Capítulo 6
Travesseiros espalhados, prato de comida no chão e roupas jogadas por todos os lados, essa era a situação do quarto de Marcos. Ele abriu os olhos. Havia chovido de madrugada e nesse momento garoava do lado de fora. Sem camisa, sentiu um calafrio ao ser atingido por um vento frio que vinha da janela que ele havia deixado aberta noite passada quando ainda estava muito quente. Queria ficar deitado sem fazer nada o resto do dia mas sabia que precisava ignorar essa vontade pois ele tinha responsabilidades, principalmente com seu João.
Se arrastou para se sentar na beirada da cama e se assutou ao pisar em algo frio e rígido. Retirou o pé e olhou para baixo. Era o prato de comida com um resto de arroz e alguns ossos.
- Droga - reclamou ele.
Balançou o pé para retirar os caroços de arroz e se agachou no chão para pegar os travesseiros. Depois de arrumar sua cama, caminhou até a janela para fechá-la e parou um instante observando o tempo nublado. O prédio da frente não era uma visão agradável mas pelo menos não impedia Marcos de observar o pôr do sol em dias quentes. Olhar aquilo só o deu mais vontade de não ir trabalhar. Balançou a cabeça desaprovando definitivamente essa ideia e saiu para se arrumar.
O tempo chuvoso trazia um ar de tristeza à cidade. Ruas mais vazias, não de carros mas sim de pessoas. Elas parecem evitar sair nas calçadas como se ali fora estivesse algum tipo de perigo. A chuva e o vento afastavam a clientela das lojas mas não os que frequentam o bar, esses aparecem de um jeito ou de outro. Nesses dias nublados e de chuva o bar era o único lugar onde a sexta-feira tinha cara de sexta-feira.
Marcos abriu a porta e, como sempre, seu João já havia chegado.
- Bom dia seu João! - ele entrou e se dirigiu direto para trás do balcão já se posicionando.
- Bom dia Marcos. Como você está? - seu João se aproximou e se sentou no balcão.
- Estou bem... mas estaria melhor se estivesse debaixo da coberta - respondeu rindo e esfregando os braços tentando esquentá-los.
- É... tá um friozinho insistente hoje.
- Tá mesmo. Ao menos aqui dentro não está como lá fora... E dona Ana? Melhorou da gripe? Eu fiquei de voltar lá mas acabei me esquecendo.
- Ela está bem. Tomou alguns remédios ontem e hoje já acordou muito melhor.
- Que bom.
- Vai ver o jogo hoje?
- Claro. Tenho que ver nosso time vencer - brincou ele.
Algumas horas se passaram e o bar ficou lotado. A maioria era composta por homens, bebendo, rindo e conversando sobre assuntos variados. Enquanto limpava o balcão, Sandro apareceu caminhando em sua direção.
- Eae Marcos! Como vai nosso especialistas em pássaros? - brincou ao se sentar.
- Como? - perguntou ele confuso.
- Julia comentou daquele curso que você está fazendo pela internet.
- Ah, sim.
- E então, já terminou? Está formado?
- Quase. Tenho mais algumas coisas pra fazer mas essa semana eu termino.
- Tá certo.
- Não é um curso super elaborado... é só um básico pra quem gosta do tema - Marcos não se lembrava exatamente quando começou a se interessar por aves no geral, apenas lembrava-se das várias horas que passava na biblioteca da escola lendo um livro que continha várias espécies de pássaros diferentes. - Faltaria muito ainda pra me tornar um especialista.
- De qualquer forma, você já sabe mais que qualquer um de nós.
- É verdade.
- Pretende fazer algo mais profundo tipo uma faculdade na área?
- Acho que não. No lugar de uma faculdade penso que preferiria um curso mais elaborado, mas quem sabe né?!
- Certo.
- Mas, e a barriga? - perguntou Marcos. - Teve algum problema depois da paulada que você levou?
- Não, nada. Ficou vermelho por algumas horas mas acabou passando.
Sandro pediu uma garrafa de cerveja e a abriu com os dentes mesmo.
- Começando cedo hoje - comentou Marcos. - Nem dez horas é ainda.
- Hoje é sexta. Hoje pode começar cedo – disse rindo. - Então, o pessoal combinou de ir lá em casa hoje para ver a final. Você vai aparecer?
- Foi mal. Eu marquei de ir ver com seu João, então, não vai dar - falou.
- Não, sem problema.
- Tá de folga hoje? – perguntou Marcos.
- Não, quem me dera. Falando nisso, já está na hora de eu voltar. Até mais!
- Até!
As horas passaram e Marcos resolveu pedir um delívere de um restaurante que ele conhecia e almoçar ali mesmo. O bar continuou com um fluxo grande de clientes depois do almoço, o que significava mais trabalho pra ele. Ainda estava cedo quando Julia atravessou a aporta de entrada uma hora antes do seu horário habitual de saída do trabalho.
- Você por aqui a essa hora? O que houve? Foi demitida?
- Não - respondeu ela rindo. - Eu pedi pra sair mais cedo hoje.
- E dona Matilde aceitou?
- Claro que não! Mas eu disse que vou compensar o horário fechando a loja mais tarde outro dia.
- Ah, sim. Algum problema?
- Problema?
- Pra ter saído mais cedo assim?
- Não, nada.
- Tá certo.
- E você? Vai ir na casa do Sandro hoje? - perguntou ela. - Ele me chamou pra ir.
- Não vai dar. Marquei de assistir a final com seu João.
- Ah, que pena. Iria te chamar pra gente dar uma volta.
- Fica para outro dia né. Mas, não gostaria de aparecer por lá? - perguntou sem saber o motivo pelo qual tinha falado isso.
- Não, não - recusou ela imediatamente. - Pode ir tranquilo.
- Tudo bem então. Olha... o jogo deve terminar lá pras 21:00. Se depois disso você ainda quiser sair...
- Por mim tudo bem!
- Certo! Eu passo na sua casa às 21:30, combinado?
- Combinado!
Marcos se virou para mexer nas bebidas e Julia acabou reparando em um pequeno corte presente na sua nuca.
- Nossa, o que houve com você?
- O que? - perguntou confuso se virando.
- Tem... um corte na sua nuca.
- Ah, sim. Eu fui no salão ontem e acabou acontecendo isso. Mas não é nada de demais.
- Devia processar o cara e nunca mais voltar naquele lugar.
- Nem tanto! - respondeu ele rindo. - Foi só um corte de leve. O salão em que estou acostumado a ir estava fechado então tive que procurar outro. Da próxima vez eu espero, não vou me arriscar a voltar naquele lugar outra vez. Nunca mais.
- Bem, você é quem decide - ela se levantou enquanto ajeitava o cabelo - Às 21:30 então em! Vou esperar.
- Estarei lá.
Enquanto a observava sair, Marcos se lembrou do que seu João havia lhe dito sobre o pedido de namoro. Refletiu sobre o fato de que ao mesmo tempo em que ele pensava que ela poderia não estar interessada, ela poderia estar achando que ele não queria algo sério. Depois de pensar bastante, resolveu que precisava arriscar. Estava decidido.
O sol se pôs no horizonte e rapidamente a noite chegou. Já passava das sete e Marcos estava terminando de se arrumar quando seu telefone tocou. Olhou e viu o nome de Julia e, sem nenhum motivo aparente, se lembrou de que ela é a única que ele conhece que não tem um acento na letra U no nome. Ele atendeu a ligação.
- Alô?
- Ei! Liguei pra confirmar se está tudo certo com nosso passeio?
- Hã... sim!? - falou.
- Olha, eu vou ter que sair rapidinho para resolver um problema mas vou estar pronta quando você vier, está bom?
- Tá! – disse ele.
- Então tchau! Te vejo as 21:30.
- Tchau!
Marcos jogou o telefone em cima da cama e foi terminar de se arrumar, ainda faltava vestir sua camisa. Foi até o guarda-roupa não muito novo e o abriu à procura de sua camiseta do time. Devido aos 1,90 metros de altura do móvel, Marcos apenas conseguia tatear a parte de cima uma vez que ele era menor. Ao não encontrar o que procurava, ele olhou entre os cabides, na parte de baixo e nas gavetas mas também não a encontrou. Se virou para trás e, no canto do quarto, avistou ela amontoada com outras roupas sujas. Esqueceu de lavá-la. Resolveu pegar outra qualquer e terminar de se arrumar. Ao voltar, pregou o celular e percebeu que pela hora o jogo já havia começado, teve então que sair as pressas para chegar a tempo. Ele fechou a porta, desceu as escadas apressado e saiu em direção a casa de seu João.
***
As mãos que não paravam de se mexer e os olhos fixos na televisão denunciavam a aflição de seu João para que a partida começasse logo. Dona Ana estava se arrumando para o jogo. Cerveja, petiscos, camisa do time, superstições... tudo estava pronto. Por precaução, seu João tomou seu remédio de controle da pressão antes tudo começar pois não queria correr o risco de passar mal justo hoje no jogo mais importante de todos.
- Querida?! – gritou ele da sala. - Vem! Já vai começar!
Dona Ana apareceu na sala desfilando com sua camiseta oficial autografada.
- Como estou? – falou dando um giro.
- Como sempre, linda - respondeu rindo. - Vai dar muita sorte para o nosso time.
Ela se acomodou no sofá e se serviu com a cerveja e os petiscos que ali estavam.
- Querido, o Marcos não vinha ver o jogo com a gente? – perguntou.
- Acredito que sim. Ele me confirmou que viria, estava muito animado com esse jogo... - seu João parou pensando por um instante - Ele deve estar com Julia, ela esteve no bar hoje mais cedo e ouvi eles combinando de sair.
- Ela parece ser uma boa garota - comentou dona Ana.
Marcos não havia conversado inteiramente com eles sobre Julia. Apenas algumas citações mas sempre era negando que estivessem namorando ao ser interrogado por dona Ana.
- Daqui a pouco ele aparece, talvez até traga ela - disse.
A bola rolou dando início à partida.
***
O tempo estava frio e o céu nublado, o que só aumentava a escuridão da noite. As luzes dos postes formavam no asfalto grandes círculos alaranjados, mas não grandes o suficiente pra iluminar a calçada e a fachada das lojas onde muitas pessoas se escondiam para dormir ou usar drogas. O medo de ser assaltado ou até morto por um daqueles usuários fazia com que Marcos olhasse a todo momento para os lados para ver se alguém iria se levantar.
Atravessava o cruzamento, agora silencioso, quando escutou um barulho vindo do lado esquerdo da rua e ao olhar viu uma vã escura passando reto em velocidade baixa. Um braço tatuado exposto para o lado de fora do vidro era tudo que se podia observar daquela distância. Neste momento começou a garoar e aparentemente iria aumentar e começar a chover. Marcos continuou seu caminho mas antes de virar a esquina do quarteirão olhou para trás e, de relance, viu uma figura escura surgir de trás de um prédio. Sua imaginação já começou a criar teorias de que fosse alguém perseguindo ele. Passou pelo bar e olhou novamente para trás e lá estava ela, a pessoa também encapuzada que agora parecia o seguir. A possibilidade de que fosse alguém querendo assaltá-lo começou a o assustar, fazendo ele apressar o passo. A avenida era enorme mas não havia nenhuma loja aberta a essa hora na na qual ele pudesse se esconder daquilo que o perseguia.
O coração de Marcos começou a acelerar com os passos mais rápidos enquanto a figura continuava a mais ou menos sete metros atrás dele. Marcos tirou as mãos do bolso da blusa pois a posição o impedia de se mover com mais agilidade e velocidade. Cinco metros. A rua vazia, nenhuma pessoa por perto, nenhum amigo para ajudá-lo, e ele não tinha nada nas mãos que pudesse se defender. Ele pegou o celular para ligar pro seu João mas o colocou novamente no bolso. Três metros. O medo tomou conta, sua respiração ficou acelerada, Marcos olhou para as janelas dos prédios mas nenhuma estava aberta e portanto ninguém poderia chamar a polícia para ajudá-lo. Dois metros. Ele escutou passos mais rápidos e começou a correr. Não olhava para trás. Apenas escutava os passos do seu perseguidor que mais pareciam socos contra alguma parede. Ele pegou o celular novamente, dessa vez para ligar para a polícia, e quando se virou para ver a que distância a homem estava, POW!
Marcos rodopiou já perdendo os sentidos ao levar uma pancada na cabeça por um taco de basebol dada
por um comparça que estava escondido na escuridão de um beco entre dois prédios. Despencou de bruços já desacordado e quase quebrando a mão que estava com o celular.
- Esse é o número 1? - perguntou um deles.
- Sim.
O homem retirou do bolso uma espécie de carimbo e marcou o pulso de Marcos. Depois o marcou na nuca com outro.
Uma vã preta parou de frente para eles. O encapuzado que estava o seguindo pegou as pernas e o outro os braços, suspenderam Marcos desacordado e o jogaram dentro do carro como se estivessem jogando uma caixa velha no lixo. Fecharam as portas e saíram em queimando pneu naquela rua vazia.
***
Os times atacavam e defendiam o maximo possível, cada um dando tudo de si para ganhar aquele campeonato e levantar aquela taça. Caso o time do seu João ganhe, esse seria seu primeiro título. Por isso aquela não era qualquer final, era A FINAL.
Depois de alguns ataques perigosos sofridos e levados, faltas que beiravam à violência e posse de bola superior do time adversário, o primeiro tempo terminou com o placar em zero a zero. Seu João se levantou e foi ao banheiro aproveitando o intervalo.
- Querida, olha no meu celular e vê se o Marcos me ligou ou mandou alguma mensagem. Já terminou o primeiro tempo e ele ainda não chegou – disse em um tom de preocupação.
- Onde está seu telefone? – perguntou ela.
Ele disse onde estava, ela então pegou o telefone e olhou no visor mas não havia nada.
- Não tem nada não querido. Você quer que eu ligue para ele?
- Não - respondeu depois de pensar um pouco. - Ele deve estar com a Julia. Podemos atrapalhar alguma coisa se ligarmos – disse rindo.
Dona Ana deu uma risada e colocou o celular de volta na mesa. Seu João voltou do banheiro e se sentou pegando uma lata de cerveja. Sua cara feia denunciava que a cerveja já estava começando a ficar quente enquanto as mensagens de zoação dos seus amigos que torciam para outros times não paravam de chegar. Seu João leu algumas, respondeu outras e deixou o resto de lado pois o segundo tempo já estava começando.
- Vamos time! Precisamos ganhar! Vamos fazer história! – disse.
O time jogou com raça, mostraram todo seu futebol e, com uma ajudinha da sorte, a bola desviou em um outro jogador e parou no fundo da rede adversária dando para o time do seu João o único gol da partida que acabou garantindo a tão sonhada vitória do campeonato.
- É CAMPEÃO! É CAMPEÃO! - seu João gritava.
Ele puxou dona Ana pelo braço e, ao som do hino do time e iluminados pela luz da sala, começaram a dançar para comemorar a vitória. Uma noite alegre e de comemoração que só não foi melhor devido a falta de Marcos. Uma falta até então sem justificativa.
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