Capítulo I

• capítulo 1•

CRIANÇA ABANDONADA
CAROLINA DO NORTE, NANCEDALE

• a e r y n l i p p e r •

Em todo momento complicado alguém vem com uma frase de efeito ou uma história de superação. Nos pedem para ser forte. Para segurar a barra. Querem que tenhamos a força que nunca encontraram em si mesmos para poder dizer em algum momento que "estiveram ao seu lado".

Seres humanos são tão previsíveis que em algum momento vamos parar de perguntar as coisas e começar a tentar adivinhar o que acontece na vida das outras pessoas. Bom, melhor dizendo: no século 21 é exatamente o que fazemos.

Sabemos tudo sobre os outros.

Nada sobre nós mesmos.

E de repente, o destino bate a porta e cobra mais do quê poderíamos pagar. E ele vem sem previsão de partida.

E atropela sem dó.

Sentada na janela eu observava o tempo virando lá fora. Sentindo como se as nuvens cinzas fizessem jus ao meu coração quebrado. Longe disso. De alguma maneira estranha, sempre me igualei ao clima lá fora. Azulado quando estou contente, nublado quando estou prestes a morrer de tristeza.

E doesse o quanto doía, a segunda parte era frequente. Estar em um lugar onde a maioria das pessoas a fazem se sentir estranhas e deslocadas é esmagador. Todos os dias sinto um frio na barriga ao sair da cama. Mesmo assim, me obrigo.

Levante, Aeryn.
Respire, Aeryn.
Sobreviva, Aeryn.

Todos os dias. Um atrás do outro e o mesmo mantra de sobrevivência e angústia. Me pergunto quando no mundo isso ia passar. Essa sensação de embriaguez constante, como se não importasse o que eu fosse capaz de fazer, não me encaixaria nunca. Doía. Doía sempre. Mas cá estava eu, com 18 anos desde a meia noite do dia anterior, e viva como prometeu o manual.

A rotina do Mundo Feliz me obrigava a questionar: - Onde estava Madre Stela? Uma das irmãs que me criou. Provavelmente, a única que não desistiu de estar ao lado do meu gênio ruim desde que cheguei aqui.

Um bebê, como a maioria.

Nesse mesmo dia a 18 anos, a Carolina do Norte viu a maior tempestade já prevista na história da América do Norte. Ninguém a viu chegando. Nem mesmo os cientistas do centro de Climatologia. Os jornais noticiaram por meses, ninguém soube dizer o que causou aquela mudança tão repentina, que trouxe a chuva tão enraivada e o balançar dos mares. Os mais crentes de um Deus acreditavam que era obra de seu soberano criador. Mas não importava o motivo, no final, ninguém conseguiu descobrir nada. A tempestade Cinzenta veio e foi da mesma forma: um mistério para todos.

- Não devia ficar aqui sozinha por muito tempo, Aeryn.

Nem precisei tirar o olhar da janela, para saber a quem pertencia aquela voz: Madre Stela. Ela era uma mulher que trabalhava nesse lar adotivo a mais de trinta anos. Os cabelos brancos dela estavam sempre soltos e caindo sobre os ombros, ela tinha os olhos cor de mel. Era uma completa mãe para muitas crianças aqui. Os outros funcionários a respeitavam e eu devia minha criação a ela.

- Esse é o único lugar onde eu posso estar. - Tentei sorrir e alguns meninos passaram na rua, correndo uns dos outros.

A verdade é que a cada ano que se passa, meu coração se corrói mais um pouco. E agora que eu finalmente tenho 18 anos, sei claramente que serei convidada a me retirar. E eu não tenho para onde ir.

Esse lugar está me matando, mas sair dele pode causar minha morte.

- Você não tem que se preocupar com sua retirada agora, minha filha.

- Será que não preciso mesmo?

Madre tinha um dom de abordar momentos como esse e arrancar inquietações como essa. Eu sempre dizia tudo a ela. E quando eu não dizia, ela sempre descobria. Madre Stela tocou no meu ombro e me virou para ela. Foi nesse momento que bati os olhos por cima dos ombros dela, e vi Amanda Ross nos olhando, parada na porta.

Como sempre, a presença daquela garota me agonizava de dor internamente. Nada que eu fazia era bom o suficiente quando Amanda estava por perto. Ela era um garota perfeita, só não tanto aos meus olhos.

O inferno da minha vida pode ter começado no dia daquela tempestade. Mas foi quando Amanda chegou que ele começou a se revelar. Tudo que está a seu alcance para me deixar por baixo, ela usa a seu favor. Eu posso ser Aeryn, a que sobrevive.

Mas para Amanda isso nunca importou.

- Quero que saiba que estou fazendo tudo que estiver ao meu alcance para não deixar que saia daqui. - Madre me abraçou, minha boca secou e eu vi o sorriso escarnecedor que Amanda me lançou, antes de sair e sumir da minha visão. - Eu vou cuidar de você.

- A Madame já faz isso por 18 anos. E eu sou grata o suficiente para não querer prejudicar você. Eu fiz 18 e vou ser mandada embora. Outra criança vai ficar no meu lugar e essa é a única certeza que nós temos.

- Não vou deixar, Aeryn.

Você não tem escolha.

Mas não disse isso. Apenas Assenti e me permitir ser abraçada. Gosto de ter Stela por perto, ela alegra o meu coração. Floresceu a minha coragem. Quero estar bem pelo bem dela. Não há o que mais desejar. Se cheguei até aqui, não vou desistir por menos que minha destruição total.

- Obrigado, Madame Stela.

- Quero que seja feliz, Aeryn. - Não era como se eu já não fosse. - Eu te amo.

- Eu também te amo, Madre Stela.

E realmente amava. Eu poderia ser qualquer coisa, mas sou uma pessoa que não deseja o mal por mais que lhe entreguem isso. Não importa o que eu ganhe, só vou dar o que eu tenho em mim. E devo isso a essa pessoa que me ensinou a ser eu.

- Isso é bom. - Ela falou de repente.

Virei pra encara-la e num gesto, apontou para além da janela. O Sol se abria lá fora, ele corria entre as nuvens num pedido silencioso de ser visto. O tempo estava mudando novamente.

- Seu humor melhorou. - É, eu não podia discordar. - Vamos descer.

Eu podia não ser a mais popular entre as meninas que dividiam o lar comigo, mas se tinha aniversário, tinha bolo. E todo mundo gosta de bolo. Então cantamos parabéns. Fizemos uma roda, cada uma das meninas, incluindo as Madres, me desejaram boas coisas para o próximo aniversário. E sem ter escolha alguma, Amanda estava lá.

E eu contei os segundos para chegar sua vez de falar. Amanda não tinha nada de bom para falar sobre mim, exatamente como eu não tinha para dizer a ela. Mesmo assim, ela estava lá.

Todos estavam.

- Fazer aniversário nunca é fácil quando a gente está em um lar adotivo. A gente fica pensando o porquê de estarmos aqui. Se dói tanto em cada um, quanto dói em nós mesmos. Eu vejo todos os dias você vagando por aí, Aeryn, e eu torço bastante para que você vá embora. - O silêncio foi geral. Até Amanda sorrir. - Quero que seja adotada e ganhe um família que te ame.

Não queria não. Depois de mim, Amanda era a garota mais velha no lar. Ela tem 17 anos anos e ninguém sabe ao certo o que aconteceu com sua família, apenas que morreram em um acidente. Ela foi entregue a casa em seu aniversário de 2 anos, e hoje vive aqui. E ela deve ser uma das únicas pessoas que não passa um dia sem dizer o quanto deseja uma família. Todos desejamos, embora eu já tenha desistido de pedir isso em minhas orações. Mas Amanda e só Amanda não passa um dia sem dizer isso.

- Obrigada, Amanda.

O que aconteceu depois não foi nenhuma novidade. Todos pareciam dispostos a comemorar o aniversário daquela menina que ninguém fala durante o ano inteiro, enquanto eu mesma só queria fugir pra algum lugar sozinha. E foi o que eu fiz. Na primeira oportunidade, corri para cozinha e sai escondida pela entrada de trás.

O jardim do lar era grande, com a grama rasa e muito macia. As flores brotavam de todos os lados, e bem no centro tinha ali uma Cerejeira. Na Primavera exalava calmaria com Sakuras por toda a parte, no inverno era fria como a escuridão. Eu gostava daqui por ser silencioso. As crianças menores não podiam brincar muito por aqui e as maiores escolhiam não brincar. Não havia luz nessa parte do quintal, ou seja, era assustador a noite.

- Como vai, Aeryn?

Olhei para um lado ao ouvir meu nome ser chamado, e uma mulher sorriu para mim de forma tão aconchegante. Seu olhar era claro como o de uma flor, seu vestido se arrastava na relva, o rosto emoldurado, a forma como suas mãos estavam abraçadas uma a outra. Tão linda quanto uma princesa de contos de fadas.

- Oi... - Tentei sorrir imaginando que sonho louco estava tendo agora.

- Você não se lembra de mim. Sou Aaliyah, Rainha de Wen-mar.

Ela é Rainha. Claro que ela é a rainha. O que será que tinha naquele bolo? Posso jurar que não tenho alergias. Não estou louca.

- Você não está louca, Aeryn.

- Quem é você? Quer dizer, além de Rainha desse Reino ai. E como eu poderia me lembrar de você?

- Eu salvei a sua vida, Princesa.

- Isso é algum presente de aniversário? Madre Stela? Você já pode aparecer. - Olhei em volta esperando que alguém fosse surgir e rir de mim.

- Deixe-me explicar o porquê de eu estar aqui, Princesa. - Voltei a olha-la. - Você atingiu sua idade promíscua e já poderá asumir seu lugar por direito. O Reino de Wen-mar será seu, se assim desejar.

- O Reino de... perdão. Pode repetir?

- Não precisa acreditar em mim, Princesa. Acredite no que seus olhos podem mostrar.

Uma luz brilhou diante de mim, fechei os olhos para que minha visão não doessem. Escutei o barulho da chuva caindo, como numa tempestade, porém as gotas d'água não me atingiram. Nenhuma sequer.

- Abra os olhos, Princesa. - Pediu a mulher.

O que estou fazendo? Me perguntava, conforme abria os olhos e via a chuva cair bem a minha frente. Levei as mãos a boca surpresa. Havia uma porta de luz que brilhava tão forte quando o sol, mas meu olhos não reclamaram em nenhum momento. Através da porta podia-se ver a chuva. Ela caia em litros, como a tempestade que jurei ter ouvido a poucos.

- Isso é...

- Maravilhoso?

- Possível? - Encarei aquela mulher, Aaliyah. Seu sorriso ainda transmitia certa ternura, era como a Primavera. - Que lugar é esse?

- Seu Reino, Pincesa. Wen-mar.

- Meu... meu Reino? - Perguntei ainda descrente, e ela assentiu. - Por que está chovendo? Tudo parece tão... morto.

- Tudo ainda não, mas em breve estará. Por isso precisamos de você. Wen-mar precisa da sua ajuda.

- De mim?

- Venha comigo, Princesa?

O que eu poderia dizer? Mal estava acreditando. Um portal de luz se abriu bem a minha frente. Senti meus pés se moverem em direção aquela luz, e quando dei por mim, me afogava em uma maldita escuridão.

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