Bons sonhos, garotinha
Diana Clemente Sinclair
Arredores do Condado de Williamson,
Texas, US, dias atuais
Eu estava exausta, mas não tive sono. O sono vinha quando a fome estava saciada, portanto, o apetite selvagem que me dominou significava que o sono não daria as caras tão cedo. Sim, eu estava de saco cheio, desesperada para escapar da dieta. Passei a mão no telefone e pedi serviço de quarto. A consciência vagamente me alertou para o fato de ter comido uma tremenda bomba calórica mais cedo, no Darlene's. Eu a ignorei, pois estava no modo piloto automático. Ou seja, o estômago havia assumido as funções do cérebro.
Jesus, era uma luta diária. Como no AA.
Decidi me conceder um mimo - pedi uma pizza Califórnia inteira, uma coca em lata bem gelada, e pudim de chocolate de sobremesa. Ai, Deus... Eu merecia tanto esse mimo, depois daquele cachorrão ter me dado o maior susto da minha vida! Além do mais, perdida por um, perdida por mil. A torta da Darlene tinha acabado com o esforço do dia, então, para quê lutar, né? Melhor se render ao prazer do momento sem culpa. Eu deixaria a culpa para o dia seguinte.
Enquanto esperava, apanhei a pasta contendo toda a minha pesquisa, e espalhei o conteúdo sobre a cama.
Decidi que estava na hora de sistematizar o que consegui até agora. Teria que faze-lo, mais cedo ou mais tarde...
Comecei pelas fotos, ordenando-as por data. Das mais antigas as mais recentes. A primeira era de um rapaz distinto. Tinha o rosto jovial de um garoto - o bigode foi a tentativa de parecer mais velho, ou mais sério e confiável. Ele usava um chapéu de feltro e roupas de época. Parecia ser europeu. Virei a foto e encontrei os rabiscos borrados de uma caligrafia bonita.
Estava escrito: HM, Londres, 1889. Quem é você, HM? Olhei para a foto com atenção e percebi que ele posava diante de uma barbearia. Havia outro rapaz com ele. Coloquei a foto de lado e fui para a próxima. O mesmo rapaz ao lado de uma jovem dama, com um sorriso atrevido. No verso, estava escrito: minha adorada Stella. O casal posava para a foto irradiando uma estranha combinação de emoções. O homem sentado, a mulher de pé por trás dele. Ela perigosamente feliz, ele temeroso. Na foto seguinte, quase a mesma pose, só que há um homem segurando o iluminador, e acaba aparecendo na foto, com o rosto pela metade.
Encontrei outras fotos, em estado melhor ou pior. Uma delas me chamou a atenção, porque o cenário era de uma savana. Uma tribo africana executava uma dança de guerra, empunhando suas lanças e segurando seus escudos. Estava escrito no verso da foto: Zululândia.
Continuei ordenando as fotos, tentando entender aquele quebra-cabeça.
A foto de uma jovem segurando uma maleta, embarcava num navio. Ela parecia resoluta em seus trajes europeus de viagem, posando sobre a rampa de embarque com um sorriso esperançoso. No verso, as iniciais MF MD, Porto de Liverpool, deixaram-me mais intrigada ainda. O ano: 1889. Outra foto consistia num close de um homem olhando para o lado, de perfil e fumando seu cachimbo. O anel em seu dedo me chamou a atenção. Parecia estar num estúdio, pelo que pude perceber. Estava escrito no verso: Winkler, de passagem, Londres, 1885.
Aqui... Ai, meu Deus, que foto é esta? São ciganos? Um acampamento cigano? E essa frágil moça, tão triste... Quem será? Fiquei cismada. Então, eu vi a foto de um dos homens que estavam ao lado de AJ Quint, no corredor do escritório dos Rangers. Eu era ótima fisionomista. Jamais esquecia de um rosto... O almofadinha... Pelo menos os trajes eram de um típico almofadinha europeu do século passado.
Como chamavam naquela época, um cara vestido assim? Janota?
Eu fui empilhando as fotos num canto e retirei alguns relatórios - cópias de documentos antigos e amarelados. Fotocópias, na verdade. Havia um relatório da Polícia, numa língua estranha. Só pude entender que tinha a ver com uma investigação de assassinato. A cidade de expedição do documento ficava na América Latina. As páginas do relatório estavam marcadas por algumas fotos. Entre elas, a de um anel, com um emblema em destaque. Estava escrito "Aesir".
Rio de Janeiro. Claro, Brasil.
Encontrei outro relatório, só que da polícia de Londres, acompanhada da capa satírica da revista Puck sobre o caso do assassino do avental de couro. Popularmente conhecido como Jack, o estripador. A outra cópia era a reprodução da capa de um livro. Na capa, o mesmo símbolo do anel. Estava escrito: The Edda Learned From The Old Norse. Era um antigo livro sobre lendas. Coloquei o título no Google e imediatamente veio a explicação. Uma longa explicação que eu teria que ler com calma, depois. Tinha algo a ver com Fenris... Espera... Não era o lobo mitológico que matou Odin? O que poderia significar?
Coisas tão distantes e distintas... Eu teria que tentar entender e encontrar os pontos de correlação.
Basicamente, a Edda era o nome dado a dois manuscritos de poesias escandinávicas, os quais dinamizavam os arquétipos que regiam a religião e a cultura das tribos escandinavas, bem como proto-germânicas. Teriam sido copiados pela primeira vez na Idade Média. Pelo visto, Fenris ocupava um papel importante na mitologia, especialmente no Ragnarok. O Google puxou outro título como complemento: O Relato da Vidente Nórdica.
De repente, as palavras do major Quint me vieram à mente: "Você é uma adestradora." Seb também disse algo como "você é minha adestradora". E no final, nenhum dos dois explicou o que isso significava. Pesquisei sobre o termo, e nada significativo apareceu, exceto domadores de cavalos e animais de circo.
Puxei mais uma foto da pasta e a soltei imediatamente, chocada. Era como se eu estivesse me olhando no espelho, tamanha a semelhança. Peguei a foto novamente e estudei o rosto da jovem que olhava de volta para mim. Seu penteado era inegavelmente antigo... A expressão séria e misteriosa parecia intensa, quase ansiosa. Como se ela procurasse alguma coisa além do fotógrafo. A princípio, eu vi as semelhanças assombrosas. Mas agora comecei a ver as diferenças – no formato e na cor dos olhos, no nariz, e nas bochechas. Passaríamos tranquilamente por irmãs, só que não idênticas.
Vasculhei as bordas irregulares da foto e depois, o verso, em busca de alguma informação. E lá estava escrito apenas: Maju, 1899. Véspera de ano novo. Virada do século 19 para o século 20. O cenário de fundo parecia o de um salão de festas, num palacete ou mansão, com várias pessoas comemorando o ano novo. Todos, menos ela.
Havia outra foto dela, mais velha, ao lado de outras duas mulheres, mais ou menos da mesma idade, as três estavam radiantes diante do letreiro de uma escola. Maju também sorria, mas havia sempre uma tristeza em seu olhar. No verso da foto, as iniciais: SW & MJCQ & MF Dr., 1910, condado de Williamson: Georgetown.
As fotos mais antigas possuíam anotações no verso, numa língua que eu não entendia. Joguei no Google tradutor, que identificou como sendo Português. E a tradução pouco me ajudou para compreender o contexto de tudo aquilo.
O que aquelas pessoas tinham a ver com a minha família?
Um uivo medonho quase me fez cair da cama. Eu corri para a janela e tentei ver alguma coisa. Mas não havia nada, apenas a lua cheia e a escuridão quase completa do estacionamento lá embaixo... Jurei ter visto dois pontos brilharem na escuridão. Pareciam olhos luminosos. Pisquei, e não estavam mais lá. Mas quando eu me inclinei, pude perceber que se tratava apenas do reflexo da luz do poste na película de um dos carros. Graças a Deus...
Respirei aliviada e me afastei da janela.
Terá sido um uivo mesmo que eu escutei?
Comi boa parte da minha pizza, da sobremesa e levei um tempo para fazer a digestão em frente à TV. Assisti a um filme antigo – Clark Gable e Claudette Colbert, em Aconteceu naquela noite... Depois, bocejando, guardei todos os documentos reorganizados e puxei as cobertas... Quando estava na fronteira entre o sono e a consciência, pensei ter ouvido uma voz sussurrar em meu ouvido (e eu adormeci ao som da estranha cantilena):
Sonha, sonha, garotinha, com outro tempo, outra gente.
Sonha, sonha, garotinha, com o seu destino, sua herança.
Sonha, sonha garotinha, as forças do universo escrevem sua história.
Sonha, sonha, garotinha, o passado sempre nos alcança.
Sonha, sonha, garotinha, tendo a lua cheia por testemunha.
A risada de uma mulher. O cheiro da floresta. O flash de um olhar luminoso.
O toque aveludado de um pelo macio em meus dedos.
Sonha, sonha, garotinha, com séculos que separam as origens.
A risada de uma mulher. O barulho do mar. Os gritos das mulheres. Os lobos caçando.
E mais nada...
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Acordei de um sono confuso, repleto de imagens fundidas e borradas. Pessoas usando roupas de época e uma risadinha maligna de mulher. Também sentia o toque sedoso de pelos em minhas mãos. Um pelo macio, quente e espesso.
A risadinha parecia gravada a fogo em minha mente perturbada. E logo eu tinha vívida a imagem da criatura. Uma mulher suja de lama. Vestes rasgadas, galhos secos e folhas adornavam sua cabeça, a cabeleira emaranhada...
A imagem estava lá, no Google. Demônio da floresta. A mãe de Fenris. Entao, foi isso. A pesquisa me impressionou a tal ponto que acabei sonhando com ela. Teria que investigar cada um dos elementos que achei. Mas uma coisa de cada vez... Espreguicei-me e fui para o banheiro a fim de me lavar.
XXX Eu me arrumei devagar, porque sentia cada músculo do corpo doer. Acho que até a minha sobrancelha doía. Eu me virei para a porta e quando abri, levei um susto danado. Sebastian estava parado diante dela, com a mão levantada, pronta para bater. Ele sorriu, surpreendido.
-Ei, como está? - ele me lançou um olhar entre especulativo e preocupado. - Dormiu bem?
-Mais ou menos, eu não gosto de dormir fora de casa - disse eu, saindo e fechando a porta. Eu me virei para ele e só então me dei conta de que ele não tinha se movido. Então, ficamos cara a cara. A colônia suave e cítrica alcançou o meu olfato. Eu inspirei aquele aroma e fui tomada por uma sensação de paz. A opressão que dominava o meu peito me abandonou. Eu me senti mais tranquila. Daí, as palavras dele na noite anterior me vieram à mente: "você me acalma". Pois é... a recíproca era verdadeira.
-Está com fome? - ele perguntou, baixinho.
Meu estômago roncou em resposta. Sim, naturalmente, a fome aproveitou a deixa para aparecer. Nós dois rimos. Ele indicou o caminho e eu fui na frente, pelo corredor, em direção às escadas.
O restaurante ficava do outro lado da rua. Não era como o Darlene's, mas tinha um atendimento quase tão acolhedor quanto. Certa hospitalidade parecia ser encontrada apenas no Texas. Quando os texanos recebiam, recebiam de coração. Mas quando botavam para correr, o faziam com suas melhores espingardas e rifles de caça.
Eu comecei a rir baixinho.
-O que foi? - ele quis saber.
-Nada, nada! - não poderia explicar, sem que ele pensasse que eu considerava o Texas uma terra de selvagens.
Sentei-me à mesa perto da janela e ele foi até o balcão, para fazer os pedidos. Aproveitei para observar o ambiente ao meu redor e lá fora.
Havia uma Igreja não muito longe dali. Era toda feita de clapboards, na cor canela, e ficava diante de uma praça ladeada de árvores secas. Sim, o outono fazia com que um festival de folhas mortas, douradas e escuras, se espalhasse pelo chão. Também havia um parque de diversões e algumas crianças brincavam, sob o olhar vigilante de suas mães, ou babás, ou irmãs mais velhas, não sei...
-Pronto.
Eu me virei a tempo de ver Sebastian retornando com dois copos e dois pratos equilibrados numa bandeja. Nos pratos, havia porções de ovos mexidos, salsinhas e um pouco de bacon. Não pude evitar de franzir o nariz.
-Que foi? - ele perguntou.
-Eu não costumo comer esse tipo de coisa no café da manhã.
Ele sorriu. - Como a sua parte, se não quiser - ele apontou o café. - Mas o café você, como boa nova-iorquina, toma, não é?
Concordei com a cabeça, pegando o copo e sorvendo abençoados goles.
-Eu sou texana. Só não fui criada aqui. Meus hábitos alimentares são saudáveis, não nova-iorquinos.
Ele parou de se servir e mexeu nos bolsos. - Mas eu salvei o seu dia - estendeu-me uma enorme maçã vermelha.
-Estou me sentindo a chapeuzinho aceitando a maçã do lobo mau. - nem sei por que disse aquilo, mas peguei a maçã mesmo assim. Eu estava morta de fome.
Ele sorriu.
-Acho que você confundiu os contos de fada. Quem deu uma maçã foi a velha bruxa disfarçada, e foi para a Branca de Neve.
-Tanto faz - eu gesticulei, enquanto dava outra mordida em minha maçã;
-Não - ele fez de leve, com o dedo indicador. - Contos de fadas são como a parábola do fogo e da fumaça.
-Hmm - eu tomei um gole do café, que realçou o sabor da maçã. - Você está querendo dizer que onde há fumaça, há fogo?
-Algo assim - ele meneou a cabeça.
-Então, quando vamos partir - ele me questionou.
-Eu não sei - balancei a cabeça. - Tenho que cuidar da minha tia avó. Não posso viajar e deixá-la sozinha. Na verdade, essa viagem é só um sonho distante.
Ele me encarou, por um tempo. - Não é um sonho distante. Nenhum sonho é distante o suficiente, se conhecemos o caminho. - Ele parou de falar abruptamente, como se tivesse mais a dizer, mas resolveu não continuar. – Mary-Louise poderia ficar com a minha mãe.
Ele tinha uma mãe. Óbvio que tinha, mas foi surpreendente a menção dela, na conversa.
-Minha mãe é a bibliotecária do condado - Seb explicou. - Ela sempre achou que a separação entre as famílias jamais deveria ter acontecido. Ela me disse que adoraria ter Mary Louise em nossa casa. E duas mulheres com a idade próxima teriam mais o que conversar, não acha?
Claro que eu achava uma boa ideia, mas não sei se daria certo...
-Não sei se minha tia-avó vai concordar...
-As duas sempre se deram bem. A única pessoa que sua tia avó não suporta é AJ.
-E porque isso?
Ele encolheu os ombros.
-Acho que sua tia avó acha o nosso tio-avô parecido demais com o Alec James original. Na opinião dela, toda a desgraça familiar que já nos aconteceu é culpa do primeiro Quint... Para piorar a situação, a mãe de Alec decidiu lhe dar o nome do pioneiro. Então...
-Mas não pode ser só isso... Quer dizer, não pode ser só por causa disso que eles não se suportam. Afinal, ele não tem culpa de se parecer e de receber o nome de um ancestral. - Eu tomei mais um gole de café. De repente, o aroma dos ovos e da salsicha tornou-se atraente. Olhei de relance para o prato. Sempre atento, Sebastian o empurrou para mim. Eu pigarrei, peguei a colher e me servi de uma porção, enquanto prosseguia em meu raciocínio: - Veja bem, eu encontrei uma foto da esposa dele, e descobri que sou a cara dela.
Ele me lançou um breve olhar. - Está falando da brasileira, a Maria Júlia? Sim, você é parecida com ela, mas não tanto assim. E AJ é parecido com Alec James, mas não tanto assim. Nunca ouviu falar de semelhanças fenotípicas que aparecem em uma mesma família, ao longo das gerações, tornando parentes tão parecidos que poderiam ser confundidos com gêmeos?
-Sim, mas...
-Você está certa num aspecto - ele girou o garfo na minha direção, onde havia espetado um pedaço da salsicha.
Qual é, ele estava me alimentando? Eu abri a boca e arranquei a salsicha do garfo, com os dentes. Mastiguei devagar e engoli.
-E qual aspecto seria este? - eu o incitei a se explicar.
-Existe mais coisa na animosidade entre sua tia avó e o nosso tio avô.
Deus, isso era tão doido. Meu tio. Seu tio. Nosso tio. Minha tia.
O cérebro estava dando um nó.
-Eu só não descobri ainda o que é... - ele estava dizendo. - Tenho as minhas suspeitas, mas... - Sebastian deu de ombros.
-Bom, eu vou falar com a minha tia avó e ver o que ela acha da ideia de ficar com a sua mãe.
-Será por um curto espaço de tempo. Não creio que nós fiquemos fora mais do que um ou dois meses.
Meneei a cabeça.
-Concordo, se nós quisermos levantar informações, precisaremos fazer isso.
Ele sorriu.
-Taí, gostei! - disse ele.
-Gostou do quê?
-De você ter dito "nós".
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