca foi Helena, para quem eu comecei a contar aos poucos meses atrás, e hoje ela sabe e convive bem com isso. Não tem nenhum problema com as minhas questões e é por isso que a amo tanto.
Fico pensando nisso e em outras coisas tão distraída que nem percebo o tempo passar. Ouço o sinal do fim das aulas e corro apressada para voltar ao prédio como se estivesse lá o tempo todo, passando por entre os outros alunos nos corredores até chegar ao meu armário.
Sinto calafrios ao perceber que a diretora está parada bem em frente a ele, e meu pai está ao seu lado.
Penso em me virar e fingir que não os vi, mas já é tarde demais. Ouço meu nome sendo chamado pela voz de crocodilo da diretora Amber e sei que preciso ir até lá. Não sei o motivo pelo qual meu pai veio ao colégio, mas com certeza não é nada bom.
— Srta. Miller, vamos até minha sala — a diretora tenta parecer elegante, mas está visivelmente brava a ponto de não conseguir manter a postura. Meu pai não diz nada enquanto nos acompanha, mas em um momento se vira para mim e sorri balançando a cabeça, como se dissesse que não estou encrencada. Ao menos não com ele.
A escola não é tão grande, e então já estamos logo na sala bem decorada à moda antiga em que a diretora Amber passa seus dias trabalhando. Ela nos manda sentar nas cadeiras postas em frente à sua mesa e começa a procurar nas gavetas de um arquivo de aço. Solta um longo suspiro após finalmente tirar uma ficha dentre várias outras na parte da letra S. Por fim, senta-se em frente a meu pai e eu e abre a ficha com o meu nome.
— Onde você esteve durante as últimas aulas, Srta. Miller?
Sei que não adianta mentir agora, e por isso resolvo ser completamente honesta.
— Lá fora.
— Não deveria — seu tom de voz irritado me assusta um pouco. — Durante o horário de aulas, você deveria estar presente... nas aulas. O senhor não concorda, Sr. Miller?
Olho para o meu pai esperando um semblante decepcionado, mas ele parece extremamente tranquilo.
— Sim, mas tenho certeza de que existe um motivo para ela ter feito isso. Nunca antes precisei ser chamado aqui por algo assim.
Troco o olhar para a diretora, que cruza os dedos abaixo do queixo e encara meu pai como se dissesse "ah, conte-me mais", mas ela apenas diz:
— É verdade. Como pode ver, sua ficha está limpa — Amber folheia as páginas em branco que indicam uma aluna comportada e obediente. — Mas ando recebendo reclamações de professores ultimamente. Dizem que Sarah pede para ir ao banheiro durante a aula e não retorna mais à sala. Sabe quantas vezes isso já aconteceu desde o início do mês, Sr. Miller?
— Não. Não sei.
— Oito vezes. Em oito matérias diferentes.
Fico chocada porque nem eu mesma me lembrava de ter feito isso tantas vezes. Mas o meu pai não parece irritado, chateado ou nada disso. Ele permanece quieto com as mãos sobrepostas em seu colo.
— São oito vezes em menos de um mês. Isso está saindo do controle — a diretora pega uma caneta de seu pote e procura uma folha na gaveta da mesa. — Preciso que o senhor assine aqui e garanta que sua filha não faça mais isso. Caso contrário, será suspensa.
Ela olha para mim e de repente já não parece mais tão irritada.
— Estou pegando leve justamente porque você não possui nenhum histórico do tipo. Não sei por que anda matando aula, mas acho bom que você resolva essas questões, tudo bem?
Aceno com a cabeça, mas tenho vontade de dizer a ela para ser uma diretora decente e prestar atenção no que os alunos andam comentando sobre os outros e acabando completamente com suas autoestimas e vontade de ir à escola. Permaneço calada, no entanto.
— Tudo bem, senhora diretora, garanto que tal fato não tornará a se repetir — meu pai diz com uma formalidade exagerada ao terminar de assinar o papel, e sei que ele está debochando da situação. Tento conter um riso.
Nos levantamos para ir embora, e assim que saímos da sala começamos a rir. Meu pai me leva até o lado de fora do colégio para então iniciar a conversa sobre o assunto.
— Sarah — ele diz ainda enquanto caminhamos. — O que aconteceu?
— Nada.
A questão não é que eu quero esconder algo dele, porque sei que ele me apoiaria ficando contra qualquer um que me perturbasse. Mas é constrangedor para mim falar sobre esses rumores com alguém sabendo que teria a pergunta inevitável: "E isso é verdade?"
Não sei se estou preparada para isso.
— Eu sei que não é verdade. Olha, se você não quiser me contar tudo em detalhes, eu não vou te forçar. Só preciso saber que tem alguém te perturbando.
— Eu não sou criança, pai. Sei me cuidar sozinha.
Ele ri, mas não acho graça nenhuma. Tenho quase dezessete anos e não preciso mais do papai me defendendo.
— Mesmo quando criança você se cuidava por conta própria. Lembra aquela vez, no parquinho, quando um menino idiota qualquer tentou mexer com você e voltou pra casa de olho roxo? Depois disso, nunca mais ninguém tentou te incomodar.
Meu pai não está mais rindo, mas olha para mim com orgulho. Coloco as mãos no bolso da calça e chuto algumas pedrinhas da rua.
— É só adolescentes sendo idiotas. Normal. Eu só não tenho mais paciência pra isso e resolvi tirar alguns momentos de paz. Eu estou errada, por acaso?
— Sim, você está. Poderia ter sido suspensa.
— Mas não fui.
Ele não responde. Continuamos seguindo nosso caminho até casa em silêncio até que meu pai resolve quebrá-lo da pior maneira possível.
— Sarah.
— Sim?
— Desculpe, eu não consigo não falar sobre isso. Você gosta de garotas?
Posso jurar que meu coração parou de bater. Mesmo com o sol escaldante do fim de tarde, sinto meu corpo esfriar.
Não respondo.
— Eu fiquei sabendo daquela sua professora. Deve ser disso que todos estão falando e te deixando desconfortável, não é?
Aperto os lábios e desvio o olhar. Não sei o que fazer. Estou em pânico e não tenho ideia de como reagir.
— Escute, Sarah, eu sempre tive essa desconfiança sobre você. Você não percebia, mas eu notava como você olhava de maneira diferente para as fotos de mulheres nas revistas ou então aquelas estampadas nas embalagens de calcinhas nas lojas de roupa. O jeito como você sempre evitou ficar perto dos garotos e como reagia quando algum tentava falar com você. E sabe o que eu acho disso?
Ele toca suavemente meu queixo para fazer com que eu o olhe nos olhos. Continuo calada.
— Eu acho que se esses adolescentes têm alguma coisa contra você, eles deviam ir pra puta que pariu!
O constrangimento se quebra. Finalmente olho em seus olhos, mas rindo de nervoso.
— Pai! Que linguajar é esse?
— Eu estou falando sério. Você é minha filha e eu amo você mais que tudo. Eu não me importo se você quer se casar e construir uma família com uma mulher, não me importo também se você não quer. Se estão dizendo por aí que você é lésbica, sendo isso verdade ou não, foda-se, sabia? Porque você é uma menina de personalidade incrível e é minha filha. Isso é tudo que importa pra mim, sabia?
Não consigo conter as lágrimas. Tiro as mãos do bolso e envolvo meus braços ao redor de meu pai, segurando-o como uma criança que caiu da bicicleta. Ele nunca foi um cara de muitas palavras, e saber disso torna tudo ainda mais emocionante. Jamais imaginei uma reação desse tipo vindo dele. Mas agora sei que está tudo bem.
New Chamor, 1 de novembro de 2004
16:10
13 anos, 2 meses e 12 dias
Fiquei surpresa ao chegar em casa e não ter ninguém aqui. Meus pais e Helena não avisaram que estariam fora, mas pelo menos sei que existe uma chave reserva enterrada num dos vasos de flor. Agora estou no meu quarto comendo alguns doces que sobraram do Halloween ontem. Meus pais sempre compram uma quantidade muito exagerada para a quantidade de crianças que passa aqui na porta pedindo por doces ou travessuras, e então todos os anos eu e Helena precisamos dar fim ao que sobra.
Não teve um dia desde semana passada que não pensei no que meu pai me disse. Nós não falamos mais sobre o assunto, mas sei que isso não é mais algo a se esconder, ao menos não com ele.
Assim que termino de lamber os dedos com chocolate, me levanto da cama para olhar os materiais e checar os deveres de casa. Me sento à escrivaninha para começar as lições, mas então percebo um papel diferente posicionado sobre os meus livros didáticos.
Abro o papel, surpresa com a assinatura que encontro no final da página.
Minha filha Sarah,
quero dizer que, honestamente, não tinha pensado em deixar este bilhete particular a você. Por favor, não chore. Não sei em que momento você está lendo, mas peço que não se desespere. Sua mãe saberá o que fazer.
Senti a necessidade de lhe escrever depois da nossa conversa. Você sabe qual. Quero apenas reforçar que não tenho qualquer sentimento negativo sobre você, minha filha. Você é única e especial para mim, você e sua irmã, e saiba que amei vocês duas mais que amei a mim mesmo.
Estive pensando muito sobre a decisão que tomei, e quero que saiba, Sarah, não está relacionado a você. Quis até adiar para que você não sinta que tem um papel importante nessa decisão, mas não sei se consigo mais. Por isso estou escrevendo. Você foi o motivo que me fez querer viver um pouco mais. Eu juro por Deus, Sarah, foi você quem me manteve aqui nos últimos anos.
Mas agora não consigo mais. Sinto muito, minha filha. Eu amo você.
Com muito amor para sempre e um pouco mais,
seu pai, Stephen.
Meu desespero não pode ser contido, assim como as lágrimas que escapam sem controle algum. Trêmula, desço as escadas do porão e encontro meu pai pendurado com uma corda ao redor do pescoço.
O que achou do capítulo? Gostou? Comente pra eu saber, e não esqueça de votar. Até o próximo!
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