Seis - Um peso maior que a mim
Não espere por uma crise para descobrir o quê é importante
Platão
Outro soco bem localizado, meu joelho foi parar no chão. Senti os músculos da minha boca gritaram de dor, e me coloquei de pé. Torh veio novamente, me abaixei e subi o gancho levando ele a cambalear para trás, massageando o soco.
Sorri.
Levei uma rasteira e cai de costas no chão. Torh era ágil, não pensou duas vezes antes de pular para cima de mim. Uma infinidade de ematomas, ganhariam novos amigos. Ele bateu uma, bateu duas, bateu três vezes e meu joelho o acertou na cintura. Ouvimos um grito.
Ninguém parou.
Torh me agarrou pelo colarinho do colar que estava em meu pescoço, e deu um soco, dois socos, três socos. Eu mal senti o quarto, já estava anestesiado por todos os golpes anteriores. E então alguém o tirou de cima de mim, e eu fiquei estirado lá.
Pronto para esperar.
Meus olhos estavam inchados demais para que eu pudesse enxergar com precisão qual foi a cabeça que entrou no meu campo de visão. Mas eu reconheceria aquele perfume em qualquer lugar.
— Pelos deuses, Elius. O que você estava pensando? — Alma se abaixou diante de mim. Ela passou a mão pelo meu rosto, mas só senti uma formigação. Seu toque era importante para mim, mas meu estado analgésico não me permitia sentir mais que aquilo.
— Ele disse que precisava estravazar. — Ouvi a voz de Torh, notavelmente alterada e com dificuldade.
— E aí você bateu nele? — Alma e sua preocupação. — Kara irá odiar você.
— Na verdade, eu conheço o filho que tenho, minha jovem. — Tentei sorrir, meu rosto doeu.
Kara se aproximou de mim, e soube disso por causa dos passos que cessaram ao meu redor. O sol estava brilhante no céu, convidando todos para se juntar a sua beleza. Nossa província tinha passado a noite retirando água de dentro de cada caverna, porque o mar chegou mais perto em um dia, do quê em todos os anos. E eu sabia que isso era obra da Princesa, recém chegada. Ela não traria nada de bom.
Eu devia saber.
— Como você está, Torh?
— Bem, senhora Kara.
Isso eu duvido. Meu gancho de direita é ótimo, e ele provavelmente ia sentí-lo com mais força nos próximos dias.
— Me ajude a carregar Elius, por favor?
Quase ri, mas achei sensato não desafiar um soco bem dado que tinha recebido bem na região labial. Então me sentei, ouvindo estalos do meu próprio corpo e reclamando mentalmente. Doía sim. Mas não insuportavelmente, e consegui me por de pé.
E os deixei lá, sem falar uma palavra.
A recuperação exigia um banho bem gelado e uma sessão da melhor curandeira da nossa província. Tirei a roupa e deixei na pedra, mergulhando bem fundo no lago. Meu corpo inteiro reagiu ao ardor gelado da água, batendo contra os ferimentos recém presenteados. Torh batia forte, nada disso me surpreendia.
Ele era o melhor de nós dois quando o quesito era corpo a corpo. Ele tinha bons reflexos quando encarava um inimigo ou amigo no ringue de treinamento. Tínhamos treinado juntos por longos anos, desde que cheguei em EXCLU. Ele foi o primeiro amigo que eu tive, e não me deixou se sentir excluído, apesar da ironia desse sentimento, quando se mora em um lugar excluído pela realeza e os demais habitantes do reino de Wen-mar.
Éramos a escória. E vivíamos melhor que eles, eu podia garantir. Os civis da cidade não tinham esperança. Aqui, enquanto vivemos afastados dos sentimentos de derrota deles, nós esperamos na verdade. E acreditamos que conseguiremos vencer, com ou sem Herdeira.
Quando sai da água, Torh estava lá.
— Olha, cara a sua mãe é assustadora.
Kara tinha mesmo um instinto que assustava as pessoas, quando a deixavam irritada. Apesar de sempre parecer uma pessoa dócil.
— Quebrou alguma coisa? — Ele questionou e me mostrou o punho e os dedos enfaixados.
— Você quebrou a mão?
— Lógico que não, irmão. Quebrei 1 dedo. Alma o concertou com ódio no coração. O punho eu acho que só torci. Vou sobreviver. E você?
— Acho que vou ficar com o rosto inchado por 1 mês.
— Kara vai amar isso. — Ironizou. — Fazia tempo que eu não me divertia tanto.
— Quando foi a última vez que nós lutamos? — Perguntei, mas logo me arrependi.
— Foi quando eu descobri que você estava dormindo com a minha irmã.
— Minha memória é fraca. Deve ter sido a muitos anos.
— Tem dois meses apenas, Elius. — Uma risada escapou de mim, ou algo assim, seguindo de um murmurio de dor. — Seu senso de humor é péssimo.
— E como é que ela está?
— Alma está melhor do que nunca. Desde que meu pai proibiu que ela se aproxime de você, tudo na vida dela tem melhorado.
— Eu não sou homem o suficiente para a filha do líder. — Calcei uma bota, amarrando os cadarços com força. — Esse conselho é uma piada.
— Se eu tivesse que escolher, sabe que você seria a única pessoa que eu deixaria ficar com a minha irmã.
— Só que essa não é uma decisão sua.
— Não mesmo. — Enfiei a faca de volta na bota e me preparei para ir. Torh me olhou sério: — Você não pode carregar o peso da Herdeira sozinho, Elius.
— Eles deram a missão para mim.
— A garota não é a inimiga ainda.
— O oceano veio até nós, Tohr. Ela vai nos matar. Precisamos fazer algo a respeito.
— Temos que confiar no que a profecia sempre disse. A garota vai nos salvar.
— Ou vai nos destruir. Eu a vi, Tohr. Ela é só uma garota. Não pertence ao nosso mundo, apesar de ser daqui. Deram a ela poder demais e a invasão de ontem nos mostra que ela não está pronta para isso.
— Mas ela vai estar. Você disse que ela é instável. Continue observando ela, até achar que é o momento de trazê-la até aqui.
— Foi exatamente o que me pediram para fazer.
— Meu pai pode ser idiota e ultrapassado, mas ele nunca confia nas pessoas erradas. Se ele te deu essa missão, só você a cumprirá.
Foram as duas semanas que mais me deixou agoniado. Não consegui me aproximar do Castelo, mas entrei na cidade, ao redor dele. Os comerciantes eram bons em falar coisas, inclusive as que ninguém perguntava. Descobri em uma noite que Aaliyah já tinha começado a treinar com a garota.
Com foco no controle.
Genial.
Ela precisa aprender a se controlar por bem ou por mal. Qualquer meio termo na direção errada, pode fazer com que ela destrua tudo antes de ter a chance de salvar alguém. No final da minha primeira semana, eu a vi caminhando pela aldeia. Havia um guarda no seu pé, e outros três disfarçados ao redor dela. A garota nem parecia notar os outros, além daquele que ela levava como um chaveiro. E eu não esperava menos de Aaliyah.
A Rainha tinha que manter a Herdeira segura. Ela não queria que nenhum de nós colocássemos o olho nela. E a essa altura, ela já tinha noção que nós estávamos atrás dela também. A Herdeira seria um degradê entre o mal e o bem. A rainha e os excluídos. Talvez não nessa ordem. Mas alguém ia se afundar para o outro ascender. E nós ainda tínhamos esperança, o quê era uma vantagem em cima da sociedade de civis que a Rainha Aaliyah controlava.
Fiquei na minha. Não alarmei, apenas observei a Herdeira caminhar pela cidade, conversar com os comerciantes e ser uma princesa. Falsa elegância, falso sorriso, falsa coragem. Um complô de falsidade. Ela estava apavorada, desfilando naquele vestidinho perfeito que Aaliyah colocou em sua boneca. Eu quis mesmo vomitar em cima dela e arrastar seu corpinho frágil dali.
Mas nada fiz.
Apenas continuei seguindo ela e seus soldadinhos de chumbo. Em um momento ela parou, olhou para trás e olhou para mim. Exatamente para mim. Na minha direção, sem precisar procurar por mim. Eu fiquei lá olhando para ela de volta. Nenhum dos dois tomou uma atitude. Então ela virou para frente e seguiu, sem olhar para trás uma segunda vez.
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