Capítulo 14

Os minutos sozinho naquela sala pareciam se transformar em horas. Marcos sentia-se sozinho e cansando. Depois de tudo que escutou, imaginava se alguma coisa na sua vida realmente era o que aparentava ser. Julia era uma farsa, seu pai foi vítima de um assassinato e agora estava destinado a ser uma cobaia particular de uma corporação pelo resto de sua vida caso não encontrasse uma maneira de mudar esse futuro. De cabeça abaixada, colocou as células cinzentas pra funcionar e começou a trabalhar em alguma ideia que o permitisse escapar dali quando a porta da sala se abriu. Julia entrou furtivamente para que ninguém a visse.

De pé e ainda sem falar nada, sua postura era de recuo, muito diferente da intimidadora que apresentou quando se encontraram pela primeira vez já dentro da empresa. Seu cabelo estava preso e apesar de tentar manter uma expressão firme, traços de culpa se eram visíveis em seu rosto.

- Ei... Como você está? - ela perguntou.

Marcos pensou em responder de forma grosseira. Por anos mantiveram uma relação de amizade, e às vezes até mais que amizade para no final acabar destruindo toda uma confiança depositada e depois disso surgir como se estivesse algum respingo de preocupação.

- Não sei... Me diga você.

- Parece bem – disse sem olhar diretamente para ele.

Sua forma tranquila de falar o irritou.

- É o que você acha?

- Sim.

- Olha isso - Marcos levantou os braços deixando as algemas a mostra. - Eu estou algemado, dentro de uma empresa, dentro de um vulcão, perdido em uma ilha desconhecida. Quase morri no tiroteio da chegada, na fuga durante a noite e com certeza não vou sobreviver ao que estão planejando fazer comigo agora que, ironicamente, a pessoa que era considerada "não importante" possui no sangue algo que vale milhões. Se para você parece que eu estou bem, isso significa que sua definição de “estar bem” é um tanto quanto duvidosa. Mas, afinal, o que é certeza sobre você não é mesmo?!

Julia olhou o relógio de pulso. Tinha 10 minutos.

- Eu quis dizer fisicamente falando - ela respondeu. - Perante a atual situação você me pareceu bem. Foi isso que eu quis dizer.

- Sei. É uma pena que essa realidade não vá demorar por muito tempo não é mesmo.

Julia se sentou de frente para ele. Marcos evitou de encará-la, não conseguia fazer isso.

- Escute Marcos, eu não queria que isso tivesse acontecido.

Ele não respondeu. Apenas balançou a cabeça negativamente ainda sem encará-la.

- Queria que soubesse disso... Tem que acreditar em mim. Não tinha conhecimento dessa parte. Até onde eu sabia, era só observação - Julia tentava argumentar mas sentia que Marcos não dava espaço para escutar o que ela tinha a dizer.

Ele virou o rosto e a encarou fixamente nos olho.

- Sinceramente, me diga: como posso confiar em você? Nem seu nome é verdadeiro. É sério. Você é uma farsa do início ao fim. Me desculpa se era o contrário que você esperava - disse ironicamente.

- Mas deveria. Nos conhecemos há um bom tempo, temos uma história.

- E eu fui engado durante todo esse tempo, caso você não se lembre! Não finja que essa história teve algum significado para você. Já é baixo o suficiente a mentira que você manteve durante todo esse tempo.

- Nem tudo foi uma mentira.

- Será mesmo?! Porque se me lembro bem, da última vez que alguém se confundiu e insinuou, olha só, insinuou que estávamos namorando você não teve dúvida nenhuma em negar fala da pessoa como se repudiasse alguém dizendo que você era culpada de um crime hediondo.

- Não é bem assim. Es-

- É assim sim! - Marcos a cortou. - Você precisa reconhecer isso. Você é... desse jeito. Não dá espaço, não compartilha nada. É fechada demais! Até comigo! E graças a Deus que você é assim, caso contrário pra mim seria três vezes pior do que está sendo no momento.

- Eu... eu gostava de verdade de você tá. Isso era real.

- Tá aí. Gostava, no passado. E tudo que você fez no passado foi um personagem, um bem convincente por sinal. Fez algum curso de teatro quando adolescente?! Porque você é boa.

- Nunca nem atuei na escola.

- Então parabéns você tem um talento natural. Pena que não use da forma que deveria.

Eles evitavam se encarar. Marcos queria mas não conseguia acreditar no que Julia falava. Ela o enganou por anos nas mais diversas situações e lugares, fazer o mesmo ali naquele ambiente simples e sem interferência seria brincadeira para ela. Marcos se virou para frente novamente mas dessa vez não a encarou da forma firme de antes. Desviava o olhar algumas vezes.

- Sabe aquela frase “há males que vem para o bem”? Então, ela se encaixa perfeitamente nessa situação.

- E qual é a parte boa nisso tudo sendo que você mesmo disse que não está nada bem? - perguntou.

- Sabe aquele nosso encontro? Espera! - ele parou para corrigir a frase. - Nosso falso encontro depois do jogo?

Um sorriso de canto apareceu no rosto dela.

- Você fala o nosso encontro de verdade? Sim! O que tem ele?

- Então... a parte boa do meu sequestro é que me impediu de fazer uma burrada gigante que deixaria tudo ainda pior.

- Que burrada?

- Aquela noite, eu iria pedi-la em namoro.

Marcos percebeu ela ficar surpresa com sua fala.

- Iria me... pedir em namoro? - perguntou.

- Sim. Já tinha até conversado com seu João e dona Ana a respeito e eles tinham me dado todo apoio. Mas que bom que isso não aconteceu né - disse. Apesar de tudo, Marcos ainda queria que tanto o encontro quanto o pedido tivessem acontecido.

"Eu teria aceitado", Julia cochicou enquanto pensava no que acabou de ouvir.

- O que disse?

- Eu disse... que, eu aceitaria. Que eu teria dito SIM se tivesse me pedido.

- Esperta.

- Como é? - perguntou ela confusa.

- Eu disse que seria esperta se aceitasse. Você, a principal, só me via duas ou três vezes na semana. Aceitando meu pedido talvez fôssemos morar juntos, com isso, passaria vinte e quatro horas me vigiando. Poderia até ser promovida por tamanha eficiência.

A expressão de Julia mudou e agora era a raiva que transparecia em seu rosto. Imaginou que não seria tão difícil convencê-lo mas descobriu que estava errada a respeito de Marcos. Ela não estava conseguindo quebrar a barreira de desconfiança dele. E, no fundo, ela sabia que era a única responsável pela criação dessa barreira.

- Eu gosto de verdade de você está bem! Não sou esse monstro todo aí que você pensa não! Aliás, eu nem tenho autorização pra vir conversar com você. Estou arriscando minha cabeça vindo aqui te ver.

- Não é problema meu. Não chamei você até aqui. Depois de todos esse tempo me fazendo de trouxa, perder o emprego seria o mínimo que uma pessoa como você merece.

- Uma pessoa com o eu?

- Sim.

- Uma pessoa que estava fazendo seu trabalho? Era isso que eu fazia. Observação e relatório, apenas. Eu não tinha ideia do que fariam com você e até tentei te ajudar a se livrar de acabar assim - disse. Julia percebeu que mesmo dizendo que tentou ajudá-lo ainda assim ele parecia não acreditar. Restabelecer a confiança seria difícil. - Depois de um tempo trabalhando, eu comecei desconfiar dessa empresa e procurei saber mais sobre essa organização. Não tinha certeza mas sentia que o que faziam não era algo totalmente bom como saía nos jornais. Depois de alguns boatos e investigações eu descobri, mas aí já era tarde. Descobriram onde meus pais moram, e de um tempo pra cá ele também passaram a ser vigiados. Assim como seu João e dona Ana já eram. Se você tivesse decidido a fazer a faculdade não estaríamos aqui agora.

Marcos a observava se defendendo. Era ridículo ela dizer que não sabia de absolutamente nada e, quando ela citou a faculdade, uma luz se acendeu em sua mente. Mais uma mentira. Mais uma manipulação.

- Você... então quer dizer que... todos os toques de seu João, a insistência para que eu fizesse uma faculdade... Era você o tempo todo.

Ela permaneceu calada por um tempo e enfim sinalizou um sim com a cabeça.

- Eu disse para ele que você precisava estudar, ter uma carreira. Disse também que você tinha me confidenciado que não gostava muito do... trabalho.

- Como? pôde? - perguntou em choque. Julia havia passado de todos os limites ao dizer aquilo. - Eu te contei minha história! Aquele homem praticamente salvou minha vida me dando aquele emprego e você faz com eu me passe por ingrato?

- A situação era séria, não estava vendo uma outra saída!

- E a brilhante ideia que você teve foi colocar em questão toda minha relação com eles? Os mesmo que me receberam, um estranho, na casa deles e que hoje me tratam como se fosse um filho?

- Não era minha intenção atrapalhar sua vida. Eu observei seus gostos e, caso tivesse decidido fazer a faculdade, era grande a chance de que precisaria se mudar para estudar. Com isso poderíamos desaparecer e eles nem ficariam sabendo.

- Olha aqui - disse Marcos firme a encarando. Julia nunca havia visto aquele olhar antes. - Existem limites... Para todos os tipos de pessoas. Mas você ultrapassou todos eles ao me colocar nessa posição com seu João e dona Ana. Se tem uma coisa que eu não sou nessa vida é ingrato. Não há "me desculpe" que me fará esquecer essa sua atitude.

- Eu sei.

- Não você não sabe. Se realmente soubesse, teria consciência de que se seu João não tivesse me ajudado, talvez nem existisse um Marcos para você enganar.

- Não foi por maldade. Foi uma estratégia, é você sabe disso.

- Se você diz - retrucou ele.

Julia se calou por um instante.

- Para meu plano dar certo eu precisava que você largasse o emprego - explicou ela. - Bem, essa era minha ideia, até eu ser forçada a mudá-la de última hora... Se lembra que no dia do nosso encontro eu disse que teria que dar uma saída antes porque precisava resolver algo?

A memória dele o levou até o dia do telefonema recebido.

- Sim.

- Então. Aquela noite, Courtney me ligou e pediu para ir encontrá-la, era para me informar que a missão havia chegado ao fim e que "iriam buscar você" - disse fazendo aspas com os dedos. - Eu pedi mais explicações, as quais ela não me deu na hora, e acabei demonstrando insatisfação. Disse que ainda havia mais para descobrir, desvendar sobre você e seus pais. Mas, como na minha análise de comportamento que ela recebeu do exército estava escrito que eu tinha "uma clara inclinação a tomar atitudes impulsivas", acho que ela resolveu se prevenir.

- Então você tentou me salvar... e quando pretendia fazer isso?

- No nosso encontro.

- Como? Não acha que eu abandonaria tudo e iria com você para um lugar que eu nem conheço né?

- Não – ela fez uma pausa. Pensou se deveria contar o que tinha planejado de última hora ou se inventaria uma outra mentira para tentar não parecer tão ruim. Porém ela precisava deixar claro que era confiável, então resolveu falar a verdade. – Você seria dopado, quando acordasse já estaríamos longe.

A expressão calma de Marcos não se alterou e Julia emfim percebeu o impacto que havia causado.

- O fato é que eu tentei te salvar - continuou ela. - Mas isso não importa agora, preciso tirá-lo daqui o mais rápido possível.

- Porque agora você é uma boa pessoa e se arrependeu do que fez?

- Porque você é uma boa pessoa e não pode ficar aqui. E também porque... você foi muito bom comigo. Fez com que eu me sentisse, não sei, acho que... especial pra alguém - Marcos a encarou curioso, não entendeu exatamente o que ela quis dizer.

- Como assim?

- Você sabe... - disse balançando as mãos - Filha única, recebe total atenção dos pais... Deve achar que fui muito mimada, e sim vai estar certo, mas eu nunca deixei isso subir a cabeça. Sempre soube esperar e sempre tive consciência de que não sou melhor do que os outros... Porém eles não apoiaram minha decisão de entrar para o exército – falou em um tom triste. – Eu não era muito velha na época e tive que ir para outro estado para seguir meu sonho e sair de casa sem o apoio deles acabou tornando as coisas mais difíceis. Eu não tinha amigos no exército, apenas colegas aí decidi me focar totalmente no trabalho. Isso prejudicou um pouco minha relação com outras pessoas. É tipo, se as pessoas que mais se importam comigo não me apoiaram então imagine essas que nem meus parentes são? - disse o encarando. Marcos escutava atentamente. - Quando comecei a me aproximar de você não esperava nada de diferente. Eu pensava "é só outro cara que está fingindo ser meu amigo pra conseguir outra coisa". Mas aí vieram as mensagens de bom dia, telefonemas demorados a noite, passeios e preocupação comigo... como aquela vez em que passei mal e não apareci para trabalhar e você me ligou preocupado, veio na minha casa e até dormiu no sofá para eu não ficar sozinha caso as coisas piorassem durante a noite... Aliás, como você ficou sabendo que eu não fui trabalhar? Nunca me disse.

- Dona Matilde - ele respondeu. - Ela passou no bar para deixar uma encomenda que dona Ana tinha feito, aqueles bolinhos que ela fazia sabe!? Aí ela acabou comentando que a melhor funcionária que ela já teve passou mal e não pôde ir trabalhar.

- Ela não disse isso - Julia sorriu.

- Não, eu não te fiz um elogio. Ela disse exatamente assim.

O sorriso de Julia morreu lentamente assim que as palavras atingiram seus ouvidos.

- Não importa - falou mexendo no cabelo. - O negócio é que... Você fazia tudo isso e eu não sentia em momento nenhum você insistindo ou forçando alguma coisa a mais. Então eu pensei "ele não é igual aos outros, ele vai mais devagar", só que o tempo continuou passando e mesmo assim nada. Aí eu comecei a pensar que você realmente sentia algo né. Eu nunca tive o mínimo interessei por pássaros e do nada estava passando horas escutando você falar sobre eles. E essa ideia de que isso era real foi crescendo até que...

- Você me atacou. Achei que ficaria sem beiço aquele dia - disse sorrindo. Julia o acompanhou, a alegria retornou ao seu rosto. Eles se encararam por alguns segundos em silêncio e logo os sorrisos desapareceram novamente.

- Esse tipo de aproximação mais pessoal - ela continuou -, não era permitida e eu poderia ter problemas se os meus chefes descobrissem. E ainda posso. Por isso te recebi daquela forma fria quando você chegou. Não podia demonstrar preocupação pessoal, afinal eu preciso estar do lado de fora para conseguir te ajudar. Se tivesse deixado claro que havia me envolvido demais, com certeza estaria dentro de uma dessas celas.

- Então resumindo, quer me ajudar porque se sente mal pelo que fez e essa é a forma que encontrou de demonstrar isso? - perguntou Marcos.

- Eu não resumiria dessa form-

- Mas é assim que eu vejo - falou Marcos a cortando.

- Então... certo, de uma forma bastante resumida... é isso mesmo.

Pensativo, Marcos abaixou os olhos e a marca em seu pulso apareceu em seu campo de visão. Se lembrou então da conversa com Cortney sobre seu sangue e o provável valor dele. Os soldados não podiam fazer nada letal contra eles e Marcos sabia que só era útil vivo. Decidiu arriscar. Ele não tinha mais total certeza se Julia estava sendo sincera ao dizer que queria ajudar, porém aquela podia ser sua única chance e não poderia arriscar sua vida e dos seus amigos ao negá-la por causa de ressentimento.

- Tudo bem - disse percebendo Julia ficando aliviada cam sua fala. - E quando pretende fazer isso?

- Como hoje é terça, teremos que esperar até sexta qué é quando a segurança fica mais fraca - explicou. - Na hora certa eu venho te buscar. Mas agora eu preciso ir, não posso ficar mais. Eles estão fazendo uma mudança no sistema de segurança, só tinha 10 minutos até as câmeras voltarem a funcionar. E está quase acabando.

- Certo, mas eu não vou sozinho, tenho que tirar algumas outras pessoas daqui. Elas me ajudaram do lado de fora.

- Tudo bem.

Ela saiu da sala cuidadosamente para que ninguém a visse. Julia conhecia muito bem como aquilo funcionava. Durante a madrugada de sexta-feira eles precisam levar para a sede que fica na cidade, alguns medicamentos novos e mais amostras de alguns já existentes. Com isso, uma parte dos cientistas vai embora e um certo número de seguranças os acompanha para protegê-los. Assim, a vigilância fica mais fraca, mas não tanto.

Três dias. Era o que Marcos tinha que esperar até o momento em que saberia se Julia ainda era alguém confiável. E ele precisava esperar, não havia nada que pudesse fazer para adiantar o processo.

Das várias missões que Julia já fez, essa definitivamente seria a missão mais arriscada de sua vida. E não só porque o tempo era curto, mas também porque era a única especializada no tipo de situação que estava planejando. E ela estava pronta.

Segundos depois que Julia saiu, Cortney retornou acompanhada por Lúcio e um outro homem. Marcos foi guiado para fora da sala e novamente pelos corredores e pela escada até sua cela. Preocupados, Paula, Mônica e Fred fizeram perguntas sobre o que aconteceu e Marcos apenas dizia o necessário, não estava afim de conversar no momento. Seus pensamentos estavam confusos mas, o que imperava em sua cabeça era a dúvida a respeito da mudança de Julia e suas boas intenções. Pelo tanto que conversaram parecia absurdo pensar que ela estivesse todo aquele tempo apenas fingindo. Mas, o que são dez minutos de teatro para quem passou mais de um ano fingindo ser outra pessoa?

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