Oito - O medo tem seus encantos

No fundo de um buraco ou de um poço, acontece descobrir-se as estrelas.

Aristóteles

Acordei com uma tremenda dor de cabeça. Forcei meus olhos a se abrirem e lentamente comecei a enxergar as coisas, parcialmente já que meus olhos estavam embaçados. Cocei os olhos com muito custo pois meus braços pareciam pesar uma tonelada. O céu ainda estava escuro, mesmo que eu só pudesse ver relances dele, por causa dos galhos e folhas de árvores que estavam esticados nos troncos.

Minha cabeça estava explodindo, como uma panela de pressão prestes a temperar um feijão. Olhei ao redor, e soube que continuava do lado de fora do Castelo. Mas agora eu tinha mais visão, e soube um pouco mais. Eu estava na floresta, em alguma parte dela. Ao meu redor erguera-se um acampamento meia boca, e meu corpo estava em cima de um amontoado de folhas e um cobertor de lan fina.

Eu nunca dormi tão mal em toda a minha vida. Pelo menos, não nessa vida. A fogueira recém acesa me indicava que eu não estava sozinha. E logo ouvi os passos se aproximando, e tentei levantar. Mas não aguentei a dor que atravessou meu tronco, subindo por cada músculo e caí de bunda naquela cama mal feita.

— Se você fizer isso mais uma vez, vai se machucar, princesa. — A voz dele me obrigou a cessar qualquer movimento. Inclusive, o de respirar. Eu corri mentalmente.

E ele logo surgiu na minha frente, com algumas bananas, jambos e tomates pequenos. Meus olhos se encheram de glória. Meu estômago gritou: me alimente. Ele notou, pois logo abriu um sorriso e estendeu o cesto para mim.

Hesitei.

— Você vai morrer de fome se não comer agora, princesa. — Ele disse, deixando a cesta e indo para o outro lado da fogueira.

— Quem é você?

— Seu súdito mais leal, Princesa. — Discasquei uma banana, ele tinha um sorriso bonito, como todo o resto.

Eu já tinha notado que em Wen-mar as pessoas se vestiam como personagens de um filme da realeza antiga. E isso era realmente encantador, quando eu via pelo meu lado fascinado. Mas ele era diferente até na forma de se portar. Esse homem, era como o outro. E eu temi estar ali. Aquele homem alto, quase dois metros de carne, osso e músculos. Ele enfiou um tomate na boca, e não tirou os olhos de mim:

— Meu nome é Tohr. — Falou de boca cheia.

— Como o deus do trovão?

— Há um Deus do trovão no seu mundo?

— Pensei que o Thor fosse universal, assim como os vingadores.

— Quem sãos os vingadores?

São super heróis da Marvel, que destroem e matam para salvar. Achei melhor não dizer isso, pois se não existia nem TV em Wen-mar, quem dirá Marvel. Sinto até um pouco de pena por eles não conseguirem ver a bundinha do Doutor Banner.

— Não são ninguém. — Respondi e discasquei outra banana. Não tinha percebido como sentia essa fome toda, até começar a comer e não parar.

— A Rainha não te alimenta não?

— É claro que alimenta. No castelo, eles me tratam muito bem. Posso perguntar por quê eu ainda estou aqui fora?

— Você não voltou, é por isso.

— Por que você não me levou de volta?

— Eu não te trouxe.

— Sim, mas se é meu súdito podia ter me ajudado.

— Estou ajudando você. Você agonizou de dor, eu improvisei um acampamento e estou cuidando da minha Rainha. Acredite, estou fazendo mais por você do que eu faria por qualquer outra pessoa.

— Bom, eu agradeço, Tohr. Porém, preciso voltar para o castelo. A Rainha vai sentir minha falta.

— É claro que ela vai sentir falta da Herdeira Aeryn, do outro mundo. — Eu me sentia falando com uma criança. Ele sorria, brincava, debochava.

— Você vai me levar de volta ou me manterá presa aqui?

— Você pode ir, se quiser. Mas acredite, aqui fora comigo é mais seguro.

— Eu não acredito nisso e nunca irei. Aaliyah me protege lá dentro.

— Da mesma forma que ela te protegeu ao te jogar de um penhasco.

— Aquilo.... Você viu? Bom, ela estava me ajudando.

— Aquilo não é ajudar, é tentativa de homicídio.

— Aaliyah não faria isso.

— Ela contaria se fosse fazer? Não acredito que os vilões sejam tão bondosos assim.

— Aaliyah não é a vilã aqui. Ela está me ajudando. — O garoto revirou os olhos com um meio sorriso. — Quem é você, de verdade?

— Eu sou Tohr. Já te falei meu nome.

— Por que estava na floresta? — Meu corpo rangeu, quando fiz força para sentar ereta. — A última vez em que estive nessa floresta quase fui assassinada. Tenho motivos para ficar assustada perto de você.

— É, eu fiquei sabendo. Mas você conseguiu, princesa. Sobreviveu.

— Pois é, eu acho que notícias correm rápidas aqui também.

— Eu tenho um amigo que estava por perto quando aconteceu. Aquele soldado teria te matado mesmo né?

Um amigo.

— O seu amigo... Você é amigo daquele assassino?

Tohr fechou a cara de modo que até mesmo abandonou o cacho de bananas no chão. Ele me olhou sem nenhum semblante convidativo.

Quase suei.

— Meu amigo salvou a sua vida. — Duro como uma pedra, ele quase cuspiu em mim.

— Ele tirou uma vida.

— Ele salvou a sua. Agradecer já era o suficiente.

— Não vou agradecer por ele ter matado alguém. Não é assim que funciona. E você... Nossa, você é amigo dele. Você faz essas coisas também?

— Matar? — Ele riu, e negou: — Em Wen-mar quem hesita costuma morrer.

— Você também é um assassino.

— Essa palavra é forte, princesa. Tome cuidado. Então é assim que as coisas são lá no seu mundinho? O julgamento é forte, o conhecimento nem tanto.

— Quem anda com porco farelo come.

— Você estragou o meu momento, princesa. Acho que já está na hora de voltar para o seu castelinho.

Tohr conseguiu levantar e dar um passo. Mas foi apenas isso. Um grito feminino atravessou nossos ouvidos e ambos nos encaramos. Outro grito. Me levantei também, senti um murmurio interno de dor e um estalo em meu coração. O ar antes inotavel começou a fazer diferença, e as rajadas de vento a fluir ao nosso redor. Mais um grito. E mais um.

— Amanda.

— Uh? — Tohr olhou para mim, não compreendendo. Outro grito.

Eu corri.

As árvores estavam no caminho, e eu fui seguindo os berros de medo. Corri, corri, corri e corri. Meus sentidos me mandavam ir mais depressa, e eu sentia o vento agredir meu rosto com rispidez.

Ouvi o barulho de galho seco quebrando na mata, me alarmei e parei. Não a vi. Mas vi os outros. Fiquei em silêncio, Tohr parou na árvore ao lado de mim. Muitos troncos musculosos e fortes, lâminas de todos os tipos eles carregavam nas mãos. Ouvi outro grito. Fui um passo a frente, Tohr balançou a cabeça em negativa.

Não.

Ele sussurrou.

— Meu nome é Amanda, por favor, não me machuquem. Tira ele daqui. Quem são vocês, hein? A Rainha vai matar cada um de vocês. Eu sou Amanda. Não grite comigo.

Outro grito. Maldito.

— Princesa, não... — Tohr me implorou.

— Meu nome é Amanda, estou com medo. Estou longe de casa e estou com medo. Por favor, não.

— Tarde demais, Tohr.

E lá iria eu. Mas também não fui. Dei alguns passos, alguém passou mais rápido por mim. Fiquei parada vendo as costas daquele, que antes eu julguei um assassino, se aproximando daquela roda de homens. Ele se esgueirou entre aqueles corpos brutos e sumiu da minha visão. Tohr me segurou pelos ombros.

— Tempo. — Pediu.

— Talvez não tenhamos.

E voltei a encarar a multidão de corpos. O encapuzado falou alguma coisa, palavras difíceis demais para mim. Uma antiga lingua ou talvez, uma nova. Eu não podia confirmar. Aquelas pessoas se olharam e abriram caminho, e eu finalmente vi Amanda sentada no chão. Ela tinha lágrimas molhando seu rosto inteiro. Assim como eu, também estava de pijama.

E o capuz havia sumido, deixando aquele rosto se mostrar. Amanda abriu a boca ao me ver, e eu não queria sequer chegar perto dela a algumas horas. Mas ela tinha razão. O nome dela é Amanda, ela está longe de casa e com medo. Então me guiei para lá.

E aquele monte de corpos grandes e brutos fizeram reverências para mim enquanto passava. Meu coração estava tão acelerado no peito que eu não soube dizer se ele estava batendo ou espancando. Mas senti alívio ao me ajoelhar do lado de Amanda Ross. E isso era algo que eu jamais acreditaria em outra vida.

  — Você está bem? — Questionei, ela assentiu, me abraçou.

Fiquei congelada lá.

Levantei a cabeça e vi os olhos marrons daquele que antes eu tinha uma pilha de grosseria para despejar. Tohr parou bem ao lado dele.

— Devo perguntar se você sabe como veio parar aqui?

— Aeryn, eu juro que eu dormi. Foi apenas isso. Quando acordei, estava aqui. E eles também. — Ela apontou para os homens que estavam de joelhos. — Eles não falam a nossa língua.

— A linguagem nórdica ainda é usada em algumas tribos do Sul. — Tohr explicou: —  Esses homens são guerreiros e estão apenas de passagem. Você assustou eles, Amanda.

— Quem é ele? — Amanda apontou para Tohr, depois olhou para o outro rapaz: — E ele? Aeryn, quem são essas pessoas?

— Eu não faço idéia. — Pela primeira vez eu suspirei aliviada porque me senti protegida. — Mas sei que eles vão ajudar, Amanda. Estamos seguras.

— Eu quero voltar para o castelo, Aeryn. Esse lugar me deixa com muito calor. — O vento já tinha cessado. Eu estava calma.

— Vai ficar tudo bem, Amanda. — Falei mesmo sem ter certeza do que eu dizia. — Levará a gente de volta para o Castelo?

— Ainda não. — Disse o homem, que eu me segurei para não perguntar o nome.

— Não podemos leva-la à aldeia. — Tohr foi a frente dizendo.

— Devemos levar. Kara está pronta para vê-la.

— Quem é Kara? — Questionei.

— Alguém que você em breve vai conhecer. — O capuz respondeu. — Levantem. Vocês precisam estar lá antes do sol.

Levantei rápido, não devia. Pisei bem mal e meu corpo pesou o suficiente para minhas pernas não aguentarem. Uma pedra, um galho, não sei. Meu tornozelo chorou lágrimas de sangue, quando cai sentada sobre ele.

— Você gosta mesmo de cair, não é? — Tohr se abaixou e me ajudou a firmar de pé novamente.

— Acho que eu só gosto de cair quando você está por perto. — Passei o braço por cima de seu ombro. Tohr segurou na minha cintura, o homem de capuz revirou os olhos.

Ninguém mais contestou a idéia de irmos juntos até Kara. Tohr, que observando agora se parecia com um daqueles guerreiros vikings, me ajudou a andar amparada por seus ombros, enquanto Amanda vinha logo atrás abraçando seu próprio corpo. E o homem com seu capuz de volta no rosto ia a nossa frente.

Andamos em silêncio por alguns minutos muito, muito longos. Eu já estava cansada e podia observar vestígios do que em breve seria o sol nascendo no horizonte, enquanto o mormaço nos arrepiava pelo frio. Por estar cansada quase não reparei quando a paisagem mudou da floresta repleta de árvores e caminhos, dando lugar a uma vila repleta de cabanas feitas de madeira. As pessoas que por ali andavam, pararam e ficaram olhando enquanto passávamos. Amanda estava encolhida ao meu lado, e o resto do pessoal não parecia nenhum pouco convidativo para conosco.

Paramos de frente a maior tenda do lugar, o desconhecido olhou para mim e fez um sinal para Tohr, que logo depois tirou meu braço de seu ombro, fez sinal para que Amanda me ajudasse e entrou na tenda nos deixando ali paradas.

— Você acha mesmo que as coisas ficarão bem? — Encarei Amanda.

— Aaliyah nos encontrará caso tenhamos algum problema. Não se preocupe.

— Não estou preocupada, só quero voltar pra casa bem. Eu nem sei onde estou.

— Você está em Wen-mar, minha cara. — Uma mulher surgiu diante de nós com um sorriso no rosto, que logo se tornou uma cara de surpresa. — Aeryn... Como vai, alteza?

— Você deve ser Kara.

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