5. Capital de Rubi



Os guardas pediram apenas para que me identificasse quando passei pelos portões. Não existia toque de recolher e os portões só se fechavam em casos emergenciais, como Kiram tinha descoberto.

Já devia passar das oito horas quando deixamos os muros do castelo e entramos na capital iluminada. O lugar era lindo, a rua larga de pedra clara que caminhávamos estava muito movimentada, as pessoas, provavelmente depois de terminar os afazeres de suas vocações se divertiam nas portas das casas muito parecidas umas com as outras feitas das mesmas pedras claras de que eram feitas a rua.

O céu acima de nós estava escuro, e a lua tão fina que poderia desaparecer a qualquer momento. Mas as luzes da cidade eram tantas que a falta de iluminação  natural da noite não deixava a cidade escura.

Eu e Kiram seguimos pela rua em silêncio, meus olhos abertos observando cada sorriso das pessoas que conversavam e jogavam estranhos jogos sentadas em cadeiras largas na porta de suas casas. Vez ou outra, abríamos espaço para carruagens que passavam aceleradas em direção a algum lugar. Então era assim a vida das pessoas nos reinos ricos.

A rua larga se abriu ainda mais e virou uma praça, no centro uma fonte enorme feita de metal e pedra, uma estátua prateada de uma mulher vestida em uma armadura completa prendeu minha visão. Me aproximei mais ainda do monumento para que pudesse observar melhor suas características. A mulher era linda, mas suas feições eram ferozes. Quem quer que tenha feito aquela arte, era muito bom no que fazia, sendo capaz de transmitir até mesmo a força do olhar da mulher.

A Grande Rainha Alintanie. Eu li na pequena placa junto aos pés da estátua.

— A primeira rainha do reino de Rubi. — Ouvi Kiram falar atrás de mim. — Líder dos generais que puseram um fim aos dias de terror.

Continuei observando a estátua em sua pose de poder. Modesh tinha me contado sobre a filha dessa Rainha, tão ambiciosa, ignorante e sedenta pelo poder, que tinha transformado o reino próspero que sua mãe havia lhe deixado em um pedaço de terra bagunçado com súditos famintos. Por causa dela o sistema de méritos foi instituído.

— Deve começar a qualquer momento. — Uma jovem vestida em calças largas e um blusão bordado que estava sentada ao lado da fonte falou para a outra ao seu lado.

As roupas aqui eram bem diferentes daquelas que vi no reino de madeira. Eram mais simples e confortáveis, e variavam conforme cada vocação.

Algumas pessoas se movimentaram abrindo caminho para algo que ainda não tinha visto. Me remexi inquieta, quando mais pessoas caminhavam para trás, se apertando perto de onde estávamos.

Foi quando as conversas cessaram de repente, virei a cabeça em direção a Kiram, que tinha um sorriso no rosto, olhando para onde todos olhavam. Eram tantas as pessoas a minha frente que não consegui ver o centro da praça.

Uma única voz, masculina, grave e profunda, começou a cantar uma melodia lenta e suave. Senti minha pele se arrepiar, e algumas pessoas suspirarem extasiadas com a beleza daquela voz, ninguém ousava falar, enquanto ouviam atentas a história que ele contou.


A noite era escura, os homens desesperados,

Aqueles choravam a matança dos amantes,

Nós gritávamos pela esperança dos errantes,

Heróis morriam sem atender aos seus chamados.


Uma pequena pausa fez o silêncio ressoar pela praça, antes que tambores ainda mais graves que as vozes começassem batidas firmes e ritmadas, como se anunciassem a morte, me fazendo prender o fôlego.

Quando a voz voltou, não estava mais desacompanhada, e eu fui obrigada a me mover para conseguir observar um pedaço do enorme coral de pelo menos cem pessoas que harmonizava a segunda parte da música, acompanhados por instrumentos que nunca tinha visto na vida.


Salve-nos, imploramos, salve-nos da desgraça.

Salve-nos, nós chamamos, salve-nos do campeão.

Levantem-se generais, levantem-se em sua glória.

Salve-nos daqueles perdidos na fumaça.


Salve-nos, imploramos, mais uma vez pela vitória,

Levantem-se, lutem pelas suas vidas, na marcha fria até o forte,

Salve-nos, nós gritamos, do terror mais intenso que a morte.


Quando a música acabou, um bolo tinha se formado em minha garganta. Nunca tinha escutado nada além das desafinadas canções cantadas pelos mercenários bêbados, ou trovadores nunca acompanhados por nada além de um tambor e um alaúde.

Alguns segundos se passaram de absoluto silêncio enquanto a potência daquela canção ainda ressoava nos ossos daqueles que tinham o privilégio de a escutar.

Então multidão explodiu em vivas e aplausos. Kiram já tinha se virado para o lado para fazer a um pequeno senhor a pergunta que estava em minha mente.

— De onde vem esses artistas?

— Da academia real de música. — O senhor respondeu e então apontou para maior construção da praça. — Quem cantou foi o próprio diretor, suas apresentações são tão raras quanto sua voz. Podem se considerar sortudos.

Existiam muitas coisas no cinco reinos que eu ainda precisava conhecer.

Quando o senhor voltou seu olhar para mim, minha expressão já tinha voltado ao normal. Ele limpou a garganta, aparentemente incomodado com minha indiferença e se despediu de Kiram com um aceno na cabeça.

Quando a multidão começou a dispersar, a música recomeçou, dessa vez bem mais alegre, fez com que pessoas começassem a dançar. Os artistas que tinham feito parte da primeira apresentação, se distanciavam em direção a academia que o senhor nos tinham mostrado, enquanto mais jovens assumiam seus lugares.

Todos vestidos com o mesmo busão e calças largas que tinha visto na jovem sentada perto da fonte vestir, a diferença era a cor, os que agora tocavam, assim como a jovem estavam vestidos em cores verdes claras, enquanto os músicos que tinham acabado de tocar em vestes azuis. Um homem se destoava por sua roupa roxa escura. Aquele deveria ser o diretor, pensei.

Quando finalmente os perdi de vista, resolvi recomeçar a andar.

— Os artistas são incríveis aqui. — Kiram falou. — Na Madeira, apenas aqueles que tem a sorte de conseguir mecenas conseguem viver bem nessa profissão, não apreciam tanto as artes como aqui.

— Nas terras sem lei artistas são tão raros quanto um dragão de duas cabeças.

Não existem dragões de duas cabeças,  Lorilae.

Não pensei que dragões hibernassem também e aqui está você.

Tola. Um poder tão magnifico quanto o meu precisa de tempo.

Eu sorri. E Kiram levantou uma das sobrancelhas.

— Modesh?

Diga ao humano para não se meter onde não o convidaram. Os curiosos são sempre os primeiros a morrer.

— Ele disse que os curiosos são sempre os primeiros a morrer.

Quase gargalhei quando Kiram arregalou os olhos, e então continuei a andar. Meus pés me levando de barraca em barraca, para conhecer todos os tipos de comida estranha, que não me atrevia a comprar depois do incidente com os rolos de Corvena.

Os mais diversos cheiros faziam meu estômago roncar, e o barulho das conversas e risadas começaram a ficar mais altos, enquanto algumas pessoas ainda rodopiavam ao som das melodias alegres.

Kiram parecia quase tão curioso quanto eu, enquanto passeávamos pela feira que provavelmente ainda demoraria para acabar.

— Eu já vim para Rubi pelo menos três vezes, mas nunca conheci a capital. — Kiram falou, para minha surpresa. — Sempre vim junto com meu pai, em visitas oficiais ao castelo ou a academia de dragões de Rubi, mas ele nunca deixou que saísse para explorar a cidade.

— Mas não era um rastreador? Não teve que viajar por anos procurando um dragão?

— Rastreadores são proibidos de entrar em outros reinos. Minhas viagens se limitaram ao Reino da Madeira, ao da Areia, por causa dos acordos, e as terras sem lei, que eu evitada a todo custo.

— E mesmo assim foi até lá. — Lembrei-me de onde tínhamos nos conhecido, a cela na mansão dos contrabandistas de Aldor.

Kiram riu e balançou a cabeça.

— E pretendo não pisar lá nunca mais.

Franzi os lábios.

— Quer dizer... — Kiram tentou, percebendo o clima estranho que tinha se instalado.

Balancei a cabeça e dei um sorriso amargo. As terras sem lei sem dúvida eram um lugar cruel, com pessoas tão más que não saberiam conviver em um lugar como aquele: com música, moral e risadas. Um lugar onde a violência crua era abominável.

Pessoas tão más que poderiam matar qualquer um ali por um punhado de ouro, que poderiam arrancar o sorriso nos rostos daqueles que dançavam.

Pessoas como o assassino de Racon.

— Acho que devemos voltar. — Sugeri, e o rastreador balançou a cabeça, concordando.

— Amanhã vai ser um dia longo. — Ele completou.



Quando entrei novamente no castelo, pensei que encontraria apenas o silêncio, no dia anterior tinha dormido em uma ala distante, e cedo, depois da longa viagem e batalha na fronteira com o reino da Madeira, mas não foi isso que encontrei. O lado de dentro, refletia a mesma animação do lado de fora. mesa enormes estavam estendidas no grande salão, uma musica suave e alegre era tocada por uma pequena trupe de artistas.

— Perdemos alguma comemoração? — perguntei.

Kiram franziu o cenho, parecendo pensar.

— Que eu me lembre hoje não é dia de nenhuma festividade.

Alguém limpou a garganta atrás de mim, quando me virei Helgan me encarava com olheiras grandes e olhos pequenos. 

— Não uma festividade, mas amanhã, para a maior parte das pessoas é dia de folga. — Ela explicou.

— Maior parte das pessoas? — Perguntei. Aquele era apenas o segundo dia que estava naquele lugar, mas já estava de saco cheio de tantas regras e responsabilidades, seria bom ter um dia para começar a investigar.

— Uma convenção de senhores foi convocada. — Ela anunciou. — Teremos que acordar cedo para nos preparar, além de herdeira, terá que representar a porção das ilhas leste.

Arregalei os olhos.

— Eu?

Helgan não se deu ao trabalho de responder, ou estava cansada demais para isso.

— Basta ficar quieta e cumprimentar quem quer que te aborde e ficará tudo bem. Ninguém espera nada além disso. 

Bufei. Não sabia se ficava agradecida ou ofendida com aquelas palavras.

— Por que convocaram os senhores? — Kiram perguntou.

— Não é óbvio? — A assistente disparou. 

— Se fosse ele não estaria te perguntando. — Foi minha vez de falar, minha voz rápida e cortante como uma lamina. — Seu humor é pior do que uma mula quando está cansada.

Helgan respirou fundo, e então abaixou levemente a cabeça.

— Me desculpe, senhora, estou há alguns dias sem dormir. — Ela deu outro suspiro e coçou os olhos. — É sobre o ataque à vila na fronteira.

Helgan olhou para os dois lados e então se aproximou ainda mas de nós, mantendo a voz baixa:

— O reino do ouro se recusou a reclamar o ataque. Estão dizendo que não foram os responsáveis. A convenção será para decidir se vamos declarar guerra ao Ouro. Dizem que até mesmo o rei da Madeira está hesitante. Ninguém quer acabar como o reino de Estanho.

Assenti, e Helgan bocejou.

— Por que ainda não foi descansar? — Perguntei.

— Estava te esperando. — Ela respondeu. — Ainda preciso te mostrar seus aposentos definitivos.

— Mostre o caminho.

Kiram se despediu com um aceno de cabeça e um sorriso preguiçoso, e eu segui Helgan para fora do salão.

Antes que eu subisse as escadas um jovem que parecia um pouco mais velho que eu, vestido em roupas de seda azuis virou seu olhar para mim. Seu cabelo tão curto que eu podia ver seu couro cabeludo, deixava as linhas de seu rosto ainda mais duras. Ele se levantou ao me ver, mas não fez menção em andar em minha direção. Seu rosto estava contorcido em uma expressão de raiva.

— É Ptamos, Helgan sussurrou, o quinto herdeiro, e sucessor da porção das planícies centrais, a mais importante de Rubi.

Meu olhar foi novamente para ele que estalou o pescoço e apertou o punho da espada que levava em sua cintura.

Meus lábios se curvaram antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, em um sorriso cínico e ao mesmo tempo arrogante.

Ptamos, guardei o nome em minha memória. Se quisesse achar o assassino dos herdeiros, eu deveria começar por ele. Desviei o olhar e continuei andando, deixando que o herdeiro lidasse sua raiva.

Eu teria paciência.


Oi gente, desculpe a demora, ando um pouco desmotivada esses dias.

Mas vamos ao que importa, tem algumas vagas no grupo de whats então se quiserem participar é so avisar que coloco vocês.

Ainda, vou estar na bienal do rio de janeiro! Vamos nos encontrar lá!

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