Capítulo 4

- Boa noite dona Ana! – falou Marcos passando primeiro a cabeça e depois o resto do corpo pela porta.

Com seu típico avental florido usado para cozinhar, dona Ana estava de frente para o fogão mexendo em algumas panelas preparando o jantar. O prato de hoje era arroz e strogonoff, prato esse que segundo Marcos era "o melhor estragonoff que ele já comeu". Mexia em uma panela grande fazendo movimentos circulares quando a saudação de Marcos chamou sua atenção a fazendo se virar.

- Boa noite! – disse ela sorrindo.

- Humm... – Marcos se aproximou da panela e suspirou. – Strogonoff é realmente o melhor prato que existe. Já comi em outros lugares mas a senhora faz de uma forma que fica incrível. Como pode isso?!

- Você sabe – falou dando um leve tapa no ombro dele. – Segredos de culinária. Não posso revelar.

Começaram soltar gargalhadas altas que chamaram a a tenção de seu João que virou o rosto em direção à cozinha para saber o que estava acontecendo.

- Seu João? – perguntou Marcos quando parou de rir.

- Está na sala.

- Certo. Eu vou lá. – disse dando um beijo no rosto dela e se retirando da cozinha.

Seu João estava sentado em seu sofá de frente pra TV praticando seu compromisso semanal: assistir futebol. Porém estava mais inquieto que o normal pois era um jogo importante. Seu time está disputando a semifinal e em casa. Ele é muito fã do esporte e quando jovem até tentou ser jogador mas percebeu que apesar de gostar muito, sua vocação era outra, a de ser policial.

- Opa! Eai Marcos! - falou animado – Vem! Senta aqui!

- E o jogo? Como estamos? – Marcos se acomodou no sofá ao lado dele.

- Perdendo - disse com impaciência.

O jogo estava agitado. O time da casa atacava cada vez mais porém com dificuldade porque o time visitante possuía um elenco muito bom e já vinha com um resultado positivo de vitórias no campeonato. Ambas as torcidas se esguelavam na arquibancada cantando o hino do time e tentando transmitir um pouco mais de confiança aos jogadores. E era desse tipo de impulso que o time de seu João precisava. Havia chance de vencer mas pra isso eles deveriam se esforçar e virar o atual placar de 1x0.

- É claro que nada é garantido mas facilitaria muito se eles conseguissem o empate ainda no primeiro tempo, assim só precisarão fazer mais um no segundo e segurar o resultado – comentou Marcos.

- É, mas desse jeito tá difícil. Olha lá! - seu João se levantou do sofá esfregando os cabelos com as mãos. - Como aquele cara conseguiu errar o gol!?

Os times continuaram firmes e obstinados. Alguns palavrões contidos e sobressaltos do sofá vindo de seu João acompanharam a disputada partida até que nos minutos finais do primeiro tempo o time de seu João cobrou um escanteio e, de dentro da área e num movimento preciso de cabeça, o camisa sete do time trouxe alívio à torcida ao alacançar o empate tão desejado.

Marcos sentiu uma voz grossa invadir seu ouvido e entre risos levou a mão para tampá-lo enquanto sentia as vibrações do chão causadas pelos pulos de alegria de seu João.

- GOOOOL!

Marcos deu uma risada de alívio, a atual situação era melhor e agora a classificação estava mais perto. Como ele tinha dito, aconteceu. Seu time virou o placar e conseguiu segurar o resultado garantindo a vaga na disputa da final. Apesar dos gritos de comemoração e da injeção de confiança causada pela vitória de virada, tanto seu João quanto Marcos tinham consciência de que a final seria duas vezes mais difícil. Porém, não deixariam o medo do que ainda estava por vir impedi-los de comemorar a classificação. Ainda conversavam sobre as faltas e falhas da arbitragem quando reconheceram o barulho dos pratos sendo colocados na mesa denunciando que o jantar já estava pronto.

- Espera que eu ajudo - Marcos se levantou rapidamente e se dirigiu até a cozinha pegando a panela de strogonoff. Dona Ana veio atrás e pegou a panela de arroz.

- Strogonoff da dona Ana - disse Marcos já com todos sentados à mesa. - A melhor forma de comemorar a classificação.

- Rumo a final! - relembrou seu João.

- Então, se saíram bem!... Eu disse que seu time teria dificuldade, mas você disse "não a gente vai ganhar tranquilo" - dona Ana fez uma imitação nem um pouco convincente do que seu João havia falado para ela horas antes.

Não era incomum que Marcos viesse comer com eles porém às vezes sentia como se fosse um "peso". Essa sensação porém não era anormal, vinha de um tempo em que se ele teve que se acostumar a estar sozinho e acabou se tornando independente. Depois que sua mãe morreu, anos depois de seu pai, ele ficou morando na rua. Não um tempo muito longo, uns oito ou nove meses. Teve que aprender a sobreviver morando na rua e isso lhe trouxe um ressentimento por ambas as partes de sua família pois nenhuma o procurou quando sua mãe morreu.

Primeiro, vivia um vida normal sem muitas cobranças alem das habituais e sem perigo iminente, e aí sua realidade se quebrou e ele precisou enfrentar uma completamente diferente e muito mais difícil que a anterior. E então quando estava começando a se familiarizar com a nova, o choque veio novamente a partir do momento em que foi parar em um orfanato onde definitivamente tinha horário para tudo.

Essas mistura de mudanças bruscas dificultou sua adaptação ao orfanato e as outras pessoas que conviviam com ele. Apesar de ter sido levado para um local seguro, não se lembrava ao certo como tudo conteceu. Em sua memória via apenas algumas vozes estranhas e misturadas se aproximando antes de desmaiar completamente. Lembrava-se também de sentir seu corpo ser suspenso. Depois disso acordou em uma cama de hospital e após dois dias de repouso, algumas pessoas estranhas para ele e vestidas de um jeito formal o buscaram e o levaram para um orfanato. No início pensou em fugir, sentia-se preso. Mas, depois de conversar com a gerência e com outras pessoas, pensou melhor e decidiu ficar. Não o faria mal e, de qualquer forma, ele só ficaria ali por pouco tempo pois seu aniversário de dezessete anos já havia acontecido a alguns meses.

Nunca entendeu ao certo, e também não procurou saber sobre pois o pior já havia passado, mas estranhou a reação espantada do médico que o visitou no seu segundo dia no hospital. Segurando uma prancheta e olhando seu exames, ele se aproximou e mediu sua temperatura. Colocou o estetoscópio em seu peito e depois nas suas costas o mandando respirar fundo. Depois de finalizar o processo, deu auta o liberando. Dizia que em todo seu tempo como médico não tinha visto uma situação assim. "É estranho uma pessoa que passou a noite inteira debaixo da chuva não ter desenvolvido uma pneumonia", dizia ele.

Já instalado e parcialmente acostumado a rotina, Marcos se inscreveu em um projeto social de uma igreja do bairro que oferecia uma refeição noturna aos moradores de rua em datas comemorativas, além de outras duas vezes por semana. Seu tempo vivendo nas ruas e convivendo com os outros sem-teto o fez descobrir que a realidade era muito pior do que aquela que ele imaginava ser. Todas aquelas pessoas precisavam de ajuda e se, de dentro daquele orfanato, repartir uma tigela de sopa para aqueles desabrigados era tudo que ele podia fazer para ajudar, então ele faria.

Os sorrisos e agradecimentos sinceros lhe traziam uma certa paz e o lembrava a todo instante do tempo em que esteve do outro lado da mesa.
Bastante conhecido, o projeto recebia muita ajuda e a convivência com os outros voluntários, dividindo aquela experiência, era uma vantagem a parte. Além de transformar, mesmo que um pouco, a vida dos que recebiam o alimento o projeto também aproximava os participante. Marcos conversava com todos e durante uma dessas conversar ele acabou conhecendo um senhor muito simpático e educado. Diferentemente das outras pessoas mais velhas que não sabiam conversar com adolescentes, a conversa com aquele senhor era agradável e Marcos acabou contando ao homem sua história.

Durante certo tempo, conversaram bastante sobre o novo empreendimento que o senhor iria abrir. Ele estava se aposentando e queria abrir um negócio. Um que ele sempre quis abrir desde novo.

• Flashback on •

- Marcos?

Uma das voluntárias o chamou mas ele não respondeu.

- Marcos?

Chamou dessa vez estalando os dedos em frente seu rosto e trazendo ele de volta a realidade. Marcos voltou a servir as tigelas com o líquido quente mas sua mente estava longe dali. Faltava pouco mais de um mês para seu aniversário de dezoito anos e ainda faltava alguns meses para terminar o ensino médio. Não sabia o que faria a seguir pois com os dezoito anos completos você precisa deixar o orfanato. Era uma realidade complicada mas, como já havia morado na rua, decidiu que daria um jeito de resolver essa situação também.

Estavam terminando de guardar as vasílias quando viu o senhor, se amigo, se aproximando coberto por um casaco e com os braços cruzados para diminuir o frio.

- Seu João? O que está fazendo aqui? Pensei que estivesse passando mal. O senhor não apareceu, e olha que não falta nenhum dia.

- É. Hoje tive um problema para resolver e não consegui vir...

Seu João esteve durante a tarde toda conversando com sua esposa. Tinha tido uma ideia que poderia ajudar Marcos mas queria uma segunda opinião antes de tomar uma atitude. Ana, sua esposa, concordou com a ideia. Conversar com Marcos estava fazendo bem ao seu marido, Ana percebia isso.

Marcos limpava as mãos e olhava ao redor como se procurasse algo enquanto esperava para ver se seu João continuaria a falar. Os mendigos já tinham se dispersado e agora a rua estava vazia. Somente eles ainda ficavam no local.

- Algum problema o trouxe até aqui? - Marcos resolveu perguntar. Seu João não respondeu de imediato.
Pensava novamente se o que estava prestes a propor era uma boa ideia e também se, mesmo que fosse, se ela seria aceita.

- Não... não aconteceu nenhum problema. Eu vim aqui exatamente para falar com você.

Pego de surpresa, Marcos ficou curioso e até um pouco preocupado. Não imaginava o que era tão importante para que ele visse até ali naquela hora apenas para falar com ele.

- Você sabe que eu vou abrir um bar... - disse colocando as mãos dentro do bolso do casaco. - E você vai fazer dezoito anos daqui a pouco. Vai ter que sair do orfanato. Eu gostaria de te fazer uma proposta.

- Uma proposta? Que tipo de proposta?

- Uma proposta de emprego. Você não tem para onde ir qua do sair daquele lugar certo?

Marcos parou pensando por um instante.

- Não, não tenho - respondeu.

- Então... falta poucos dias para a inauguração do meu bar.

- Nossa, que bom. Parabéns. Nem imaginava que já estava finalizado.

- Obrigado. Foi um processo rápido, era só comprar os móveis. A parte realmente complicada era só a papelada mesmo. Emfim, eu gostaria de te oferecer um emprego no bar - seu João percebeu a feição de Marcos mudar de confusa para surpresa com a proposta. - Funcionaria assim: depois que sair você fica no quartinho dos fundos do bar por um tempo. Aí depois que começar a ganhar o próprio salário você aluga um lugar só seu.

A proposta era repentina. Os planos feitos em sua mente sobre o que faria depois de deixar o orfanato se embaralharam com o que acabava de ouvir. Não entendia o "por quê" daquela oferta e também não sabia se deveria aceitar.

- Um emprego? No seu bar?

- Sim.

- Não sei se devo aceitar. Olha, mal nos conhecemos.

- Eu sei mas, essa não é a questão aqui. Você já morou na rua, e como não tem para onde ir quando sair, provavelmente você vai acabar voltando. Veja, se aceitar minha proposta você poderá evitar repetir essa parte ruim da sua história.

Ele estava certo. Ao que parecia, a proposta era perfeita. Marcos sabia que voltar para as ruas seria muito difícil, e passar por aquilo novamente não o faria nada bem.

- O senhor deve conhecer muitas pessoas e ter muitos amigos. Então, por que está oferecendo essa oportunidade de emprego logo para mim?

- Exatamente por isso! Oportunidade. Uma chance de retribuir o que fez por mim.

O sentimento de confusão se instaurou novamente. Marcos repassou pela memória todas as vezes em que se lembrava de terem conversado. Grande parte era de assuntos sobre o bar e algumas poucas vezes relacionado a vida pessoal de ambos.

Será se é sobre alguma dessas conversas que ele está falando?, pensou.

- Me... desculpe se eu parecer sem educação ou qualquer coisa do tipo mas, como foi que eu lhe ajudei?

- Conversando - respondeu. - Eu... estava muito mal já há alguns dias. Discuti com meu filho. Brigamos sério, não vêm ao caso no momento mas, foi uma discussão muito feita. Uma daquelas onde você diz e ouve coisas que só são ditas em momentos de raiva. Bem, ele se mudou a um certo tempo. Eu estava muito mal em casa e minha esposa me convenceu de participar desse projeto porque, segundo ela, isso me faria bem. Eu resolvi aceitar. Comecei poucos dias antes de você e, sinceramente, não estava surgindo o efeito esperado. Foi quando conheci você e começamos a conversar. Acho que era isso que eu precisava. Conversar. Foi assim que você me ajudou.

- É... de nada. Bem, se é assim... então eu aceito a proposta, muito obrigado. Realmente, vai me ajudar bastante.

- Essa é minha intenção.

• Flashback off •

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