Quatorze - Salve seu povo

Lute todas batalhas que puder vencer, mas jamais lute por lutar.

Cícero Laurindo

Quando Alma deixou a sala, eu fiquei desnorteada. Como alguém pode ser tão fria em relação a vida de outra pessoa, não conseguia entender. Drogo pode ser a resposta para as perguntas que ninguém consegue responder e eu precisava disso.

Precisava disso para me convencer de que eu ultrapassaria esses limites que todos em Wen-mar resolveram traçar para mim.

Venha até Wen-mar.

Salve seu povo.

Se torne a Heroína que seu povo precisa.

Seja a Rainha.

Você é Aeryn, a preciosa.

Eu devia ter confiado em todos os sinais que o Hobbit deixou ao longo de toda a trama. Ser preciosa nem sempre é uma coisa boa. As vezes o tratamento especial que estão lhe dando é só um preparatório para o momento que está por vir. Eu me sentia como um porco que foi criado desde jovem para se tornar o prato principal na mesa farta da ceia de Natal de alguma família medíocre no Alabama.

E isso não era nenhuma vantagem.

Acho que foi esse pensamento que me levou de volta para a quinta série, quando eu tinha 12 anos e não conseguia fazer nada nas aulas de Educação física porque minha cabeça parecia que estava em um microondas prestes a explodir. Me lembro que eu sempre sentava em uma cadeira na quadra e observava.

Observava todos correndo, observava o grupo parado nas bordas da quadra conversando animadamente sobre uma jogada bem feita ou um caso contrário. Eu observava o professor gritando e observava os demais alunos das outras turmas que iam e viam por ali, já que a caminho do banheiro todos tinham que passar ao lado da quadra. Naquela época, eu só observava.

Agora, eu não podia fazer nem isso. Me restava esperar, já que não adiantava fugir. Eu não queria fugir. Meu eu queria lutar por algo. Meu eu queria acreditar em algo. Meu eu queria ser útil. E aparentemente, dar a vida pela sociedade era uma questão de utilidade também.

Um soluço escapou dos meus lábios, respirei para evitar que outros fizessem o mesmo. Tohr estava com os braços ao redor de mim, mas não consegui abraçá-lo, então apenas garanti que meus dedos estivessem firmes em algum lugar. Depois de um tempo notei que eu segurava a camiseta de Tohr como se isso fosse realmente necessário. Chorar não ia salvar minha vida, mas de alguma forma aliviava alguma coisa.

Aliviava a maldita princesa que havia em mim. E me fazia afundar com o maldito destino que traçaram para min. E tudo que há em mim, absolutamente tudo que fizeram por mim, enquanto me colocavam para dormir em uma cama luxuosa e guardavam meu caixão no quarto ao lado. Eu me sentia tão mimada.

Tão longe de casa.

Tão longe de mim.

Essa pessoa não sou eu. E essa vida também não é minha. E esse destino está tão ligado a mim que minhas juntas conseguem fazer faíscas dançarem por dentro de mim.

Outro soluço. Prendi a respiração.

— Eu sinto muito. — Tohr falou, assenti como se isso tivesse se tornado uma resposta de verdade. — Eu sinto muito de verdade, Princesa. Isso não deveria ser assim.

— Você sabia? — Algo me ocorreu. Tohr não respondeu, e eu senti que havia sido uma resposta universal. — Lá na floresta então, você só me ajudou porque sabia quem eu era.

— Não mesmo, Princesa. Eu teria ajudado até mesmo se fosse um soldado da Rainha.

— Acho um pouco mais improvável ainda. Vocês costumam matar os soldados.

Senti tensão, as mãos que estavam acariciando meu cabelo se afastaram. Me vi sendo estúpida ao soltar a camiseta de Tohr. Ele foi para longe. Não tanto, mas o afastamento me fez sentir que uma cratera se abriu entre nós.

— Desculpe. — Me adiantei. — Não foi exatamente isso que eu quis dizer.

— Foi sim. Mas você está certa. É verdade, nós matamos eles. Mas está errada também. Só os matamos se vemos algum perigo. Não somos os vilões, Princesa.

— Acho que acabei de descobrir que não há vilões e heróis aqui, Tohr. Somente pontos de vistas diferentes.

A distância diminuiu dando liberdade para que os dedos dele conseguissem tocar meu rosto, e foi como andar no carrinho de bate bate. Tohr era um muro que erguera-se diante de mim e eu estava batendo com tudo nele agorinha mesmo. Ele deslizou o dedo pelo meu queixo, derrubou as barreiras que havia entre nós naquele momento. De verdade, acho que encontrei aquele abraço necessário.

— E o seu ponto de vista diz exatamente o que?

— Diz que você está bem aqui agora. E diz que eu preciso que você me abrace, Tohr. — Os soluços voltaram. — Preciso que você me abrace.

Mas ele não abraçou. Tohr ficou parado com os dedos fazendo carícias em meu rosto.

— Alma não é sempre tão... bom, sempre tão receptiva assim. — Tohr secou minhas lágrimas e eu não soube como reagir aquilo. Na verdade, alguém podia gritar no meu ouvido nesse exato momento.

Eu não reagiria também.

— Alma vai voltar atrás. — Ele insistiu.

— Eu já voltei. — Minha cabeça girou lentamente na direção da voz dela. Lá estava Alma, de mão dada com Elius, olhando para mim. Intensidade de uma pessoa profunda. — Princesa, eu tenho uma idéia de como podemos fazer isso. Mas eu preciso que entenda que só levarei adiante, se não for colocar todos nós em risco.

Tohr recolheu suas mãos como se estivesse cometendo um crime. Foi assim que uma ferida se abriu, e eu digeri as palavras de Alma de uma só vez. Me levantei da cadeira e garanti que o cobertor continuasse enrolado em mim.

— Acho que a minha vida é a única coisa disposta a ser perdida aqui. — Alma abriu a boca, Elius foi mais rápido.

— Princesa, o que estamos dispostos a fazer vai bem além de nós dois. Estaremos colocando todo o Reino em perigo, por isso é necessário que você saiba disso.

— Sua vida é um preço que estamos dispostos a pagar. — Alma disse, o vacilo em seus lábios foi registrado por mim. — Mas se houver uma chance...

— Há uma chance. — Reforcei.

— Se há uma chance — Alma se corrigiu: — então nós a encontraremos.

Ok, tudo bem. Ok, tudo bem. Ok, tudo bem. Faremos isso. Acho que finalmente consegui respirar e meus pés voltaram a sentir que havia algo abaixo de nós. Por um momento pensei que estava flutuando em medo e nunca mais voltaria. Mas eu estava aqui novamente, e isso realmente fez meu corpo agradecer.

E meu coração aquecer.

— Então vamos fazer isso. — Falei. — Por favor me ajudem com isso.


Tive que me despedir de Tohr algumas horas depois. Alma não pareceu nenhum pouco interessada nos meus agradecimentos e apenas me encheu de informações. Ela disse que eu precisava ficar quieta e continuar agindo exatamente da forma como estava agindo antes.

Qualquer mudança de comportamento podia fazer Aaliyah desconfiar e me trancar em uma jaula no porão do Castelo, e desse jeito seria impossível sair em uma aventura. Uma aventura! Finalmente eu me senti preenchendo de felicidade. Iríamos sair em uma aventura em breve. Muito em breve.

Alma só precisava pesquisar.

Perguntei sobre o Google, mas percebi que foi uma burrice muito grande. Elius disse que eles iam pesquisar de tudo nos livros e que assim que descobrissem uma forma de chegar até Drogo, ou simplesmente até a ilha, nós iríamos juntos atrás das respostas para as perguntas que eu nem sabia como elaborar. Mas que eu sei que farão diferença na minha vida.

Bom, eu que tenho que acreditar saber. Porque se eu não fizer isso, ninguém fará. E cabe a mim ser a pessoa que vai lutar por mim. É como dizem né:

Eu que lute!

— Obrigada, de verdade. — Elius carregava a tocha e seguia na minha frente. — O que estão fazendo por mim é muito importante.

— Ainda não estamos fazendo nada.

Descobri que esse lance de rede de cavernas, era uma coisa muito usada pelas pessoas. Iam de uma ponta a outra e havia uma rede dessas em várias partes do reino. Inclusive, no penhasco. E Elius me levou para lá. Pensei que escalariamos aquilo lá, mas quando dei por mim, nós já estávamos dentro. Surrupiando pelas brechas que haviam sido, obviamente expandidas pelo homem em algum determinado momento.

Utilidade pública.

— Tem certeza que sabe onde está indo? — Perguntei para Elius, quando viramos um corredor. Já havíamos virado uns 12 exatamente iguais.

— Se não soubesse, não estaria aqui. — Grosso por si só. A uma hora atrás não havia tanta ignorância quando apareceu de mãos dadas com a princesinha ruiva.

— Ela é... bonita. — Lembrei de confessar. Elius pariu rápido, o que me fez parar com brutalidade atrás dele.

Ele se virou para mim.

— O quê disse?

— Ela — Ele ergueu a sobrancelha. — Alma. Alma é bonita. Você disse que gostava de Alma. Bom, agora eu entendo o porquê. Aliás, bonita ainda é vago demais para descrevê-la.

Silêncio. Pensei ter dito alguma besteira. Mas então ele relaxou os ombros, o corpo, os lábios e sorriu. Elius sorriu. E foi para mim! Não por mim, mas já é válido.

— Cala a boca. — Ele voltou a andar.

— Serei sua Rainha, então não me mande calar a boca. — Em tom de ordem o segui.

— Pode morrer por isso, então não se gabe tanto.

Viramos 4, 5 ou talvez 6 corredores que pareciam dar no mesmo lugar. Eu já tinha andado por talvez quarenta minutos. Encontrar o penhasco pareceu bem fácil. Mas agora que estávamos voltando, e com certeza por outro caminho, isso parecia realmente cansativo e longo.

Eu queria dormir.

Precisava dormir.

— Chegamos, Princesa. — Tinha uma parede de pedra na nossa frente.

Ok. Não sou nenhuma expert de saídas em cavernas, mas isso parece apenas um muro de pedra. Mas levando meu histórico em conta é melhor calar a boca e observar, exatamente como na Educação física. E foi exatamente o que eu fiz.

Elius esticou a mão e clareou o que eu logo vi ser uma maçaneta. Bom, uma maçaneta velha, suja e bruta, muito bruta. O tempo não fez bem a ela e provavelmente a umidade do mar também não. Reparei que até as partes mais afastadas das cavernas tinham essa umidade. A mão que segurava a lamparina, a colocou em um suporte na parede. Elius encostou os ouvidos na outra parede — Minha provável saída — e escutou. Ele pediu meu silêncio, fez seu próprio e escutou.

Nada.

Absolutamente nada.

Um amontoado de nada.

Então ele girou a maçaneta e empurrou a porta, que logo se abriu e revelou a biblioteca para mim. Foi exatamente neste ponto em que eu havia entrado. Elius me deu passagem e eu passei para dentro, sentindo familiaridade no lugar.

— Está entregue, Princesa. Até mais.

— Espere.  — Ele parou no meio do caminho. — Por favor, eu... eu sei que nada será fácil lá fora para vocês, mas por favor... não desistam. Eu preciso de vocês. E até onde eu sei, eu não tenho realmente ninguém aqui. Não estou pedindo que ocupem uma posição importante na minha vida, mas que me ajudem a salvá-la.

Elius assentiu.

Eu abri um sorriso de agradecimento.

— Também não será fácil aqui. — Ele foi para a porta. — Se cuide. Daqui 5 noites eu estarei do outro lado.

— E eu estarei pronta para qualquer coisa.

— Eu sei que estará. A final, você é a Herdeira. Princesa Aeryn.

Aeryn.

Lembrei de tudo até aqui. E era a primeira vez que Elius usava meu nome. E também não havia escárnio e não havia ignorância, deboche ou qualquer vestígio de insinuação. Era apenas uma confissão.

E eu gostei. Gostei muito.

A porta se fechou e eu fiquei de frente a uma prateleira cheia de livros por um tempo. Depois de não poder mais me aguentar em pé, apenas sai da sala e entrei no meu quarto. Ninguém me viu. Absolutamente ninguém.

Agradeci por isso, e fechei a porta louca para fechar os olhos e descansar. Cai na cama e não me preocupei com nada naquele momento. Fechei os olhos e sonhei com ele.

Sonhei com Drogo, rei dos mares. E ele me agradeceu. E eu não estava sozinha finalmente.

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