capítulo 10
O aroma do quarto a fez lembrar do irmão, e as lágrimas já estavam prontas para sair; no entanto, ela se conteve. Observou ao redor, abrindo um sorriso ao lembrar-se dos momentos maravilhosos que passara com Tom. Ela pensou em todas as vezes que eles ficaram ali durante o dia, brincando e se divertindo. Lembrou-se das vezes em que os quatro irmãos brincavam de esconde-esconde e Tom se escondia no próprio quarto, embaixo da cama. Lembrou-se de quando Alex tinha pesadelos e não conseguia dormir sozinho, e então chamava seus irmãos para dormir com ele, por algum motivo no quarto de Tom, e não no seu próprio.
Lembrou-se das vezes em que montaram uma cabana com cadeiras e cobertores, e brincavam que estavam acampando na floresta. Lembrou-se das vezes em que Anton reunia os netos em seus quartos e lhes contava histórias. Lembrou-se de assistir o pôr-do-sol da ampla janela do quarto de seu irmão.
Lembrou-se disso tudo em apenas segundos, e novamente inspirou fundo para rememorar o cheiro dele.
Ela olhou ao redor e percebeu que o travesseiro de seu irmão estava no chão, bem longe da cama. Aquilo a irritou. Leslie tinha uma mania com travesseiros: precisavam estar perfeitamente alinhados com a cama.
Ela se ajoelhou para pegar o travesseiro, e o cheirou. Em seguida, o abraçou. Era como se Thomas estivesse bem ali, dizendo a ela que tudo estava bem. Dizendo que ela não precisava se preocupar, pois sempre estaria ao seu lado.
— Tom — murmurou. —, eu sinto saudades. Não posso aguentar nada sem você.
Sua visão embaçou-se novamente com a umidade de seus olhos. Ela apertou o travesseiro contra si mais forte e então visualizou algo no chão, que estava no lugar onde havia levantado o travesseiro de seu irmão. Aparentemente, um pedaço de papel.
Leslie o tomou em suas mãos, mas sem abandonar o travesseiro. O papel tinha apenas uma frase, e a letra era de Tom. Será que aquilo explicaria algo? Como um suicídio poderia ser explicado apenas com uma frase?
Leslie piscou algumas vezes para cessar as lágrimas e conseguir enxergar melhor. Ela constatou que a letra era realmente a de seu irmão, mas percebeu que a escrita estava tremida, como se Tom já não tivesse mais forças para escrever.
Ele está mentindo.
Leslie se arrepiou por inteira, com os olhos arregalados. Um milhão de coisas se passaram pela sua cabeça, mas apenas uma pergunta persistiu: quem?
Ela pensou nos "eles" da casa. De quem Tom estaria falando?
Aquilo não fazia sentido. Ela confiava plenamente em todas as pessoas ao seu redor. Elas estavam ali para lhe proteger. Por que alguém ali estaria mentindo? Aliás, ela se perguntava, quando e como meu irmão descobriu alguma coisa desse tipo?
Ela permaneceu lá ajoelhada, observando o papel. Suas lágrimas secaram. Agora ela estava confusa. Ela se levantou lentamente e ajeitou o travesseiro na cama. Naquele instante, ela percebeu algo: Tom sabia de sua mania com o travesseiro. Ele o jogou longe da cama, sobre o papel, de propósito, pois sabia que Leslie iria encontrar.
Seus olhos marejaram. Tenderam a chorar, mas ela logo cessou. Agora que estava ali, Leslie iria descobrir o que é que estava acontecendo, a qualquer custo. Ela direcionou-se até a janela e observou as árvores. Ainda havia muito vento, e o céu estava escuro. Iria chover muito em breve.
— A quem eu quero enganar? Aliás — ela falava como se alguém realmente estivesse ali com ela. —, nem deve ser nada. Olha eu aqui me deixando levar pelas paranoias. De novo.
Leslie voltou ao seu quarto e deitou-se na cama para pensar.
Ah, Tom. No que foi que você se meteu?
Ela estava devastada, exausta. Seus olhos começaram a fechar, e então ela dormiu sem se preocupar com o tempo. Alguns minutos depois, Guilherme apareceu e a acordou. Leslie reuniu forças para se levantar. Sentada no colchão, virada para a porta, ela estava com uma péssima aparência e com uma expressão de pura angústia. Não precisou dizer nada para que Guilherme entendesse que ela precisava de um abraço. Ele sentou-se ao lado da irmã e a acolheu em seus braços.
— Vamos jantar? Já está tudo pronto.
Leslie sorriu. Além de cansada, estava morrendo de fome.
— Vamos — disse ela, se levantando e agarrando o braço de Guilherme.
Os dois seguiram caminho até a sala de jantar. Nas escadas, Leslie observou o dia lá fora, e se lembrou do dia em que ela fez o mesmo caminho até o quarto de Tom, alguns dias antes de sua morte. Naquele dia, o sol raiava e os pássaros cantavam, como se não soubessem o que estava acontecendo. Naquele fim de tarde o sol se escondia por trás das nuvens e os pássaros pareciam não existir. Era como se estes elementos ficaram sabendo daquela notícia terrível.
Foi quando Leslie percebeu que não estava mais chorando. Ela estava triste ainda, claro, mas sua mente não pensava mais especificamente em Tom. Pensava no bilhete que ele deixou especialmente para ela. Pensava se ele sabia de alguma coisa que ela não sabia, e se perguntava por que ele não contou a ela. Pensava no mentiroso da casa, e em qual seria essa mentira.
Ou quais seriam essas mentiras.
Quando se deu conta, já estava sentada à mesa. Ela nem percebeu o tempo passar diante de seus olhos.
Todos permaneceram em silêncio. Anton, Arthur, Alex, Guilherme, Leslie e Sara.
E Thomas... não estava ali e nem estaria mais.
Como doía sua perda. Parecia inacreditável que ele tivesse partido assim, tão de repente. Algumas semanas antes ninguém imaginava que algo daquele tipo fosse possível, e lá estavam eles: sentados à mesa sem a presença de Thomas, tentando superar o luto. Tentando seguir suas vidas sem ele.
Leslie mal tocou na comida. Deixou quase tudo no prato e não permaneceu à mesa nem por dez minutos. Ela saiu sem dizer nada e foi ao lado de fora da mansão, num jardim com várias árvores frutíferas, ipês, carvalhos, kaizukas, e também flores de diversas cores, formas e tamanhos. Era o único local da ilha situado fora da mansão que todos tinham permissão para ir, então era lá que Leslie frequentemente passava seu tempo. E era lá que ela ficaria para descansar sua mente.
Olhava para a floresta pensando em quando teria oportunidade para ir até lá novamente.
Leslie permaneceu no jardim até o céu escurecer completamente, sem se preocupar em voltar para dentro. Ela admirou a paisagem, mesmo que escura e dando indícios de chuva. Só retornou quando começou a sentir alguns pingos em sua pele e então ouvir a voz de Sara:
— Leslie, já pra dentro!
Ela obedeceu e tomou rumo para o seu quarto. Ao adentrar no corredor, Leslie percebeu que a última porta estava aberta. A porta do escritório de Anton estava aberta. Ela se aproximou e olhou para dentro do cômodo sem entrar completamente; não havia ninguém lá.
Arthur saiu de seu quarto, o mais próximo do escritório, e parou ao ver a garota espionando o escritório.
— O que você está fazendo? — perguntou ele, assustando Leslie.
— Ai, que susto! — ela se virou com a mão no peito e soltando algo parecido com uma risada. — Eu... nada, eu só... — olhou novamente para o escritório. Voltou-se para Arthur, e com o polegar direito apontado para a porta aberta, continuou: — Cadê meu vô?
— Ele está levando algumas coisas para o porão.
— Coisas... do escritório?
Arthur deu de ombros.
— Eu não sei de onde, mas provavelmente não são coisas do escritório, não. Ele só deve ter esquecido a porta aberta.
Arthur virou-se e caminhou até as escadas, enquanto Leslie ficou parada observando o escritório de seu avô.
Aquele lugar era um enigma. Ninguém tinha permissão para entrar. Ninguém sabia o que Anton fazia quando estava lá. E, se fosse ele a quem o bilhete de Tom se referia, aquele era o momento exato para que Leslie descobrisse.
E então, num pulso de adrenalina que soube que jamais teria novamente, ela entrou e fechou a porta.
Pressionou seu corpo de costas contra a madeira, com os olhos arregalados e as mãos no alto, como se estivesse sendo abordada pela polícia. Ela olhou ao redor e não viu nada além da enorme estante de livros que se conectava entre todas as paredes, a escrivaninha e o computador.
Leslie então, já que estava lá dentro, resolveu xeretar. Ela observou todos os livros, antigos e com capas duras e verdes, marrons e outras cores sem graça. A maioria eram enciclopédias ou então biografias. Nada que a interessasse.
Foi então que, ao passar pela frente de todos os livros, Leslie percebeu que aquele cômodo não tinha janelas. A única iluminação do local vinha da lâmpada. Leslie não soube o que pensar ao constatar isso.
Ela então se sentou na cadeira da escrivaninha e resolveu ligar o computador. Mas então percebeu que não sabia como fazer isso; ela nunca sequer tinha mexido de verdade em um. Então abriu as gavetas da escrivaninha, mas não viu nada além de muitas tralhas.
Foi então que, na última gaveta da parte esquerda, Leslie observou que havia algo estranho no fundo. Ela colocou sua unha e puxou; era um fundo falso.
Leslie ficou de boca aberta, e então levantou tudo de uma só vez. Lá havia um livro, assim como os da estante, mas menor e mais fino.
Tomou em mãos e então eu o que estava escrito na capa:
Diário de Viagem
Elias Puckett
1923
O queixo de Leslie simplesmente caiu, e ela ficou assim por muito tempo, sem nem perceber. Ela tinha em mãos o diário de seu trisavô.
O desespero tomou conta de seu corpo.
O que isso está fazendo aqui?, pensou, Meu Deus, o Tom sabia disso? Meu vô vai me matar se descobrir que eu estou segurando isso.
Apesar disso, uma pontinha de curiosidade a cutucava. Primeiro o papel com aquela mensagem completamente suspeita; depois, o diário — que deveria ser uma relíquia de família. Ela precisava ler. Alguma coisa muito errada estava acontecendo naquele lugar. E, quando Leslie percebeu, já estava com o diário aberto na primeira página.
Oito de outubro de mil novecentos e vinte e três
Saímos hoje de viagem, eu e mais alguns renomados homens, a quem pouco conheço, e há pouco tempo, mas que já considero como irmãos, rumo às Américas.
Cedo de manhã, despedi-me de Lydia, a mulher que meu coração escolheu amar. Aquela por quem eu, Elias Puckett, daria minha própria vida.
Não me considero um homem perfeito. Tenho defeitos, Lydia os conhece muito bem. Mas tenho, em meu coração, que ela me ama, assim como eu a amo. Por mais que não tenha concordado em acompanhar-me nesta maravilhosa experiência de vida, senti que Lydia estava em meu lado, o tempo todo, dizendo-me palavras de conforto, carinho e amor.
Leslie sorriu. Como eram românticas aquelas palavras. Como será que é amar?
Mas, apesar de ter achado aquele texto fofo e romântico, Leslie já conhecia toda a história. Seu vô a contara mil vezes, e até mais que isso. Ela procurava algo que pudesse tirar aquela maldita dúvida de sua cabeça.
Qual é essa tal mentira?
Leslie folheou o diário várias páginas à frente, procurando algum trecho da história que Anton não havia contado, e ela conseguiu.
Dezoito de outubro de mil novecentos e vinte e três.
Acordei, na manhã de ontem, sendo sacudido aos gritos por meus companheiros de viagem, balbuciando palavras que, naquele momento, fui incapaz de compreender. Levantei-me calmamente, e pude observar que estávamos em uma praia. Perguntei-me em minha mente se já havíamos chegado. No entanto, não houve tempo para que perguntasse a algum dos homens que estava comigo, pois ouvi gritos saindo da boca do líder de viagem. "É uma ilha! Eu a descobri!"
Sem paciência alguma, Leslie folheou mais algumas vezes.
Mas que saco! Eu já sei disso tudo! Será possível que não tem nada que eu não saiba aqui?
Porém, enquanto folheava, uma palavrinha lhe chamou a atenção em meio às outras: índios.
Não me lembro de índios na história.
Mas é claro que ela não se lembrava. Anton Puckett jamais contara a parte mais obscura e horrorosa de toda essa história de descoberta.
Para nossa infelicidade, logo após adentrarmos na ilha, percebemos imediatamente que não estávamos sozinhos.
Haviam índios. Índios por toda a parte, vermelhos e nus. Malditos. Arruinaram minha maravilhosa experiência de viagem.
Leslie franziu a testa ao ler aquilo. O que os nativos da ilha tinham feito? Nada. Apenas viviam suas vidas ali. Por que Elias estava culpando eles? E por que Anton deixou essa história de lado?
Não falamos com eles em nenhum momento. Jamais eu, Elias Puckett, um renomado biólogo, profissional em barcos e que atravessara um Oceano sem qualquer dificuldade, me rebaixaria ao nível de sequer chegar perto de algum deles.
Os outros homens pensavam o mesmo, e naquele momento percebi como eram sábios. Aquelas criaturas nojentas deviam morrer.
– Vamos matá-los – eu disse, com firmeza na voz. – Estaremos fazendo um favor a eles.
– Concordo – gritaram os homens, em coro.
Voltamos ao barco a fim de pegar nossas armas de fogo. Não teriam como revidar.
Leslie congelou. Não. Não pode ser verdade. Não pode!
Ela virou a página. Queria saber o final. No momento em que leu, desejou jamais ter encontrado aquele diário.
Atirei em três de uma vez só. August conseguiu quatro, e, Paul, seis. Os outros homens se espalhavam mais adentro. Mas ainda haviam muitos. Tentaram revidar com flechas, mas atiramos em todos. O restante correu para dentro daquelas coisas que chamavam de casa, gritando por suas vidas. Voltei de imediato ao barco e peguei seu combustível e um isqueiro, August me ajudou.
A melhor sensação que tive aquele dia foi a de incendiar todas, todas as casas. Antes que pudessem perceber o que estava acontecendo, todos eles já estavam presos, e os assisti morrendo, queimando lentamente, com um sorriso de gratidão no rosto. A ilha é nossa.
Leslie rapidamente guardou o caderno de volta na gaveta e a fechou. Em seguida, saiu do escritório e bateu a porta sem se preocupar em não fazer barulho. Ela tropeçou algumas vezes no caminho para o seu quarto, pois sua visão estava embaçada pelas lágrimas.
Como é possível um antepassado meu ter feito algo tão cruel e desumano?
Assim que chegou ao seu quarto, bateu a porta e afundou-se no travesseiro. Ele era o seu melhor amigo naquele momento. Leslie rompeu-se completamente em lágrimas.
O que achou do capítulo? Gostou? Comente pra eu saber, e não esqueça de votar. Até o próximo!
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