capítulo 14

Leslie sabia que era um sonho, mas não conseguia se acalmar de jeito nenhum. Ela mal conseguia respirar, e seu coração não se encontrava capaz de desempenhar bem sua função de pulsar moderadamente; pelo contrário, parecia que Leslie havia corrido uma maratona durante algumas horas seguidas, sem parar.

Vários detalhes do sonho se perderam em sua mente, mas ela se lembrava do principal: as cobras — cujos nomes, ela sabia, eram Thomas e Sara —, tentaram matar seu avô. Teriam conseguido caso ela não tivesse acordado.

Não tentaram matar com picadas, injetando nele sua peçonha, mas o estrangulando. Aquilo era suspeitosamente específico. Tão específico que Leslie se perguntava se já não havia visto a cena alguma outra vez.

Ela não acordara em um pulo após o pesadelo, como geralmente acontecem nos filmes. Abriu os olhos lentamente, sentindo-se confusa; nem se lembrava de ter entrado em seu quarto para dormir na noite anterior. Aliás, ela demorou a perceber que já havia se passado a noite, e que a luz do sol já começava a invadir seu quarto.

O relógio digital na sua mesa-de-cabeceira indicava que eram seis da manhã, exatamente às seis em ponto.

— Meu subconsciente é maluco — disse ela a si mesma. — Me fez ter um sonho completamente bizarro e acordar numa hora muito específica.

Sabendo que jamais conseguiria dormir novamente depois daquilo, Leslie resolveu trocar de roupa, escovar os dentes e descer para esperar os outros.

Os outros no caso não demoraram a aparecer, já que Leslie esbarrou em praticamente todos os objetos que estavam em seu caminho do quarto para o primeiro andar, produzindo barulhos estrondosos a cada passo.

A primeira pessoa a chegar depois de Leslie foi Sara, que mal conseguira dormir. Seus olhos, arregalados e aflitos, em conjunto com as olheiras praticamente pretas debaixo deles indicavam cansaço, apreensão e medo. Ela estava conspirando havia um tempo sobre a morte de Tom. Acreditava ter motivos suficientes para crer que o garoto não havia tirado a própria vida. Apenas precisava reunir as provas, caso existissem.

No entanto, ao passar por Leslie, Sara disfarçou bem todos esses pensamentos. Ela estava acostumada a mentir e omitir fatos para não se encrencar.

— Não vejo ninguém acordar antes de mim nessa casa há muito tempo — disse ela para evitar que Leslie fizesse perguntas sobre seu rosto. — Não conseguiu dormir bem?

— Muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo.

Em um suspiro, que mais pareceu um pedido de socorro muito bem disfarçado, Sara virou a cabeça e emitiu um som parecido com um "é".

— Leslie — o objetivo de Sara ao levantar era ir à cozinha preparar o café da manhã, mas ela não podia ignorar o fato de Leslie estar lá, e de ambas estarem completamente sozinhas. — Você precisa me dizer por que você saiu ontem.

Os olhos de Leslie se arregalaram automaticamente, antes mesmo que ela pudesse pensar em uma resposta. Ela sabia que era inútil mentir para Sara; uma hora ou outra descobriria, como já havia acontecido outras vezes.

— Eu... — ainda sem saber o que fazer, Leslie pensava se deveria mesmo contar a verdade.

Ela olhou ao redor, procurando câmeras, grampos ou qualquer outra coisa que pudesse ser usada para espionar a conversa. Desistiu. Não. Ela confiava em Sara. Precisava contar.

— Eu fui em busca dos nativos da ilha. Ou... do que restaram deles.

— O quê?!

Em um só pulo, Sara se afastou, boquiaberta.

— Como foi que você descobriu isso, garota?

Sara sabia. Ela não precisou nem dizer exatamente isso a Leslie, pois apenas a maneira da qual reagira à revelação já foi o suficiente para que percebesse.

Sara não ficou chocada por saber que existiam nativos na ilha, nem pelo fato de que eles ainda pudessem estar por aí. Sua surpresa se deu pelo fato de que Leslie sabia.

— Eu não acredito que você sabia de tudo esse tempo todo, Sara, não dá pra acreditar! — Leslie circulava pela sala com as mãos na cabeça, tentando desembaralhar seus pensamentos e vomitando as palavras ao mesmo tempo.

— Leslie, você precisa entender que isso não é algo que se fale aos quatro ventos, é um assunto muito delicado. E você não sabe nem metade das coisas que eu já passei aqui nessa casa!

Leslie parou de andar e fuzilou Sara com o olhar.

— Cara, você sabe como eu quase fiquei maluca desde que eu encontrei aquele maldito diário? — ela apontava para o teto, como se estivesse indicando o diário de Anton.

— Eu também fiquei, Leslie, você nem imagina.

— Isso não justifica você ser uma mentirosa.

— Escuta aqui, garota — o tom de voz de Sara mudou, estava forte agora, agressivo. — Se você acha que pode ficar falando essas coisas de mim, você está muito enganada. Você não passa de uma garotinha mimada que tem tudo o que quer enquanto eu tenho que lidar com os problemas de verdade aqui. Você se acha uma adulta cheia de problemas, mas a verdade é que você não faz ideia do que é ser humano de verdade.

Leslie a encarou chocada. Em vão, abriu os lábios para tentar responder, mas não conseguiu. Quando Sara percebeu o que havia dito, desejou que cortassem a sua língua.

— Me desculpa. Ai, caramba, Leslie. Vem aqui. — Sara se sentou no grande sofá branco e indicou o assento ao lado dela para que a garota se sentasse também. — Eu sinto muito.

Sara sabia que nada do que ela dissesse seria capaz de desfazer as suas palavras anteriores, mas ela queria ao menos amenizar os seus efeitos. Uma tonelada de culpa se encontrava em suas costas, pois, por mais que no fundo aquelas palavras fossem reais, o uso delas fora completamente desnecessário.

Ela segurou os ombros de Leslie, que concordava com a cabeça.

— Vamos falar sobre isso depois, ok? Antes de tudo, vamos esperar seus irmãos e Arthur para comer. Olha pra mim — disse Sara ao perceber que Leslie desviava o olhar. — Eu prometo que a gente vai se resolver. Já me viu quebrando uma promessa? — Leslie fez que não com a cabeça. — Então você não precisa se preocupar. Eu vou te contar o que aconteceu.

— Sara, você pode vir me ajudar com algumas coisas?

— Claro, só espere um minuto.

Os quadrigêmeos tinham dois anos, quase três. Sara estava mostrando-lhes algumas figuras de animais, e pedia que eles repetissem o que ela dizia.

Ga-to
Le-ão
Co-e-lho.

Era ridiculamente cansativo cuidar de quatro crianças pequenas e além disso também preparar todas as refeições. Era cansativo mesmo que fosse na época em que Anton tinha muito mais energia para participar ativamente da vida dos netos, quando ele adorava passar o máximo de tempo possível com seus queridos quadrigêmeos.

Naquela semana Anton estava ocupado mudando seu escritório de lugar. Antes ele trabalhava no porão, mas percebeu que não era um local muito agradável para se exercer tarefas, então começou a transportar suas coisas para um quartinho no final do corredor do segundo andar, em que eram despejadas todo e qualquer tipo de tralhas. As coisas que lá estavam então foram transportadas ao porão, onde já deveriam estar desde sempre, e as prateleiras de livros já haviam sido instaladas no quartinho.

Sara colocou um filme no aparelho de DVD e instruiu as crianças a não saírem do lugar enquanto ela não voltasse. Os irmãos continuaram brincando e assistindo à tv ao mesmo tempo, e então Sara concluiu que seria obedecida. Ela seguiu Anton até a porta do porão, e lá estavam alguns livros esperando por ela.

— Eu vou ainda arrumar essas tralhas aqui pra não ficar tudo uma bagunça — disse Anton ao pé da escada quando viu Sara, falando alto para que ela o ouvisse. — Leve esses livros até o meu novo escritório.

— Tudo bem — respondeu Sara, também falando alto. — Onde eu deixo eles?

— Pode colocar no chão, depois eu ajeito.

E então Sara começou a transportar os livros, levando o máximo que conseguia de cada vez. Sempre que passava pela sala de estar para ir até as escadas, os irmãos riam da situação que Sara se encontrava, e ela também não conseguia deixar de conter o riso.

Ela foi e voltou inúmeras vezes, se perguntando de onde saíram tantos livros assim. Sara já estava exausta, e resolveu descansar um pouco no novo escritório de Anton antes de prosseguir com a tarefa.

Foi naquele momento, largada no chão e apoiada em alguns livros, que Sara observou um livro a mais em cima da escrivaninha, que, assim como as prateleiras, também já estava montada. Ela resolveu levantar e pegá-lo para juntar com os outros livros, e assim fez.

Sua curiosidade, no entanto, não permitiu que ela ignorasse o título do livro. Todos aqueles enormes e grossos livros que ela carregara tinham capas feias e sem graça, a maioria verdes ou marrons, e com apenas o título do livro marcado em uma fonte feia. O mais atraente de todos os que carregava possuía uma ilustração das costas de uma mulher, olhando para três luas em seu topo, representando três de suas fases principais. Mas não possuía título, então Sara nunca soube do que se tratava.

Aquele livro em cima da mesa era diferente. Tinha vários desenhos colados, desenhos que retratavam o mar, barcos, peixes, ilhas. Estava decorado, bonito, e as escritas na capa pareciam ter sido feitas à mão, numa bela e atraente caligrafia.

Diário de Viagem

Elias Puckett

1923

Imediatamente Sara largou o livro de volta na mesa.

— Isto é confidencial — disse ela calmamente para si mesma, tentando reprimir seu súbito desejo de ler cada palavra daquele diário. — Você não tem esse direito, Sara.

Mas ela rapidamente afastou seus pensamentos sensatos, e começou a ler o diário desde o começo.

Sara se decepcionou ao ver que o diário estava todo escrito em inglês, o idioma de Elias, mas que ela não dominava. Mesmo que a escrita na capa estivesse em inglês, ela não se tocou que seu conteúdo interno também estaria.

No entanto, já que estava ali, Sara resolveu apenas ignorar o fato de que não sabia falar inglês. Procurou um dicionário no meio daqueles livros todos e, quando encontrou, usufruiu de seu auxílio para que pudesse ler.

Sara também vigiava constantemente a porta, temendo que fosse pega por Anton lendo algo que não lhe pertencia.

Sara adorou aquela história. Ela nunca soube exatamente como tudo aconteceu, e agora estava maravilhada lendo aquelas páginas.

Mas tudo mudou quando ela chegou naquele trecho. O trecho em que Elias narra a si mesmo atirando nos nativos da ilha e depois incendiando suas moradias. O trecho em que Elias se trata como um herói, o homem do século, um vencedor, mesmo sendo um genocida.

Boquiaberta e sem saber se realmente estava traduzindo tudo da maneira certa, Sara ficou completamente apavorada. Ela não conseguiu largar o livro, mal conseguia se mexer. Estava travada.

— O que você está fazendo? Por acaso eu lhe dei permissão para xeretar?

Anton chegou bem a tempo de flagrar Sara mexendo em seus pertences. Ela jogou o diário de volta na escrivaninha. Rapidamente começou a pedir inúmeras desculpas, mesmo sabendo que não iria adiantar. Anton a agarrou firmemente pelo braço e a arrastou para fora do cômodo, batendo a porta com força ao sair.

— Com que direito você mexe nas minhas coisas desse jeito? — disse ele com puro ódio na voz, contendo-se para não dar o tapa mais forte que conseguiria no rosto de Sara.

Aos prantos, Sara tentava se explicar, com a voz trêmula e a visão embaçada pelas lágrimas.

— Por favor, não me culpe, eu... eu só queria dar uma olhada e acabei...

— Já chega disso, Sara! Quero você fora da minha casa. Você está despedida.

O queixo de Sara caiu, e só o que ela conseguiu no momento foi chorar ainda mais. Anton, que ainda a agarrava pelo braço, a jogou para longe de si e saiu pisando firme.

Ainda chocada, suas lágrimas de angústia passaram a ter outro significado. Ela estava com raiva.

— Não.

Anton parou de caminhar. Virou-se lentamente, encarando Sara e sua reação audaciosa.

— Como é?

— Não vou embora. Eu vou ficar — ela tentou manter a postura enquanto o velho caminhava em sua direção, com ódio no olhar. — Eu amo aquelas crianças, e não vou deixá-las aqui sozinhas, não com você. Não depois de ler isso. Eu não vou embora, Anton Puckett.

Anton não desfez sua expressão de raiva, mas agora parecia pensar

— Tudo bem. Mas eu não sou mais Anton pra você, Sara — o homem, ainda cheio de ódio dentro de si, parou e foi na direção de Sara, olhando profundamente nos seus olhos. — Se quiser ficar, vai ter que me chamar de Senhor a partir de agora, e seguir novas regras que eu mesmo vou impor. Vamos ver se você aguenta ser tratada como a empregadinha que é.

— Sim, senhor.

— Ótimo. E lembre-se que estou te deixando ficar pelas crianças, não por você. Eu poderia já estar te mandando de volta pra sua vidinha de merda em Curitiba, então seja grata a mim por isso. Saiba que não vou mais tolerar esse tipo de atitude.

— Sem problemas.

— Agora some da minha frente.

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