Perseguindo lendas
Diana Clemente Sinclair
Divisão A dos Texas Rangers,
Houston, Texas, US, dias atuais
-Atchimmmm!
Levei a mão ao nariz, tentando evitar o espirro; senti os meus olhos lacrimejarem. Caramba, isso é que dá ficar nesse porão cheio de arquivos empoeirados...!
Já prevendo esse tipo de coisa, eu trouxe uma porção de lenços. Estavam no bolso direito da minha saia. Sempre fui sensível à poeira, mofo e todos os tipos de partículas voadoras... Minha asma poderia se manifestar a qualquer instante, já que a renite estava a todo vapor. Tateei o volume do outro bolso, onde guardei a bombinha, por precaução.
Sentindo o nariz pinicar, tamanha a vontade de espirrar outra vez, eu assoei no lenço antes que a "melecarata" começasse a transbordar. Eca! Odeio isso!
A renite era tipo... A banda que faz o show de abertura para a minha asma - a verdadeira diva dos palcos. Esta sim, quando começava a atacar, não tinha pra ninguém. Não parava até apresentar todo o seu repertório: chiado, falta de ar, tosse de cachorro louco, irritação na garganta, dor no peito, infecção respiratória, respiração ofegante, entre outros sintomas. Quando a renite me atacava, significava que a asma não estava muito longe de fazer sua entrada triunfal.
Mas que droga! Eu tinha que sair daquele lugar, imediatamente.
De repente, o anjinho começou a discutir com o diabinho, cada qual empoleirado em um dos meus ombros. "Mas, você está tão perto! Não pode desistir agora!" "Reconheça, garota! Você está tão perto quanto sempre esteve... Ou seja, um passo para frente e dois para trás!"
Creeeekkkkkk..... Puft!
Sério?
Ok, ok, ok...
Senão bastasse o ambiente insalubre, a luz da lâmpada sobre a minha cabeça comecou a tremelicar; e apagou em seguida com um singelo estalido. Ainda bem que eu também me preveni para isso. Trouxe a minha lanterna.
Sabe, quando eu tinha seis anos, recebi o melhor ensinamento que poderia ter para a vida toda. Minha professora do primário disse: "Diana, uma garota prevenida vale por duas". Desde então, eu sempre procuro ter o plano A, B, C e até D. Para literalmente tudo, se é que me entende.
Eu estava falando de pequenas e grandes coisas. Desde listas de supermercado, de faxina da casa, de contas, de trabalhos de pesquisa, e no amor... Sim, eu tinha uma lista de qualidades que um homem deveria preencher para despertar o meu interesse. Uma lista de dez itens. Até agora, o máximo que preencheram foram três itens.
Bem, esta última área da minha vida andava tão devagar que fico me perguntando se eu não andava prevenida demais!
E este era o lado negativo de tanta prevenção e de tantas listas. Se por um lado, eu não corria riscos, por outro, quando as coisas fugiam ao controle (e não se iluda, as coisas não são permanentemente controláveis), então, eu surtava!!!
Pois é...
Com um suspiro, guardei o lenço no bolso dianteiro da saia jeans e reposicionei a lanterna entre as mãos - agora escorregadias, por causa das luvas.
Cá estava eu, em Houston, no Arquivo Morto da Empresa "A" dos Texas Rangers - a sede principal. E ainda tinha mais quatro escritórios para visitar (e revistar): a divisão "B", de Garland; "C", de Lubbock; "D", de Weslaco; e "E", de El Paso. Ou seja, eu iria bancar a Erin Brockovic percorrendo toda a região e mais além, nos postos dos Rangers ao longo do grande estado do Texas.
Eu era texana de nascimento, mas nunca tive a chance de conhecer o lugar onde nasci. Pelo menos, não até agora.
Eu vivia em Nova Iorque desde que me entendo por gente. Assimilei os costumes e o ritmo de vida do Leste. São completamente diferentes do Oeste, do Sudoeste, ou do Sul. Cada região da América tinha características bem distintas. Mas era mais fácil alguém do Sudoeste se entender com alguém do norte, do que do Leste.
Senti isso na pele, quando me mudei para Williamson há dois meses; e ainda precisava me adaptar a essas características, que me faziam sentir uma forasteira.
Foi tudo tão rápido! Eu estava vivendo a minha vida em Nova Iorque e de repente, estava me mudando para o Texas.
Não tive tempo de processar tudo o que aconteceu. O destino as vezes dá cada reviravolta que deixa a gente fe queixo caído!
Foi algo muito doido e abrupto. Quando me dei conta, lá estava eu, a caminho do Texas para cuidar de uma tia avó que eu nem sabia que existia.
Mary-Louise era a minha única parenta viva e precisava urgentemente de alguém, pois estava bastante idosa. Aquilo foi um choque, isto é, descobrir uma parente biológica viva.
Um bom motivo para ir até lá, mas não só. Por um lado, pensei que fosse a chance de encontrar alguém que pudesse me dar respostas sobre meus pais verdadeiros. Por outro lado, depois que perdi o emprego em Nova Iorque, não havia nada que me prendesse no Leste.
Além do mais eu tinha fascinação pelos temas do "Velho Oeste". Eu ansiava em conhecer a terra dos bravos. E saber que entre estes, encontravam-se meus pais, avôs e intrépidos bisavôs - os pioneiros do Texas selvagem; uma das principais razões pelas quais, agora, eu estava "escavando" aquele porão. Para finalmente encontrar toda a minha árvore genealógica...
Conhecer Mary-Louise foi... Estranho. Ela não pareceu surpresa em me conhecer, mas também não pareceu nada contente. Com o tempo, ela se tornou menos... arredia. Mesmo assim, ela relutava em falar comigo sobre a nossa família. Eu a levei para sua casa decrépita e comecei a por ordem naquele lugar.
As pistas sobre a família começaram a aparecer quando estava faxinando o sótão. Encontrei algumas fotos interessantes de nossos ancestrais pioneiros, de meus bisavôs, avôs (descobri que uma ancestral foi uma grande médica, num tempo em que os homens dominavam a profissão), e acho que encontrei fotos que poderiam ser dos meus pais biológicos. Eu era muito pequena quando morreram, mas seus rostos pareciam vagamente familiares, mesmo com as lembranças nebulosas da infância.
Mary-Louise não colaborava muito, mas de repente começou a me incentivar a pesquisar e a escrever sobre a nossa família. Disse que mesmo ela não tinha lembranças. O médico me explicou que ela estava sofrendo de demência, em grau leve. Ainda.
À medida que eu pesquisava, mais chocada ficava com as distâncias que nossas raízes familiares alcançavam... inclusive em outros continentes. Minha própria infância apresentava uma série de lacunas e histórias mal contadas.
Descobri uma lenda envolvida na trajetória de meus parentes. Em torno de um ancestral Texas Ranger, conhecido entre seus inimigos como "O Lobo". Curiosa, não resisti à ideia de investigar mais a fundo; fiquei frustrada ao constatar que os Texas Rangers não mais existiam. Contudo, num de seus momentos de aguçada lucidez, Mary-Louise disse que os Texas Rangers ainda existiam. Acatando a sua sugestão, decidi procurar a polícia estadual do Texas e lá me informaram que se tratava da divisão mais antiga, a dos rangers. Eu poderia encontrar alguma coisa nos arquivos mortos (os primeiros arquivos) e o museu dos rangers.
Agora, porém, que eu estava lá, em meio a ratos e baratas, cada vez que o facho de luz incidia sobre pilhas e mais pilhas de caixas de papelão, repletas de papeis velhos e empoeirados, eu era tomada de um desânimo danado. Eu nem sabia por onde começar.
"Garota, comece pelo começo!"
Certo... Eu me preparei para subir na escada de armar, tendo por alvo as caixas lá no alto da estante. O som de algo metálico caindo no chão me sobressaltou. Eu dei um pulo e virei para trás, deparando-me com um homem relativamente jovem, de uns trinta e poucos anos, vestindo um sobretudo no melhor estilo cowboy do Velho Oeste. O sobretudo não disfarçava a forma física sólida e musculosa.
Caramba... Acho que era um dos rangers. Até então, lidei com o responsável administrativo e o vigia do prédio. Mas avistar um ranger ao vivo e a cores era no mínimo...
Uau!
-Srta. Sinclair - ele tocou a sobrancelha com o dedo indicador da mão direita, enquanto segurava o chapéu de feltro, com a esquerda. Parecia à vontade, quando continuou, de um jeito preguiçoso: - A senhorita tem autorização para estar aqui embaixo?
-Bem... - espanei as mãos enluvadas para me livrar da poeira, enquanto ganhava tempo - já que sabe o meu sobrenome, sabe também que eu pedi autorização e a recebi do chefe de polícia estadual. Imaginei que ele tivesse avisado os rangers de que eu estava vindo.
Eu o examinei por um instante. Como ele não reagisse, continuei:
-Expliquei ao chefe de polícia, os meus motivos para a pesquisa, senhor....
Ele balançou a cabeça, e não respondeu à sugestão de apresentação.
-Sim, eu sei de tudo isso - disse, revelando um leve traço de aborrecimento. - A senhorita alegou tratar-se de uma pesquisa familiar. Mas não creio que precise vasculhar todo o arquivo morto para procurar os seus parentes. O museu fica lá em cima - apontou desnecessariamente para o teto do porão.
Claro que eu sabia onde ficava o museu dos rangers, mas também sabia que, lá, só encontraria fotos oficiais, armas e alguns textos explicativos superficiais. Eu precisava de mais. Eu precisava de detalhes!
-Se me permite a sugestão, senhorita, é mais fácil achar os seus parentes no cartório da cidade.
Não sei o que me aborreceu mais, se o tom de voz jocoso ou a sugestão proferida de maneira condescendente.
- Não, eu não permito que sugira nada - rebati, com irônica intenção. - Já estive no cartório. Não encontrei nada que não soubesse de antemão. Acontece que o meu ancestral mais popular parece ter sido um Ranger. Chamavam-no de "O Lobo".
O homem, até então divertido, ficou sério feito um padre rezando missa. Quer dizer, eu acho, porque a luz do corredor incidia por trás e mergulhava parte de sua fisionomia na penumbra.
-Sabe algo a respeito do Lobo? - eu insisti.
-Sim, conheço a história dele - respondeu, reticente.
Eu estava começando a me sentir desconfortável. Além de impaciente...
-Fiquei sabendo que pretende visitar todas as sedes - ele perguntou, com sua voz preguiçosa e sexy feito conhaque num dia frio de inverno. - Se me permite perguntar, está atrás de quê exatamente? - ele deu alguns passos na minha direção. A luz que vinha fracionada pelas janelinhas, no alto da parede, fez brilhar suas íris, tornando-as prateadas. Um efeito tão belo quanto assustador.
-Eu já disse... - comecei a me irritar seriamente.
-Sim, eu sei, você quer saber sobre o Lobo, supostamente seu ancestral... Mas para isso, não precisa revirar nossos arquivos.
-Revirar? - olhei ao redor, para aquela bagunça e imundície. - Impossível revirar mais do que já está revirado.
Senti que precisava abrir o jogo, se quisesse extrair alguma coisa dele. Pelo menos, abrir um pouco.
- Aparentemente minha família é uma junção entre duas famílias. Os Quint vieram da Irlanda e se estabeleceram aqui, no Texas. Os Clemente vieram do Brasil. - Como ele continuasse olhando para mim, sem expressão, acrescentei: - Na verdade, estou em busca de informações sobre um determinado antepassado que teria viajado ao Brasil. Um agente da lei. O primeiro dos Quint. Suspeito que ele seja esse tal de Lobo.
Ele alteou a sobrancelha. Não disse nada.
-Sim, eu sei - encolhi os ombros, interpretando a sua expressão. - É um antepassado remoto, do qual já não ostentamos nem mesmo o sobrenome. Mas, ouvi dizer que ainda existe um Quint aqui na corporação. Gostaria de saber se posso conversar com ele.
O homem endireitou as costas, alerta. Isso me deixou, para dizer o mínimo, desconsertada. E um pouco preocupada. Não entendi o motivo da atitude cautelosa.
De repente, um som vibratório baixo fez com que ele olhasse para baixo. -Com licença, um momento - disse, sacando o celular.
Atendeu e ouviu durante alguns segundos. A expressão concentrada. Depois desligou e tornou a me encarar:
-Hoje é o seu dia de sorte - ergueu significativamente as sobrancelhas grossas.
Acompanhei a direção do seu olhar e descobri que havia uma câmera de segurança no alto da parede. Uau. Quer dizer que eu estive sendo observada durante todo o tempo em que fiquei ali embaixo? Ainda bem que não enfiei o dedo no nariz, nem cocei a bunda.
Franzi as sobrancelhas, sentindo a aproximação de um novo espirro. Segurei a ponte do nariz para impedir.
-Por que é o meu dia de sorte? - perguntei, com a voz saindo anasalada.
Os lábios masculinos torceram ligeiramente. Eram bronzeados, como todo o restante de sua pele.
-Porque você vai conversar com o nosso chefe maior - foi a resposta.
Soltei o nariz quando achei que a vontade de espirrar tinha passado.
-Não entendi. Achei que já tivesse falado com o chefe de polícia - argumentei, mais desconfiada do que nunca.
- Não com o líder do destacamento Ranger. - De aborrecido, agora o homem parecia estar se divertindo bastante. - Ué, você não queria saber as origens da sua família?
Fiz que sim, com a cabeça.
-E não queria saber sobre o primeiro Quint?
Tornei a assentir.
-E não disse que queria conversar com o último dos Quint?
Desta vez, eu simplesmente o encarei.
-Ele sabe que está aqui e vai receber você - disse o suposto ranger, num tom suave e levemente debochado. - Aproveite para fazer todas as perguntas que deseja.
-Mas ele, quem?
-Alec James Quint, o último descendente direto, ainda vivo, de AJ Quint.
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