capítulo 28

   — Fica aí enquanto eu não volto — o homem riu cinicamente. — Como se você tivesse outro lugar pra ir.

Não era um rosto familiar que puxara Guilherme no jardim e o levara até aquele local desconhecido, o que o deixou muito mais aflito do que a situação toda poderia exigir. Ele não sabia onde estava, muito menos por que estava, e só desejava acordar e descobrir que estava sonhando.

O barulho de passos em direção àquele cômodo escuro, estranho e assustador se intensificou, e Guilherme se encolheu assustado em um canto.

— Eu estou muito feliz em reencontrar o meu querido neto — disse pausadamente o homem que chegava, iluminado apenas pela luz de outro cômodo que atravessava a porta, o homem que Guilherme sabia muito bem quem era. — Você não faz ideia do quanto eu senti saudades.

— Você é maluco — Guilherme ousou dizer, sem saber de onde havia tirado coragem. — Onde você tá com a cabeça?

— Faço tudo para ter o que eu quero. E o que eu quero agora é você — ele ligou a luz, revelando por completo sua identidade.

Anton estava mal, com a aparência horrenda. Estava sem dúvidas mais magro, como se não tivesse comido nada desde a última vez que Guilherme o vira. Cabelos bagunçados e a barba por fazer davam o ar da graça no show de horrores em seu rosto.

— Inclusive matar pessoas, né, filho da puta?

Anton sorriu.

— Só quando é preciso, entende?

Guilherme olhou ao redor. O cômodo até que era razoavelmente grande, mas sem janelas. Havia uma cama velha, mas com colchão, lençol e um travesseiro com fronha limpos. Havia também um vaso sanitário e uma pia, mas soltos, sem direito a privacidade, a não ser que a porta do quarto estivesse fechada.

— Pode dormir, já está tarde — de braços cruzados, Anton indicou a cama com a cabeça. — Já aviso que não adianta gritar, ninguém vai te ouvir.

— Por que eu? Por que você me sequestrou?

O velho sorriu novamente, e se virou para sair do quarto.

— Você foi o primeiro a me ver. Você foi o escolhido. Boa noite.

Ele então desligou a luz e saiu, deixando Guilherme sozinho na escuridão.

***

— Eu sabia, eu sabia que tinha alguma coisa errada com o Guilherme— Leslie dizia enquanto andava de um lado para o outro na delegacia. — E você sabia de tudo, que ódio!

Ela deu um soco no braço de Alex, que se afastou imediatamente.

— Por que vocês não fizeram nada antes? Você sabia que tinha alguém ameaçando o meu irmão.

— Anjo de luz, nenhum de nós tem culpa por isso. E eu não sou onisciente — respondeu Vera, que já não aguentava mais ouvir Leslie falando o tempo todo. — Eu já mandei uma equipe pra vasculhar todas as casas que possivelmente poderiam abrigar alguém sequestrado que existem por aqui. E já espalhamos fotos do seu irmão por aí, então se você tem alguma sugestão a mais, eu estou aceitando.

O dia começava a raiar, e, depois de uma longa espera, o delegado Luis finalmente chegou para cuidar do caso. Ele levou Alex e Leslie separadamente até sua sala para que pudesse ouvir seus relatos da noite de Réveillon, que acabou se tornando palco de uma tragédia.

Ele coletou todas as informações e logo concluiu que Guilherme poderia ter sido levado por alguém que conhecia muito bem o orfanato, e ordenou que todos os funcionários presentes no local na virada do ano prestassem depoimento no mesmo dia.

— Você não acha que também deveríamos falar com alguns dos órfãos? — Vera sugeriu ao delegado. Com certeza ajudaria muito, não?

— Sim, você pode fazer isso lá, mesmo. Não quero que a delegacia vire a casa da mãe Joana.

Alex e Leslie tiveram que esperar um pouco até serem liberados, e nesse tempo pensaram em como suas vidas eram ridículas.

**

— Aqui seu café da manhã — um prato com um sanduíche e um copo de café foi lançado ao quarto, e em seguida a porta se fechou. — E pode comer tudo, viu? Não está envenenado, até porque eu quero você bem vivo.

Guilherme foi despertado do sono naquele momento. Xingou Anton mentalmente por isso, pois havia demorado para conseguir dormir. Ele andou desorientado pelo quarto, guiado apenas pelos feixes de luz da porta, e ligou a luz. Sem pestanejar, devorou o sanduíche e o café, morto de fome.

— Não acredito que isso tá acontecendo. Não pode ser real.

E então Guilherme voltou para a sua cama, e jogou seus sentimentos para fora chorando no travesseiro.

***

— Muitas pessoas já estão falando sobre ele nas redes sociais, em vários grupos de brechó, de bairros, e até nas páginas da prefeitura — Rafaela tranquilizava Leslie no quarto das meninas.

— A cidade toda já conhece o rosto dele, não se preocupe — Anna também tentou dizer algo para acalmar a amiga.

— E também tem aquele retrato falado do possível sequestrador, todo o mundo já tá sabendo — Julia disse, pousando sua mão sobre o ombro de Leslie. — Vai ficar tudo bem.

— Obrigada, gente, mas eu não penso assim — disse Leslie sinceramente. — No geral eu até pensaria, mas vocês não sabem com quem a gente tá lidando.

— No fim, tudo sempre fica bem — disse Rafaela, sem dúvidas a amiga mais próxima que Leslie tinha ali. — E já existiram vários casos de sequestro em que tudo ficou bem no final. A Natasha Kampusch, Elizabeth Smart... me ajuda, gente — cochichou ela para as outras amigas.

— Não importa quantos, e nem quem. O que importa é que o Guilherme está bem, e vai aparecer por aí uma hora — disse Julia, tentando encerrar o assunto por ali.

Batidas na porta ecoaram pelo quarto, e Julia foi abri-la. Alex estava lá, com o celular no ouvido, e acenou a Leslie para que fosse até ele. Ela se levantou e cruzou o quarto, fechando a porta ao sair.

— Quem é? — perguntou ela.

— É a Raissa. Quer falar com você.

Antes que Leslie pudesse esboçar qualquer reação, Alex entregou-lhe seu celular, que ela levou ao ouvido e começou a falar.

— Alô?

— Oi, Leslie. Fiquei sabendo do seu irmão.

Nosso irmão, pensou ela, mas não disse nada.

— Ah — foi tudo o que conseguiu responder.

— Olha, desculpa eu ter sido meio babaca com você aquele dia. Ainda não gosto de você, mas eu não sou tão filha da puta ao ponto de ignorar algo assim.

— Tá. Eu te desculpo, mas... o que exatamente você quer?

Leslie sorriu levemente, pensando em como tinha virado o jogo.

— Essa frase é minha — disse Raissa. — Mas, enfim, eu estou ajudando a divulgar o desaparecimento, e meus pais são advogados. Você pode dizer pro seu conselheiro tutelar que eles estão disponíveis, ok? Pra qualquer coisa que precisarem.

— Obrigada.

— Eu ia pedir pra gente se encontrar de novo, mas acho que não vão mais te deixar sair, né?

— Não mesmo.

— Bom. Seu irmão tem o meu número. Pede pra ele me ligar, se precisar. Tchau

— Espera — Leslie disse alta e desesperadamente, antes que Raissa pudesse encerrar a ligação. —, eu ainda preciso falar com você. Algumas perguntas.

Leslie não pôde ver, mas sentiu Raissa revirando os olhos no outro lado da linha.

— O que foi?

— Você realmente falou a verdade sobre a nossa mãe?

— Sim, ué — Raissa disse espontaneamente. — Não tenho culpa que te fizeram lavagem cerebral e você achava que ela tinha morrido.

— E você acha que existe alguma chance de eu conseguir falar com ela?

— Se eu te ajudasse, sim. Mas acontece que, no momento, eu não estou nem um pouco a fim. Desculpe, mas eu não sou obrigada.

E então a ligação foi encerrada.

— Que ridícula — disse Leslie chateada, e entregou o celular de volta ao irmão.

— Ela é legal comigo — disse Alex com um sorriso. — Acho que não gosta muito de você por causa do... rosto. Ou sei lá.

Leslie bufou, e percebeu que o cabelo do irmão estava solto e se descolorindo.

— Você não vai mais pintar?

— O quê? — perguntou Alex, sem entender do que Leslie estava falando. Ao ver os olhos da irmã fitados no topo de sua cabeça, entendeu e começou a rir. — Ah. Não, acho que não. Cansei.

— Bom, eu acho que você fica bem de qualquer jeito.

— Sei lá. Eu acho que estava machucando demais o meu cabelo, e decidi parar por isso também. Enfim — ele colocou o celular no bolso. — Tomara que o Guilherme esteja bem. Não suporto ficar longe dele.

— Nem me fale — Leslie entrelaçou seus dedos aos do irmão. — Não suportaria perder mais alguém. Isso já aconteceu demais nos últimos meses.

***

Guilherme balançava o pé que estava para fora da cama enquanto olhava para o teto. Sem dúvida o cativeiro na ilha era muito melhor que aquele, mas esse luxo ele já não tinha mais.

Olhou ao redor pela milésima vez naquele dia. Não sabia que horas eram, muito menos que dia era. Sabia, no entanto que já havia feito uma refeição naquele dia, e que a próxima e última seria em breve; já estava anoitecendo.

Ele bufou. Levantou-se da cama e foi até a pia lavar o rosto. Sentia-se sujo, imundo. Um rato. Não tomara banho nem uma vez sequer desde que havia sido raptado.

Então a porta de metal do cômodo se abriu, e lhe foi despejado a comida: um hambúrguer pequeno de uma rede de fast-food e uma garrafa d'água.

— De novo isso? — reclamou Guilherme, exausto por sempre ser a mesma coisa para comer.

— Tá achando ruim, Guilherme? — debochou Anton, fechando a porta novamente. — Faz o seguinte: morre de fome. Facilita as coisas pra mim. Aí só vai faltar três pessoas pra eu me livrar.

Algo naquela frase lhe soou familiar, e então Guilherme lembrou-se do sonho que teve semanas antes.

"Quando eu der um jeito em você, vão ser só mais três."

Quando não aguentou mais manter os olhos abertos, Guilherme foi dormir, com apenas um pensamento:

Eu preciso fugir. E eu vou fugir.

***

Novamente Guilherme acordou com esmurros na porta de metal. Rapidamente se levantou e foi receber sua primeira refeição do dia, o que indicava que ele havia dormido até tarde.

— Você tá fedendo. Tira a roupa, e dá cá pra eu lavar.

Guilherme olhou confuso para Anton.

— Toda a roupa? Tudo mesmo?

— Não, né! Eu lá quero ver você pelado. Me entrega, e, quando eu voltar, levo você pra tomar banho. Não aguento mais esse fedor.

— Você fede o tempo todo — ele murmurou, torcendo para que não fosse ouvido. — Típico de alguém que tá quase morto.

— O quê?

— Nada.

— Escuta aqui — Anton foi até Guilherme e o agarrou pelo braço, apertando o mais forte que podia. — Você me respeite, garoto! É o mínimo que você pode fazer, dado às suas condições atuais.

Num ato de coragem que jamais se repetiria, Guilherme cuspiu no rosto do homem que o ameaçava, e se arrependeu instantaneamente.

Anton se limpou furioso, prestes a soltar fogo pelas ventas.

— Tira essa roupa agora!

Tremendo, Guilherme obedeceu, e entregou suas roupas ao homem, que pegou a xícara de água que havia trazido e a atirou no chão como se não fosse nada. Pegou um dos pedaços quebrados e foi até Guilherme, sussurrando em seu ouvido:

— Acho bom você mudar suas atitudes — ele segurou o pescoço do garoto e cravou o pires quebrado atrás de sua orelha, e arrastou para baixo. Guilherme gemeu de dor e se contorceu. — Ou esse tipo de coisa vai ser mais comum.

Anton saiu sem dizer mais nada, deixando Guilherme desesperado ao sentir seu sangue escorrer. Ele foi até o vaso sanitário e enrolou sua mão com papel higiênico, encostando no lugar em que sangrava, ainda sentindo dor.

Eu mereci essa, pensou ele, sem conseguir conter as lágrimas de dor, raiva e tristeza.

Quando o sangramento começou a parar, Guilherme pegou outro pedaço da xícara e arrastou-se para debaixo da cama, até onde a luz do quarto o permitia enxergar.

— Isso facilita um pouco — ele pensou alto. — Mas eu ainda vou precisar pensar mais.

Ele tentou se lembrar do número de refeições que havia feito desde que chegara ali, e rabiscou com um pedaço de porcelana da xícara no chão de cimento algumas linhas para marcar estas refeições, calculando o número aproximado de dias que ali estava. Ele também desenhou um quadrado, representando o quarto, e decidiu que aproveitaria a saída para o banho e faria o mapa do restante da casa.

Quando Anton voltou, mais tarde naquele dia, já com as roupas limpas e um cobertor, resolveu cuidar do ferimento que ele próprio causara em Guilherme. Em seguida, entregou as coisas que havia trazido a ele, tudo isso sem dizer nada.

O garoto começou a se vestir, mas parou ao ouvir um som de reprovação vindo de Anton.

— Vou te levar pra tomar banho, esqueceu? Vem logo.

Guilherme dobrou suas roupas novamente e foi até a porta para acompanhar Anton até o banheiro. Foi surpreendido quando sua visão escureceu, pois de repente seu rosto estava coberto por um pano.

— Ei! — disse ele, se remexendo. — Que isso?

— Não pense que eu vou te deixar ver o resto da casa. Anda, vai.

Guilherme não tinha a visão, mas resolveu tentar gravar o local a partir de seus passos. Ele foi guiado por um longo corredor, até que chegou a uma escada. Ao subir alguns degraus, dobrou o caminho para a esquerda. Por sentir um vento chocar-se contra o seu corpo, Guilherme pressupôs que ali havia uma janela. Ele caminhou mais um pouco até que sua visão lhe foi devolvida, e ele piscou algumas vezes para se acostumar à luz.

— Não demora — disse Anton friamente, atirando Guilherme para dentro e fechando a porta.

O banheiro era limpo e completo, e Guilherme suspirou aliviado por não ter que lidar com ratos, baratas e aranhas. Ele foi até debaixo do chuveiro, ainda de cueca, e o abriu, sentindo a água morna relaxante percorrer seu corpo. Era um banho que ele estava merecendo.

Após se lavar, e também a sua roupa íntima, Guilherme se secou, enrolou a toalha no corpo e bateu à porta para sair. Anton a abriu, e rapidamente colocou o pano de volta na cabeça do garoto, o guiando de volta.

Ao chegarem, Guilherme foi atirado em sua cama, e, ao perguntar sobre o seu jantar, recebeu uma resposta debochada:

— Acho que hoje você não está merecendo. Tchau.

A raiva de Guilherme percorreu por todo o seu corpo, e ele sentiu vontade de arremessar a cama contra aquela maldita porta — se conseguisse, mas estava mais fraco que nunca.

O pedaço de xícara agora estava escondido embaixo de seu travesseiro, e era seu bem mais precioso. Pegou-o novamente e rolou para debaixo da cama para completar o mapa.

— É uma casa de dois andares ou um porão? — disse ele em voz alta para raciocinar melhor. — Acho que as duas coisas não são muito comuns no Brasil. Se bem que tinha um corredor enorme, então provavelmente são dois andares, e eu estou no primeiro. Mas será que isso facilita ou dificulta?

Ele terminou de desenhar e escrever, indicando o que era o que, e então voltou para a sua cama. Apesar de estar com fome, Guilherme dormiu confortando a si mesmo, tentando convencer-se de que sua liberdade estava cada vez mais perto de retornar — e que ele mesmo faria isso acontecer. Daria sua vida nisso como nunca antes havia feito.

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