Capítulo 1

Já amanheceu faz tempo, a chuva fina cai sobre o telhado, as janelas estão abertas e o vento frio adentra o quarto, fazendo as finas e brancas cortinas dançarem conforme ele as conduz. A névoa está baixa, fazendo jus ao nome do Palácio.

Sentei-me na cama apoiando as costas no dossel com detalhes delicados esculpidos na madeira. Observo a chuva caindo lá fora, sinto um calafrio percorrer meu corpo devido ao fato de estar usando somente  uma camiseta branca e um short. Uma mexa do meu cabelo cai em meu rosto, e eu a coloco atrás da orelha.

Liam ainda dorme, enquanto eu permaneço ao seu lado observando seus cabelos castanhos bagunçados pelos travesseiros, ele está sem camisa, o que me leva a puxar o cobertor sobre seu corpo por causa do frio.

Estaríamos em uma enorme confusão se fossemos vistos aqui, mesmo não tendo feito nada além de dormirmos juntos. Na minha posição de princesa tenho responsabilidades, não posso me dar ao luxo de errar, tenho que ser cuidadosa. Mas, só o fato dele ser encontrado em meu quarto já seria motivo o suficiente para ir para a prisão ou condenado à morte.

Tem três dias que estamos no Palácio da Névoa na cidade de Misser. Ele recebeu esse nome por está localizado no lugar mais alto de Misser, onde a névoa sempre está baixa independente da estação do ano, além da chuva constante.

Viemos para investigarmos alguns ataques recentes, suponho que sejam apenas algum bando de arruaceiros querendo chamar nossa atenção. No entanto, era uma oportunidade para ficar sozinha com Liam.

Hoje vamos até o Galpão abandonado onde supostamente eles se encontram, tentaremos surpreende-los com à guarda baixa. Apesar do meu treinamento e de ter estado em outras operações antes, sempre fico com um frio na barriga momentos antes de sairmos.

Liam é quem está no comando da missão, ele é três anos mais velho que eu, já completou vinte e um anos no mês passado — eu só tenho dezoito, faço dezenove daqui três meses, será quando irei assumir o trono de Erdenville.

— Ei, já está acordada? — Liam falou ainda sonolento, se revirando na cama para me olhar.

— Já, e você também deveria ter acordado há horas — falei mexendo em seu cabelo.

Ele me puxou para perto, levando a mão ao meu rosto. Liam me encarava com seus olhos castanhos, a barba como sempre estava curta — eu prefiro assim, e ele sabe — por fim me beijou suavemente.

— Você tem que ir — falei interrompendo o momento.

— Só mais cinco minutos — ele sussurrou.

— Nem dois, não quero me atrasar.

Levantei apressada para tomar meu banho, esse seria um daqueles logos dias.

— Não deixe ninguém te ver quando sair — gritei entrando no banheiro.

Os corredores onde fica o quarto que estamos não é patrulhado. Mas todo cuidado sempre é pouco. Esse é um quarto para hóspedes, portanto à decoração é simples.

Não costumamos vir aqui com frequência, Misser não é o tipo de cidade onde as pessoas vem para passear, está sempre fria e úmida por causa da chuva constante. O lugar foi a maior vítima da guerra entre Erdenville e nosso Reino vizinho Arrem.

Embora faça dezoito anos que a guerra acabou, Misser ainda tem uma sombra triste que nos lembra que dois exércitos já guerrearam aqui. No entanto, as aparências enganam, essa cidade é a fonte de toda a nossa riqueza, pois é aqui que estão localizadas as minas de diamantes, o tesouro mais cobiçado de Erdenville, e a razão da guerra com Arrem.

No passado meu bisavô se casou com à irmã do rei de Arrem — um casamento arranjado —, em prova dessa aliança ele cedeu vinte por cento do território de Misser à Arrem, mas, quando meu avô assumiu o trono, ele quis obter essas terras novamente, e acabou começando uma guerra. Quando o rei Fhilips assumiu o reino do pai, tentou fazer um tratado de paz com meu avô que se recusou. Dois anos depois, meu pai subiu ao trono de Erdenville e assinou o tratado de paz com nossos vizinhos, devolvendo a parte do território de Misser para eles.

Eu não concordo com esse acordo, porém, meu pai sempre fala que não podemos desfazer um acordo jamais, e que vinte por cento de terra não é prejuízo. Entretanto, eu não gosto de ver o que pertence à nossa família, o que é nosso legado, sendo de outros.

Em breve a responsabilidade de administrar o maior reino vai está nas minhas mãos, um frio na barriga aparece toda vez que me lembro, mas eu fui criada pra governar, está no meu sangue, é o que sempre quis.

Não pretendo fazer o mesmo que meu avô fez, não vou lutar por algumas minas de diamantes, afinal, temos várias, isso não importa. E apesar do culpado dessa guerra ser meu avô, penso que o rei de Arrem não é nenhum santo, e sabia muito bem o que estava fazendo quando propôs um acordo de paz conosco, alguma vantagem ele previa no futuro. Quem sabe se fazer de amigo e depois dar o golpe final. Aprendi a desconfiar de todos, é uma lição preciosa que Anastasia fez questão de me obrigar a guardar.

Não demoro no banho, quando saio meu uniforme está dependurado no cabide do guarda-roupas onde o deixei, camisa e calça preta, ambas feitas de um material resistente para suportar as batalhas, a camisa de mangas compridas é feita de um pano mais grosso como se fosse um casaco. O uniforme de todos são assim.

O vesti rapidamente, calcei as botas que pegam abaixo do joelho, amarrei o cabelo em um rabo de cavalo, puxei o zíper da camisa. Gosto do uniforme, o acho confortável, só a gola incomoda um pouco, às vezes parecem apertar minha garganta, por isso não a fecho por completa — passo a maioria do meu tempo com ele. Minha mãe não gosta nem um pouco disso, ela sempre me diz que eu devo me vestir como uma princesa e não como uma guerreira, mas eu sempre digo a ela que posso ser as duas.

Meu pai já gosta desse meu gênio forte, ele sempre se orgulha quando falam que me pareço com ele. Ele nunca falou, porém, eu sei que no fundo ele queria um herdeiro e não uma herdeira. Acho que é por isso que ele me moldou a imagem de uma líder, para o fato de eu ser uma princesa, não passar desconfiança quanto à minha capacidade de governar.

Não há muitas rainhas que herdaram o trono, e as que existiram, não tiveram um grande reinado, por isso a responsabilidade pesa tanto sobre mim.

O corredor está vazio, vou em frente e viro à direita, encarando as paredes amarelas do palácio. Apresso os passos, não quero me atrasar, desço as escadas e me dirijo para o lado leste do palácio, é onde fica o arsenal de armas.

Quando chego o resto do nosso grupo já está se armando, com granadas, metralhadoras, facas e todo tipo de arma. Todos se curvam em uma breve reverência quando entro na sala, e logo voltam ao que estavam fazendo.

— Finalmente, né — Liam vem na minha direção. — Pensei que ia ter que te buscar.

Ele já estava armado com uma arma na cintura, e provavelmente outras que não estavam à vista. O uniforme preto fica bem nele, e o ar de soldado lhe cai como uma luva.

— Pronto já estou aqui — sorri.

— E ai o que vai querer hoje? — ele fez uma pausa e balançou a cabeça. — Nem sei porque eu pergunto se já sei a resposta.

A sala de armas é enorme, tem mesas espalhadas com variados tipos de armamentos, além de armários com prateleiras com granadas, facas e outras variedades.

Fui até um dos armários e peguei uma arma, a prendi na perna direita na altura da coxa, apertei o coldre na cintura com algumas munições. Peguei duas facas e as coloquei presas na parte interna das botas.

Liam tem razão, não gosto de carregar armas pesadas, elas me atrasam um pouco. Além do mais, meu treinamento me ajudou a ficar mais ágil, falta de armas não é um problema para mim, consigo matar alguém sem o auxílio delas, não que eu já tenha feito, e nem pretendo. Já fui para vários confrontos, mas nunca matei ninguém — não que eu saiba — sempre evitei atirar para matar, só imobilizar, mas em meio aos confrontos calorosos é difícil saber se não matei alguém, mesmo sem querer.

— Bom, todos já estão prontos — Liam iniciou — vou repassar o plano.

Ficamos em silêncio, enquanto ouvíamos ele com atenção. Liam nasceu para liderar, sua voz sai com convicção e autoridade. Ao contrário de mim, que sempre enfrento certa dificuldade ao falar em público. Minhas aulas de oratória me ajudaram a melhorar minha performance, mesmo assim, ainda fico nervosa na frente de pessoas importantes, só não as deixo perceberem meu desconforto. Meu pai sempre diz que se quero respeito e confiança tenho que demonstrar poder — e eu gosto do poder que já tenho, só não posso deixa-lo subir a cabeça e me cegar.

— A informação que recebemos é que o grupo se encontra em um galpão de um prédio abandonado ao sul da cidade — ele analisava um mapa, provavelmente que ele mesmo desenhou. — Lá eles mantém uma operação de contra bando de armas — ele fez uma pausa e voltou seu olhar para nós. — O plano é simples, vamos nos separar em dois grupos, um irá escalar o prédio do lado sul e surpreende-los, o outro vai esperar o sinal para entrarem se for necessário.

— Qual sinal? — Lucy perguntou.

— Eu irei passar uma mensagem pelo comunicador — ele respondeu.

— E se for uma armadilha? — ela perguntou atenta aos mínimos detalhes como sempre.

— Eles esperam que um intruso entre por uma das portas, não pelo teto, então temos a vantagem — ele sorriu. — Mais alguma dúvida?

— Não.

Lucy e eu temos a mesma idade, entramos na academia no mesmo dia. Seu pai é o chefe da guarda pessoal da família real. Ela, assim como o pai, é muito esperta e inteligente. Embora, mesmo com o uniforme preto da guarda, ela não se pareça com um soldado, o que a deixa com vantagem sobre seus oponentes, que a subestimam. Como sempre seu cabelo ruivo está em uma trança que pende para o lado direito, suas sardas na bochecha estão camufladas com maquiagem, e seu olhos verdes estão cravados em Liam, sentiria ciúmes, se não soubesse que ela apenas está prestando atenção na explicação.

Permaneço ao seu lado enquanto ouvimos as instruções. Ela é mais alta que eu, mas, não me incomodo com a diferença clara de altura.

— Então vamos lá. Por Erdenville — ele gritou.

— Por Erdenville — nossa voz ecoou pela sala.

Somos vinte soldados, sobre o comando do nosso capitão Liam Callow, o mais jovem do reino, com uma patente importante. Todos saem da sala em ordem, para se dirigirem até os carros que nos esperam prontos para saírem, os sigo andando devagar.

— Espera — Liam segura meu braço.

Esperamos até estarmos a sós na sala. Ele me puxou pela cintura me prendendo a ele, um ato que me pega de surpresa. Ele é mais alto que eu, contudo, não noto a diferença quando ele se inclina para me beijar. Levo a mão até sua nunca para retribuir seu toque.

— Cuidado lá — ele permanece com seu rosto colado no meu.

— Eu sempre tenho cuidado.

— Estou falando sério — ele ficou tenso. — Não sei o que faria se algo lhe acontecesse.

— Nada vai me acontecer, já fiz isso um milhão de vezes — ironizo.

— Rachel, por favor... — sua voz sai como uma súplica, e percebo que ele realmente está tenso.

— Tudo bem, vou tomar cuidado — digo lhe dando um beijo. — Agora vamos.

— Obrigado. Te amo — sua voz saiu entrecortada entre um beijo de despedida.

— Eu sei — sorrio me dirigindo até a porta, ele hesitou por alguns segundos, mas logo me seguiu.

Não sou do tipo que diz eu te amo. Acho que nunca pronunciei essas palavras, elas não estavam em meu manual de como ser a rainha perfeita.

Com o tempo aprendi que demonstrações de sentimentos faz com que pareça fraco e indefeso. Esses são os tipos de coisas que te deixam a mercê das cobras que o rodeiam, e no meu caso são muitas.

O amor cega.

Isso não significa que não gosto do Liam. Só não sei se isso que sinto por ele, é o tão falado amor. Só sei que não suportaria perde-lo.

A chuva já parou faz tempo. Percorro o gramado da entrada do palácio, que está completamente molhado pela recente chuva, a névoa como sempre está baixa. O carro nos aguarda além dos portões, os guardas se curvam em uma reverência quando passo por eles.

Restaram algumas poças de água nos cantos da calçada. Entro no primeiro carro e Liam me segue, ele senta-se no banco da frente, e eu sento atrás ao lado de Lucy. Riley liga o carro fazendo o motor roncar, em seguida acelera puxado a fila do comboio em direção a cidade. Dou uma olhada pelo vidro do carro, enquanto deixamos o palácio para trás.

Enquanto descemos a rua, sinto um frio na barriga, embora já tenha feito isso antes, a sensação de medo misturado a ansiedade é sempre a mesma. Às vezes penso ser intocável por causa do meu título, porém eu sei que não sou imortal.

Não tenho com o que me preocupar, qualquer desses soldados dariam a vida por mim, é o trabalho deles — sinto vergonha diante desse pensamento.

O exercito de Erdenville é conhecido como "Exercito Negro" por causa do nosso uniforme e de contarmos com os melhores soldados e armamentos. Nenhum outro reino desafia o nosso, com exceção de Arrem que nos enfrentou antes, e se mostrou bem capaz, nos levando a uma sangrenta guerra por quase duas décadas.

Arrem só quer conquistar nosso território, aquele rei é ardiloso, agora se fingindo de amigo e aliado do nosso reino.

Devo concordar que essa aliança foi boa para nós, ninguém ousa desafiar os dois maiores reinos aliados e se protegendo. Quando for coroada pretendo manter essa aliança, mas nada além disso, não vou fingir ser amiga dele, quero distância de alguém que pode me trair a qualquer momento. Não confiar em ninguém —, lembro-me das lições de Anastasia.

A cidade está quase vazia, é cedo e ainda por cima estava chovendo há alguns minutos atrás. As pessoas que estão nas ruas ou dentro das lojas nos observam enquanto passamos — não gosto disso —, todos agora já sabem que vamos para alguma operação. Basta olhar no comboio de carros pretos blindados com padrão militar carregando o brasão de Erdenville.

Deixamos os carros há uma distância afastada do prédio. Liam lidera a escalada pelo terraço do prédio, Lucy e eu aguardamos com mais oito soldados a uma certa distância do local. Seguro o comunicador a espera de um pedido de reforço.

O prédio tem cinco andares, as paredes da entrada estão quase todas destruídas e as que restam tem o branco da pintura tomado pelo verde lodo do mofo. Não restaram nada dos vidros das janelas. O mato cresce ao redor, às casas próximas já foram demolidas, e o lugar parece um deposito de lixo e acúmulo de entulho — um ótimo lugar para se esconder. Ficamos atrás de uma casa completamente destruída, só uma parede permanece de pé.

Riley está inquieto, andando de um lado para o outro, enquanto passa as mãos pelas pequenas tranças no cabelo. Liam fez questão de coloca-lo no meu grupo para me proteger. Riley tem o triplo do meu tamanho, sua pele é negra, e parece brilhar como âmbar preta sobre os poucos raios tímidos do sol que começam a aparecer entre as nuvens.

O comunicador chia em minha mão.

— Liberado aqui, o lugar está vazio — sua voz saia como um chiado rouco, e quase não a reconheci.

— Como assim? — perguntei

— Não tem ninguém aqui, nos passaram uma informação falsa — Liam pareceu zangado.

— Droga — Lucy resmungou chutando uma pedra. Ela estava ansiosa para um confronto.

O galpão está vazio, só algumas pichações nas paredes mostra que alguém esteve aqui, no entanto, elas não fazem sentido algum, devem ser obra de crianças.

Mesmo com o local vazio mantemos a formação, as armas nas mãos. Subimos por uma escada de madeira destruída por cupins, nos dirigimos por um pequeno corredor com vários cômodos, todos desbotados. Paramos em frente à primeira porta.

— Cuidado, eles podem ter deixado alguma armadilha — Liam nos alertou.

Um dos guardas deu um chute na porta para abri-la, levantando uma névoa de poeira. Entrei depois dele, mas preferia não tê-lo feito, congelei meus passos no mesmo instante, assim como os demais.

Um boneco no meio da sala, ali bem na minha frente, com uma coroa de papel em um tom amarelo, dependurado por uma corda amarrada em seu pescoço. Como se não bastasse ainda deixaram escrito na parede, com uma letra vermelha como se fosse sangue:

MORTE A FUTURA RAINHA

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