O velório

Diana

A cerimônia com o caixão fechado foi triste, o céu estava nublado. O mausoléu da família era uma edificação sólida e suntuosa, situado num local bonito, e recuado da propriedade, à esquerda da sede; mas apesar da beleza dos jardins ao redor e do cuidado com que era mantido, o mausoléu por si só tinha um ar sombrio. Durante a cerimônia em que o pastor encomendou a alma do falecido, senti uma tensão súbita em Seb. Ele ergueu a cabeça, discretamente farejou o ar e seus olhos vasculharam a paisagem, enquanto seus lábios se cumprimiam. Ele não quis falar sobre sua mudança de humor, no caminho de volta à mansão. Decidi não forçar.

Estava escondendo bem a sua dor.

Uma hora depois, estávamos distribuídos pela sala de estar e de jantar, além do vestíbulo e da varanda. Eu não conhecia aquelas pessoas. Elas socializavam umas com as outras, e eu me senti um pouco excluída. Circulei por entre elas, que me olhavam com assombro e logo me ignoravam. Seb surgiu ao meu lado. Eu me senti aliviada com sua aproximação. Wayo e Sony Wayo também se juntaram a nós e logo tínhamos nosso próprio grupo de conversa.

Sebastian escolheu aquele momento para revelar o que aconteceu com Diego, na Inglaterra.

Wayo não demonstrou surpresa ou pesar. O que me deixou perplexa.

-Aquele espanhol sempre foi impulsivo. - disse ele, sem o menor remorso. - Era de se esperar que acabasse assim. Mas teve uma vida plena.

-Bom, eu só lamento não poder prestar meus respeitos - disse Seb, contrito. Sua mão tocou a minha, os dedos entrelaçando-se aos meus. Ele parecia sentir o quanto eu ainda estava abalada com tudo aquilo. Especialmente, com as reações das pessoas quanto a minha presença.

Wayo não perdia um detalhe de nossos movimentos. Algo comum a ele, a AJ, Diego e todos aqueles homens idosos com seus olhares prateados tão belos quanto incomuns.

- Eu também - comentei, deparando-me com o olhar sagaz de Wayo sobre mim.

-Nós não encaramos a morte da mesma maneira que vocês - disse ele, com tranquilidade, deixando-me mais desconsertada do que já me sentia.

Stella e Ruth nos encaravam de vez em quando, à distância, mas não se aproximaram. Ruth circulava por entre as pessoas, como boa anfitriã que era. Stella estava mergulhada numa conversa animada com um grupo de jovens. Todos tinham pratos de comida na mão. Eu podia sentir, pelo aroma, que a comida devia estar divina, porém, não sentia vontade de comer nada.

Eu queria saber quem eram aquelas garotas animadas com as quais Stella conversava.

-São as alunas da escola de adestradoras - comentou Wayo, num tom gentil. - Na verdade, você deveria estar conversando com elas. Afinal, é uma adestradora poderosa, com o raro dom que foi de sua tataraavó. Elas teriam muito que aprender com você.

-Acho que é o contrário - disse eu, sem graça. - Não entendo nada de adestração. Nunca sequer montei um cavalo.

-Heresia - disse Seb, inclinando-se para falar ao meu ouvido. - Temos que remediar essa situação o quanto antes.

Mudando de assunto abruptamente, ele perguntou: - Quer que pegue alguma coisa para você?

Eu gostava da forma como ele era sempre atencioso comigo, sempre atento aos detalhes. Fiz que não com a cabeça.

Ele acariciou as minhas costas de leve, e disse: - Com licença, já volto.

Ele se dirigiu ao escritório. Devo reconhecer, Seb estava muito bonito no terno sóbrio que vestiu para a ocasião.

Enquanto Seb se isolava no escritório, eu me juntei aos demais. Observei Ruth a distância... Ela parecia resignada e até tranquila.

De repente, como que atraída pelo meu olhar, ela se aproximou da gente.

-Olá, como estão? - perguntou, cumprimentando Wayo e Sony, que parecia bem desconfortável em seu terno. O rapaz puxou a gola e a gravata. No entanto, o olhar de Wayo fez com que ele parasse e mantivesse o traje na posição correta.

-Já custou para conseguir fazer o laço, não estrague agora - ele resmungou.

-Sim, senhor! - disse Sony, revirando os olhos para mim, quando Wayo não estava olhando.

Eu ainda não conseguia acreditar que Wayo fosse tão... idoso. Ele parecia bem, considerando sua idade... real. Eu me sentia esquisita em conviver com criaturas que achei existirem apenas no mundo da imaginação.

Os olhos dele voaram para mim.

-Sou um velho lobo, Diana - disse ele, lendo os meus pensamentos. - Os lobos demoram para envelhecer.

-Nossa, mas o senhor teve o privilégio de acompanhar as mudanças sociais e tecnológicas de dois séculos - desabafei. - Isso é... Isso é incrível!

Ele piscou um olho para mim, com charme. Wayo colocava Denzel Washington e Morgan Freeman no chinelo.

- Acredite quando digo que o mundo não mudou tanto assim... - ele comentou, num tom entre brincalhão e sério. - As coisas ainda são feitas da mesma maneira de quando eu caçava com minha tribo, na Zululand, ou andava a cavalo por essas vastas planícies, ensinando aos Texas rangers como os guerreiros zulus rastreiam fugitivos da justiça.

Ruth riu do seu comentário. Lançou-nos um olhar abrangente e se despediu. Eu percebi o esforço e o desconforto que ela sentia ao olhar para mim. O cuidado em não me encarar diretamente. Ela foi para o terraço, fechando as portas de correr atrás de si.

Eu esperei um tempo e a segui, decidida a colocar aquela situação em pratos limpos. Já havia anoitecido e o ar fresco convidava a contemplar os últimos vestígios de luz no horizonte cor de rosa. Não estávamos sozinhas, mas os pequenos grupos que desfrutavam da paisagem da fazenda estavam espalhados pelo terraço enorme. Não nos escutariam nem que quisessem (a menos que fossem lobos). Eu estremeci, diante da perspectiva.

Ruth enrijeceu à minha aproximação. Ela não se moveu, quando me apoiei no patamar da amurada, ao seu lado.

-Sei o que está pensando - disse ela, sem se virar. - Eu devo estar parecendo rude...

-Não, imagina. Eu entendo o que você sente quando olha para mim... Eu só... - não soube como concluir.

-Desculpe, mas você me lembra tudo contra o que lutei a vida toda. Maria Júlia foi o verdadeiro amor de AJ. E fingir que eu aceitava isso, consumiu muito das minhas energias. No entanto, eu aceitei. Porque ele precisava de mim. Eu só nunca imaginei que com este corpo humano e frágil, viriam sensações tão difíceis de controlar. - Ela fez uma pausa, apoiando-se na amurada para contemplar a linda Lua cheia que brilhava no céu. Ruth sorriu, antes de prosseguir: - Ele apareceu para mim na forma de lobo, ferido pelas correntes que o prenderam numa caverna em YggDrasil. Não ficou preso por muito tempo, não mais do que alguns dias... Mas no tempo de Midgard, foram décadas. Ele quase perdeu a razão. Não sabia mais como se destranformar. Eu precisei adestrá-lo.

Ela me encarou, com um olhar cúmplice.

-Você também é uma adestradora? - eu a encarei, surpresa.

-Não, sou mais que isso... Sou uma vanir. Domino vários estágios evolutivos da magia.

-Mas...

-AJ escapou da prisão dos aesires. E passou a vida toda tentando provar que os crimes creditados aos fenris foram armações. Ele não conseguiu eliminar o lobo omega. Houve um episódio épico, em que os dois se enfrentaram... Mas o ômega escapou com a intervenção dos magos aesires. Eu ajudei AJ a se reintegrar ao tempo de Midgard. E vim para cá com ele. Nós nos casamos. - ela girou o anel de casamento e o tirou do dedo, deixando apenas outro anel, onde havia uma letra "v" reluzindo sob a luz artificial que vinha do interior da mansão. - Para nós, vanires, símbolos e matéria não tem a mesma importância que para os humanos. São apenas um meio, não um fim. A carne não é o mais importante. Vanires são feitos de luz.

-Para eu assumir esta forma - ela apontou para o próprio corpo. - Demandou uma fórmula mágica muito forte. Eu me desgastei e adensei para que pudesse caber neste corpo e viver entre vocês pelo tempo necessário de cumprir minha missão. Agora, meu papel acabou.

-Quer dizer que o casamento de vocês foi... uma fachada?

-Talvez tenha sido um arranjo inicial, mas - o olhar dela foi sonhador, quando contemplou as árvores escuras mais além da propriedade. - Seria impossível que eu não me sentisse abalada pelos sentimentos humanos, já que me vesti de um corpo humano. Eu o amei, durante o tempo que me foi concedido na Terra. Ao seu próprio modo, ele me amou também. Mas não o amor que sentiu por Maria Júlia.

Ela fez uma pausa, como se as ponderações que dividia comigo não fossem de todo fáceis de reconhecer. Ela estava sofrendo, eu podia ver.

-Devo retornar para os meus - ela sorriu, de maneira triste. Foi uma grande concessão de minha casta permitir que eu testemunhasse os próximos eventos. Seus tios, aqueles que a criaram, também foram vanires incumbidos de retirá-las de vista dos inimigos dos fenris. Foi um pedido de sua... tia avó, Mary-Louise. Quando soube que os aesires estavam atrás de você.

Fiquei sem palavras.

-Sei que é demais para você - disse ela, balançando a cabeça. - Muita coisa para absorver. Mas precisa assimilar, entende? E rápido, porque muitas coisas ainda estão por vir.

Ainda tinha mais?

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