capítulo 27

— Ela mentiu. Provavelmente queria tirar sarro da sua cara.

— Não, Guilherme. Eu acho que não — Leslie esfregou os olhos, como se aquilo a ajudasse a pensar. — Ela falou com tanta naturalidade. E todos nós aqui já sabemos quem é o mentiroso, né?

Tom estava certo, pensou ela, "Ele está mentindo". Meu irmão sabia de tudo.

— Mas, pelo que você falou, ela parece ser bem arrogante, né? — comentou Alex, ajeitando-se em sua cama. Os três estavam no quarto dos garotos, com Gustavo longe, em sua cama, mas apurando os ouvidos para escutar a conversa.

— É, um pouco. Mas sei lá, ela não devia estar em um bom dia.

— Ou ela só é escrota, mesmo — disse Guilherme, numa de suas poucas participações na conversa.

— Quem sabe um dia a gente descubra toda a verdade sobre a nossa vida — disse Alex num tom de voz desacreditado. — Por enquanto, acho que eles vão querer brincar um pouco mais com a gente.

Leslie e Guilherme se olharam confusos.

— "Eles", quem? — perguntou Leslie.

— Sei lá, as pessoas que assistem o nosso programa de TV, novela, série ou sei lá — respondeu Alex, como se fosse algo extremamente comum. — Ou então as pessoas que leem o nosso livro, nossa HQ. Qualquer coisa.

Leslie e Guilherme se entreolharam novamente, sem dizer nada.

— Fala sério, gente — voltou a dizer Alex. — A nossa vida é tão esquisita! Poderia muito bem ser uma obra de ficção...

Gustavo riu do outro canto do quarto, e tentou esconder seu rosto atrás do livro que lia.

— Tá, é... irmão, você poderia ficar quieto por umas... dez horas? — disse Guilherme debochadamente. — A gente agradece.

— Se eu fosse você, pensaria duas vezes antes de pedir isso — respondeu Alex. — Você sabe que eu fico mesmo. E não vem me pedir ajuda pra alguma coisa não, tá? Qualquer coisa.

— Será que as duas crianças podem parar? — Leslie expressou irritada, conseguindo o silêncio que queria. — Esse assunto é sério, e a gente precisa fazer alguma coisa.

— Que coisa?

— Bom, se a nossa mãe tá viva... a gente precisa ver ela, não?

Aquele momento foi a vez de Alex e Guilherme se entreolharem.

— Ai, Leslie, eu não sei — disse Alex, desmotivado. Ele se deitou na cama e ficou olhando para o teto. — A única coisa que a gente sabe é o nome atual dela, e ela pode muito bem ter mudado. E quem disse que ela ainda mora aqui?

— Isso é verdade, Leslie. E você saiu do orfanato ontem e hoje. A Sofia não vai te deixar sair de novo tão cedo.

— Ah, fala sério! — Leslie se levantou depressa e foi até a porta do quarto. — Se vocês não querem, eu quero!

No caminho de volta para o seu quarto, Leslie passou perto do jardim, e viu que estava começando a chover. Encostou-se com a cabeça em uma parede, e deixou que seus pensamentos a levassem.

Na última vez que tomara banho de chuva, ela ainda estava na ilha, e seu irmão ainda estava vivo. Os dois estavam sentados no jardim, conversando, quando o céu começou a pingar. Tom se levantou e quis entrar em casa, mas Leslie o puxou de volta, e ele, mesmo que relutante, foi com ela até um espaço sem árvores ou flores, e os dois ali ficaram enquanto a chuva começava a se intensificar.

Com suas roupas coladas no corpo e o cabelo e os chinelos encharcados, os dois pulavam e giravam em torno de si mesmos com os braços abertos, dando as mãos de vez em quando e girando juntos.

Os dois caíram na grama e riram, felizes por simplesmente poderem viver. Só entraram em casa quando Sara os chamou, morta de preocupação.

E ali, no orfanato, Leslie queria mais que tudo correr até o jardim e se divertir sob a chuva, mas sabia que não podia.

Se o Tom estivesse aqui ele me apoiaria, pensou ela, Até iria junto comigo ver nossa mãe.

E então, como louca, Leslie gritou obscenidades a Anton Puckett, por ter arruinado sua vida tirando dela as pessoas que mais amava.

***

Conforme os dias foram passando, os cômodos do orfanato começaram a ganhar luzes e plumas coloridas, guirlandas e diversos outros enfeites: o natal estava chegando.

As crianças eram as mais animadas, espalhando sua energia por onde passavam. O tempo todo escreviam cartas ao Papai Noel, e vasculhavam ao redor da árvore de natal para ver se já havia algum presente ali. Também se entupiam de doces e chocolates, simplesmente porque podiam.

Leslie, Alex e Guilherme estavam muito animados. Seus natais passados nunca foram daquele jeito: Anton não gostava do natal. Desprezava, e o máximo que permitia era umas luzes aqui e ali. Sara também sempre dava um jeito de preparar um jantar típico de natal nessa data, que, por causa dela, não passava assim tão despercebida.

Mas naquele ano seria diferente. Pela primeira vez na vida, os irmãos poderiam comemorar um natal de verdade, fazendo tudo o que sempre desejavam. Eles não sabiam direito como seria a experiência, na verdade, mas era isso que tornava tudo melhor.

Na noite do dia 24 de dezembro, todos já estavam introduzidos no clima das festas de fim de ano, e, após o jantar, Leslie e seus irmãos ficaram juntos no jardim, observando o céu estrelado — não tão estrelado quanto o da ilha, mas também muito bonito —, enquanto algumas crianças ali brincavam.

— Leslie! — disse a menina, abraçando sua amiga. Mariana também abraçou Alex e Guilherme, e se sentou junto com eles. — Amanhã é meu aniversário, eu vou ganhar dois presentes — disse ela, levantando dois dedos da mão para demonstrar a quantidade de presentes.

— Que legal, Mariana — disse Leslie, novamente dando-lhe um abraço apertado. — E quantos anos você vai fazer?

— Assim — Mariana abriu sua mão toda, com um sorriso orgulhoso. — Um, dois, três, quatro, cinco!

O dia seguinte foi ainda melhor. O clima natalino estava maior que nunca, com especiais passando na TV, músicas e pessoas dançando felizes por todo o lugar, e também muita comida. Os irmãos, em certo ponto, chegaram até a achar um exagero toda aquela festa.

Todos receberam presentes, que, ainda que simples — e não tão caros e luxuosos como os irmãos estavam acostumados —, eram de coração, e garantiram a felicidade de todos lá. Aquele, sem dúvidas, era o melhor natal.

Guilherme se deitou para dormir exausto, depois de ter brincado tanto com as crianças naquele dia. Descobriu ser ótimo com elas, pois todas elas grudavam nele assim que chegava, e ele era, com certeza, o que mais levava as brincadeiras com as crianças a sério, inventando histórias, situações e personagens que até ele mesmo chegava a acreditar.

Seus olhos sonolentos pareciam festejar quando finalmente se fecharam, e a mente de Guilherme foi se desligando aos poucos para repousar. Acordou de repente, assustado com um barulho repentino vindo do seu lado. Tateou as mãos pela sua mesa-de-cabeceira até encontrar seu celular e poder atendê-lo, xingando mentalmente quem quer que o estivesse ligando àquela hora da noite.

— Alô? Quem é?

Nada se ouviu além de uma respiração lenta, profunda e assustadora. Os pés de Guilherme formigaram, e ele os escondeu no seu cobertor.

— Oi? Quem é?

Quando ia encerrar a ligação, a voz do outro lado da linha sussurrou amedrontadoramente:

Eu quero a sua carne morta, Guilherme.

A luz do quarto foi acesa, fazendo com que Alex e Gustavo abrissem os olhos antes mesmo de terem dormido.

— Você vem comigo.

Guilherme puxou o irmão pelo braço e avançou pelos corredores, torcendo para que Sofia ainda estivesse em sua sala.

— O que aconteceu? — Alex tentava acompanhar o irmão enquanto se recuperava do choque repentino por ter sido acordado. — Guilherme, o que aconteceu?

— A gente precisa por um fim nisso — Guilherme agarrou o pulso de Alex com mais força. — Já chega.

A porta da sala da diretora estava entreaberta, e a luz acesa indicava que, felizmente, ela ainda estava lá.

— Oi, Sofia, com licença — Guilherme entrou na sala sem vagar, completamente agitado. — A gente precisa falar com a Vera.

— Desculpe, meninos, mas precisa ser agora?

Sofia organizava alguns documentos, com a cabeça cheia de preocupações, e não se mostrava muito disposta àquela hora da noite, mesmo que acordada.

— Sim. Eu e meus irmãos estamos sendo perseguidos.

Sofia, ainda com a cabeça baixa, virou os olhos a eles, e suspirou fundo.

— Isso é algo muito grave. Vocês têm certeza?

Sim — respondeu Guilherme, com tom de voz firme. — Por favor, liga pra Vera.

— Não posso dar certeza de que ela vai atender e vir aqui agora — Sofia pegou um telefone e começou a discar. — Mas eu vou ligar.

— Eu... — Alex tentou pensar no que dizer, mas foi impedido por Guilherme, que tampou sua boca.

— Fica quieto. Depois eu explico.

— Eu posso saber por que você não falou sobre isso comigo antes?

Vera estava ligeiramente irritada, tanto por ter que sair a trabalho tão tarde da noite quanto pelo que ouvira da boca de Guilherme.

— Eu não sei. Desculpa, eu realmente não sei — quando percebeu que Alex iria dizer algo, Guilherme lhe deu um cutucão com o braço. — Eu não tinha tanta certeza assim que era ele naquele dia. Poderia ser outra pessoa, ou nem sequer ser uma pessoa. Eu até pensei que eu tinha enxergado coisa, mas essa ligação foi bem clara — Guilherme apontou para o seu celular, que tinha entregado a Vera. — E eu conheço essa voz, muito bem.

Vera suspirou, e sentou-se em uma das cadeiras da sala.

— Tudo bem. Eu vou tomar as providências necessárias. Qual foi o dia que você viu o homem na rua?

— Dia dezoito. O que você vai fazer?

— Contatar uma equipe, investigar, pegar imagens de câmeras... tentar rastrear a ligação, vai ficar tudo bem, ok?

Guilherme olhou ao redor, tentando pensar em algo mais para dizer ou fazer.

— Vocês podem ir dormir — disse Vera, se levantando. — Eu volto a falar com vocês amanhã.

— E a gente vai ficar aqui? — perguntou Alex, confuso. —Sozinhos?

— Vocês vão ficar bem, não tem como ninguém invadir o orfanato.

Então Guilherme voltou com Alex até o quarto ainda com medo e arrepiando os cabelos ao se lembrar da ligação.

— Irmão, dorme comigo hoje? — perguntou Guilherme quando os dois chegaram à porta do quarto. — Eu... eu tenho medo.

— Tudo bem, sem problemas — Alex tocou a maçaneta da porta. — Será que o Gustavo já dormiu? Ele vai fazer milhões de perguntas, fofoqueiro do jeito que é.

Guilherme riu.

— Sei lá, tomara que sim. Não estou mais a fim de falar sobre isso

— Eu estou começando a ficar preocupada, Sofia — Leslie parou próxima à porta da sala de Sofia ao reconhecer aquela voz. — Nós trabalhamos quase a noite toda, mas não conseguimos muita coisa.

— Que situação, hein? O que vocês conseguiram?

— Rastreamos a ligação, que foi feita de um orelhão. Não tinha lojas ou nada por perto, então sem chances de gravações de câmeras.

Que ligação?, pensou Leslie. Meus irmãos esconderam alguma coisa de mim?

— Sobre o dia que Guilherme viu ele, nós conseguimos algumas gravações, e a placa do carro em que ele entrou. Rastreamos, e descobrimos que o dono era motorista de aplicativo, mas ele infelizmente faleceu naquele mesmo dia.

Apesar de não estar entendendo nada, Leslie permaneceu ali ouvindo e memorizando as informações, para contar aos irmãos mais tarde.

— Faleceu? Como assim?

— Foi envenenado. A investigação concluiu como suicídio, mas... agora percebe-se que pode não ter sido bem assim... Enfim, intensificamos as buscas pela cidade e colocamos alguns policiais para fazer ronda aqui por perto.

— Entendo... devo contar isso aos três?

— Diga apenas que eles vão ficar bem. Agora, com licença, Sofia, eu preciso ir.

— Claro, querida, passe bem.

Leslie saiu de perto, e acabou não contando nada aos irmãos. Sentiu que não deveria preocupá-los ainda mais.

***

Quase todos estavam usando roupas brancas naquela noite. Claro, o ano-novo era assim: uma festa tão importante quanto o natal, e todos deveriam entrar no clima.

O ano-novo na ilha era, diferente do natal, comemorado de forma muito parecida à do Brasil: todos ficavam acordados até a meia noite, e, após a contagem regressiva, o show de luzes tomava conta do céu, e os irmãos brincavam nas ondas rasas da praia.

Ali não havia mais praia, mas com certeza seria uma festa ainda divertida, e todos aguardavam ansiosamente no jardim a chegada de 2020, já após o jantar.

Para que o tempo passasse de maneira mais rápida, os irmãos e seus amigos foram brincar com as crianças, que animaram ainda mais a noite com suas histórias fantásticas.

Quando o relógio marcou 23:59, todos se reuniram em um só local, ansiosos para a chegada da nova década. Leslie abraçou seus irmãos, um pouco triste por Tom não estar entre eles, e olhou para o céu, esperando que as cores o dominassem.

Todos disseram a contagem regressiva em voz alta, e, quando chegou a hora, começaram a desejar feliz ano novo uns aos outros.

Leslie foi junto às suas amigas, Alex puxou Gustavo para um canto e os dois ficaram ali, conversando, e Guilherme foi puxado pelas crianças para retornar as brincadeiras.

Quase uma hora havia se passado, e os funcionários do orfanato começaram a chamar todos para dentro, para dormir. Leslie procurou Alex, e, quando o encontrou, foi até ele, e os dois olharam ao redor para procurar Guilherme.

— Você viu ele? — perguntou Leslie.

— Não. Você viu, Gustavo?

— Não. Faz tempo que eu vi ele, todo mundo ainda estava aqui.

Os três ficaram preocupados, e resolveram esperar o jardim se esvaziar, mas, quando isso aconteceu, Guilherme ainda não havia aparecido.

Correram até o quarto, perguntando a todos no caminho se alguém tinha visto Guilherme, mas receberam apenas respostas negativas. Quando não viram Guilherme no quarto, e em mais nenhum outro lugar, foram falar com Sofia, para relatar o sumiço do irmão.

O que achou do capítulo? Gostou? Comente pra eu saber, e não esqueça de votar. Até o próximo!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top