Capítulo 17- O Guerreiro e a Estrategista

Ascarian- Norteya

No silêncio da noite, os raios pálidos da lua espreitavam pelas cortinas rendadas, pintando o quarto de Alitranna Kulenov com um brilho etéreo. O aposento era um oásis de elegância, adornado com móveis entalhados à mão e tapeçarias de cores ricas que contrastavam com o branco imaculado das paredes. As sombras dançavam nos cantos do quarto, enquanto Alitranna, a irmã do rei, repousava inquieta sobre os lençóis de seda. Seus olhos verdes, normalmente cheios de confiança e determinação, agora estavam nublados por pensamentos tumultuosos.

A donzela estava usando um vestido de lã, detalhado com figuras de ouro, rosas e folhas caídas. Seus braços estavam limpos de acessórios, para garantir conforto, já em suas orelhas estava um lindo par de brincos brilhantes, do qual sua mãe a presenteou. Seu cabelo loiro ondulado formava um penteado elegante, que permitia conduzir uma imagem poder e confiança para a irmã do rei.

Ela se assentou, calçou um par de botas e começou a caminhar pelos corredores do castelo real. Os seguimentos de pedras eram largos e hostis, era possível sentir o cheiro de ferrugem que acompanhava os móveis mais antigos de Xaoha. Descendo escadas curvais, Alitranna chegou ao salão principal. No escuro, com a presença apenas de feixes cortantes luminosos que saiam das grandes janelas, ela se assentou no trono aveludado, confortando-se e colocando a perna esquerda em cima do trono.

Observando os feixes de luz, Alitranna passou alguns minutos pensando no seu futuro. Agora, com Damon no poder, enquanto ele não herdasse um filho, ela seria a pessoa direita ao trono após seu irmão, a descendente caso ele morresse.

Não demorou muito tempo para que as grandes portas à frente dela se abrissem e revelassem Damon chegando de uma viagem.

—Boa noite irmão! Que agrado o ver. —Alitranna suspirou e logo após abriu um sorriso.

De trás de Damon, dois soldados fecharam as grandes portas.

—Olá irmã! O que faz sentada de forma selvagem no meu trono a um momento desses? Daqui a pouco deve amanhecer!

—Estava me distraindo, não consegui dormir. —Ela se levantou e caminhou até perto de seu irmão.

—Queimei as tropas de Jaroak que estavam dominando as cidades destruídas de Hakyan.

—Fico feliz em escutar isso! É de bom agrado saber que meu irmão governará para a vitória! —Alitranna pausou e olhou para a direita, observando um arco que levava a outro cômodo. —Que tal tomarmos um pouco de vinho? Não vamos conseguir dormir de qualquer forma.

—Claro.

Os dois irmãos Kulenov se encararam por um instante e após caminharam até o cômodo ao lado. Chegando lá se depararam com uma sala de jantar robusta, mas delicada. A sala de jantar do castelo real era um cenário de magnificência. Uma grande mesa de jantar de carvalho escuro ocupava o centro do ambiente, adornada com intricadas talhas e detalhes dourados. À sua volta, cadeiras estofadas com tecidos suntuosos aguardavam os convivas. Armários embutidos exibiam uma variedade de pratos finos, taças de cristal e talheres de prata, enquanto garrafas de vinhos brilhavam à luz das velas. O verdadeiro destaque da sala, no entanto, era o teto de vidro que se estendia sobre a mesa, revelando o espetáculo celestial, um céu estrelado.

Alitranna caminhou até um dos armários e pegou uma garrafa de vinho, acompanhado com duas taças.

—Já me peguei ficando bêbada em algumas noites, olhando para este teto. É realmente um espetáculo, e convenhamos, já fui em um teatro aqui em Ascarian e olhar para isso..., olhar para isso é muito melhor! —Alitranna disse enchendo as duas taças com vinho.

—Olhando para o céu só consigo imaginar dragões o sobrevoando, nossos dragões. A séculos a casa Kulenov vem sendo a mais poderosa de Norteya. Sempre possuímos dragões, e só agora, depois de anos governando apenas uma parte de um reino, estamos governando toda Norteya. —Damon disse olhando para o teto e recebendo uma das taças de sua irmã.

—Eu acho que tudo caminhou para que as coisas acontecessem no tempo certo! Agora, com a guerra, depois que tudo isso passar e ganharmos com uma vitória memorável, teremos todo o continente para nós, toda Xaoha, você não será apenas um rei, mas também um imperador, governará reinos que ainda estão para existir! —Ela disse tomando um grande gole de vinho.

—Queria que a Celine estivesse aqui.

—Não seja estupido irmão, já vos disse, ela está em prantos com a imensa vontade de te matar!

—Mas...

—Não tem essa de mas Damon! Chega!

Damon se curvou e fechou a cara, seus olhos se fecharam e suas mãos se apertaram. Devagar, ele começou a sair dali, com passos curtos.

—Enviei tropas para Jaroak. —Alitranna disse com convicção, logo após bebeu mais um gole de vinho.

—O que? —Damon tornou-se para ela.

—A alguns dias enquanto você estava em viagem, enviei tropas para Jaroak. Irão atravessar a fronteira e atacar a primeira cidade do deserto deles.

—Você o que? —Damon disse em tom elevado.

—Você deveria me agradecer irmão. Foi só uma questão de tempo. Assim que você retornasse as cidades de Hakyan para nós, alguns dias após as tropas passariam sem ter que enfrentar nenhum inimigo. E é isso que está acontecendo. Eles não teriam tempo de enviar uma linha de frente para proteger as primeiras cidades, pois a pouco tempo eles teriam sido derrotados com a antiga linha de frente. Um ataque surpresa irmão. Eles não estão esperando por isso. —Alitranna disse bebendo vinho, quando terminou abriu um largo sorriso.

—Por que fez isso sem me consultar?

—Você estava em viagem a dias.

—Você poderia ter me avisado antes de eu partir. E com que critério meu exército obedeceu às suas ordens?

—Além de eu pertencer ao conselho..., possuo um diálogo didático invejável. —Alitranna riu.

Damon começou a entrar em um estado de euforia, andando de um lado para o outro com as mãos na cabeça.

—Irmão! —Alitranna gritou e o segurou pelo braço. —Se acalme! Sente e descanse um pouco, você está nervoso após o que fez.

O rei com a ajuda de sua irmã, sentou-se em uma das cadeiras aveludadas e a encarou fixamente. Em sua frente, Alitranna se agachou e segurou uma de suas mãos.

—Lembra daquela história que a Lenah, nossa babá, contava para gente antes de dormir? Ela era um amor de pessoa e inventou uma história apenas para nos confortar! O guerreiro e a estrategista. Os dois irmãos governavam um reino enorme. O guerreiro saía em viagens para lutas e dominações, enquanto a estrategista criava planos e estratégias para dominar reinos e ilhas. Eles achavam que conseguiriam depender apenas de si próprio. Mas um dia o guerreiro passou mais tempo do que o acostumado longe de casa, e a estrategista ficou sem alguém para lutar bravamente por ela e a defender. A estrategista foi brutalmente assassinada. Quando o guerreiro voltou, sua irmã estava morta, e ele ficou sem alguém para o guiar em planos de dominação. Em poucos meses o reino do guerreiro foi dominado, e ele também foi assassinado. Os dois possuíam vitória quando estavam juntos e trabalhavam juntos. Você é o guerreiro..., eu sou a estrategista. —Ela se aproximou e encostou sua cabeça na de seu irmão. —Confie em mim!

—Vamos morrer igual esses dois idiotas?

Os dois riram e após Alitranna se afastou.

—Um dia vamos morrer, mas antes vamos fazer história! —Ela pausou e o encarou por alguns segundos. —Agora vá dormir, você precisa descansar.

Damon se despediu, levantou-se e saiu do cômodo.

Após deixar a esplêndida sala de jantar, Alitranna seguiu pelos corredores do castelo real com passos rápidos e silenciosos. Seu olhar aflito a guiava através dos corredores até chegar à cozinha, onde os reflexos dourados das tochas dançavam nas paredes de pedra. Dali, ela avançou para a porta dos fundos, onde uma brisa fria da noite a envolveu. Com um gesto fluído, vestiu sua capa escura, puxando o capuz sobre os cabelos dourados. 

Caminhando pelas ruas silenciosas de Ascarian sob o manto noturno, Alitranna mantinha-se nas sombras, movendo-se com cautela. A cidade estava mergulhada em quietude, as luzes das casas piscando de maneira intermitente, revelando uma vida adormecida. Ela continuou em direção ao destino, seus passos ecoando de forma suave nas ruas da capital.

Finalmente, ela chegou à porta de uma modesta casa. Com batidas suaves na janela, Alitranna aguardou pacientemente. Do outro lado da parede uma figura revelou-se. Abrindo a janela, uma mulher jovem, negra e de olhos robustos, permitiu a entrada de Alitranna.

A mulher jovem de pele escura e cabelos crespos emanava uma aura de graça enquanto se aproximava da janela. Seus cabelos formavam uma coroa natural emoldurando seu rosto, e seus olhos expressivos brilhavam como pontos prateados no céu. Vestida com roupas que combinavam estilo e funcionalidade, ela usava uma blusa solta de linho em tons terrosos que realçavam sua pele, com mangas bufantes que adicionavam um toque de elegância.

Uma saia longa e fluida, também de linho, seguia suas curvas suavemente, e a cintura marcada por um cinto de couro desgastado adicionava um toque de rusticidade ao conjunto. Suas mãos estavam adornadas por braceletes simples, que tilintavam suavemente a cada movimento.

Assim que Alitranna atravessou a janela e entrou na casa, as duas se abraçaram fortemente.

—Demorou! —A mulher sussurrou.

—Vim o mais rápido que pude.

Em um toque de feixes luminosos da lua, as duas se beijaram, seus lábios encostaram um no outro de forma sútil e calma, sentindo cada arrepio iminente. Os braços de Alitranna contornaram a coluna da mulher, e por dentro de sua blusa, ela acariciava sua pele, deslizando seus dedos nas majestosas curvas da jovem. Quando terminaram o beijo, se encararam por alguns segundos.

—Vamos subir. —A jovem sussurrou.

A mulher em questão era Dani Palmieri. Dani conhecia Alitranna desde os dez anos de idade. Vivendo nos jardins de Nyesa, as duas se apaixonaram uma pela outra, e desde então cresceram nas escondidas, se encontrando e tomando o amor de si. Quando Alitranna se mudou para a capital junto a seu irmão, Dani a seguiu, abandonando sua família e sua vida em Nyesa, para ficar perto de sua amada.

Em um quarto, as duas se deitaram em uma cama larga e confortável, recheada com lençóis e travesseiros vermelhos com detalhes dourados.

—Contei para ele o que eu fiz. —Alitranna disse deitando-se no peito de Dani.

—E qual foi a reação dele?

—A que eu já esperava, ficou em choque. —Alitranna suspirou e pegou carinhosamente uma das mãos de Dani. —Ele continua pensando naquela maldita e ordinária princesa. Aquela pessoa medíocre pensou que seria uma boa ideia fugir. Deve estar morta, ou pior, sendo estuprada diariamente por algum camponês.

—Ela não tinha fugido com aquele soldado?

—Kevin..., Kevin Hamisen —Alitranna disse com um olhar de desgosto. —Ele, bom, ele sofrerá quando eu o encontrar. E acho que sofrerá ainda mais se Damon o encontrar. Um traidor de merda que não honrou com sua família.

—Eu sinto que ela não está morta, não ainda! Ela vai morrer tentando tomar seu trono.

—O trono não pertence mais aos Ascarian, os Kulenov estão no poder! —Ela disse se levantando por um instante.

—Claro meu amor, e só que..., dá pra entender o porquê de ela lutar para ser rainha.

—Eu preciso encontrar essa puta..., antes mesmo que meu irmão. Dei uma ordem às tropas que mandei, se eles encontrarem ela viva, quero que cortem a cabeça dela e joguem o corpo no mar.

—Uau, nada brutal!

—Tenho medo do que o Damon seria capaz de fazer com você se descobrisse que mandei matar Celine! —Alitranna disse em tom baixo.

—Ele não sabe de nós, está tudo bem.

—Assim espero..., assim espero.

Jankiari- Jaroak

—Kanor?

—Prin..., princesa?

—Sim sou eu..., o que fizeram com você? O que aconteceu?

—Se puder me tirar daqui eu explicaria tudo com bastante vontade. —Kanor sorriu, mesmo lutando contra a morte.

—Kevin me ajuda! —Celine gritou.

—Quem é ele Celine? O cabelo dele...

—KEVIN ME AJUDA! —Celine tornou a gritar, dessa vez ainda mais alto.

O soldado se aproximou e com uma adaga começou a cortar as cordas que prendiam as correntes no poste de madeira. Quando Kanor foi solto, ele caiu no chão e começou a tossir incontrolavelmente. Seu olhar estava cabisbaixo e cansado. Sua pele, desde seus pés, até sua cabeça, estava mutilada e suja. Em um rasgo da camisa em sua barriga havia um enorme ferimento, um corte que ainda estava a jorrar sangue.

—Kiana me dê algum lenço, qualquer coisa! —Celine disse eufórica.

Kiana rasgou parte de sua roupa e a entregou. Circulando sua coluna, Celine cobriu o ferimento e estacou o sangue.

—O que aconteceu Kanor? Como veio parar aqui? —Celine deixava cair lágrimas que escorriam seu rosto.

—Me prenderam..., por causa..., bom, por causa de mim! Meu cabelo! Meus olhos. Me consideram um demônio Celine, sempre foi assim. Eu fui estúpido..., estúpido em acreditar que eles acreditariam em mim, que de alguma forma eu seria entendido e que me ajudariam, que seguiriam meus passos. Tenho ódio..., eu tenho ódio e nojo de mim! Eu estava contando as horas para morrer aprisionado naquele poste! Dias..., estou aqui a dias. Meus amigos estão presos em algum lugar e nem sei se ainda estão vivos. Tudo..., tudo isso por ser quem eu sou. Eu quero morrer Celine..., eu mereço morrer..., eu preciso morrer! —Kanor disse enquanto lágrimas tristes saíam de seus olhos.

Kanor estava imerso em uma tempestade de emoções conflitantes, suas entranhas ardiam com a dor da rejeição e da traição. A sensação de ser considerado um demônio por aqueles que deveriam tê-lo aceitado como líder e aliado era como uma adaga cravada em seu coração. Ele lutava para conter as lágrimas que ameaçavam rolar por suas bochechas, mas sua tristeza era evidente em seu olhar perdido e na curva triste de seus lábios.

Ele se sentia como um estranho em sua própria terra, uma sombra solitária vagando pelos recantos escuros de sua própria existência.

A sensação de inadequação pesava sobre ele como um fardo insuportável, o fazendo questionar seu próprio valor e propósito. Ele se perguntava se algum dia conseguiria superar o estigma que o acompanhava, se encontraria um lugar onde pudesse pertencer de verdade. A tristeza em seu coração era profunda e dolorosa, como um poço sem fundo que ameaçava engoli-lo por completo

Celine se agachou e o abraçou sem que encostasse em seus ferimentos. Um suspiro e um olhar receptivo, foram o bastante para acalmar o coração de Kanor. Suas peles se encostavam de forma sútil, e em um deslizar, Kanor não sentia dor, sentia acolhimento. O toque das lágrimas de Celine que caíam sobre a pele de Kanor, penetravam e se fundiam com suas veias, esfriando todo seu corpo. Ela estava ali, sua parceira de infância, que era como uma distração aconchegante para sua mente, o agarrando com força e solidão.

—Senti sua falta ogro! —Celine sussurrou em seus ouvidos.

—Também senti a sua falta princesa!

De repente, de forma inesperada, o momento de carinho se tornou em um momento de aflição. Pequenos pedregulhos no chão começaram a tremer, uma neblina invadiu o local amedrontando todos, os ouvidos de todos ali começaram a sentir arrepios e seus corações aceleraram em um ritmo agoniante. De longe, um exército de centenas de soldados norteyanos corriam em direção à cidade. Homens com armaduras firmes, todos montados a cavalos, uns armados com arco e flecha e outros apunhalando espadas afiadas, seguiam com uma feição de ódio.

Um grito de perigo ecoou a garganta de Celine que alertou para que todos saíssem dali imediatamente. Rapidamente Kevin pegou Kanor e o carregou em seu ombro. Os quatro subiram em um monte próximo ao centro de mercados e se esconderam atrás de grandes árvores.

As tropas de Norteya haviam lançado um ataque impiedoso, com suas espadas brilhando à luz das tochas enquanto avançavam pelas ruas. O som de cascos de cavalo ecoava, acompanhado pelo odor acre de fogo que se alastrava rapidamente.

As casas, antes tranquilas, agora estavam envoltas em chamas. Gritos de dor e agonia ecoavam pelo ar, misturados ao som metálico de armas e ao atirar das flechas. O fogo consumia o que antes era lar, reduzindo memórias e sonhos a cinzas.

Soldados de Norteya invadiram as casas. Mulheres, crianças, idosos... todos eram alvos dos ataques brutais. O ar estava impregnado com o cheiro de sangue.

Nas ruas, o cenário era ainda mais terrível. O choque da batalha estava em toda parte, corpos caídos criavam um espetáculo de horror nas calçadas enquanto soldados avançavam com selvageria. O que era uma simples e pacata vila agora havia se transformado em um campo de guerra.

De cima dos montes Celine e seus companheiros observavam aquela chacina, aterrorizados e amedrontados. Os olhos de todos tremiam enquanto suas bocas secavam perante a ansiedade e aflição que estavam sentindo.

—Meus amigos... —Kanor disse baixo, lutando contra sua fraqueza. —Eles estão presos, eles estão em perigo. Eu preciso descer.

—Não mesmo Kanor, não vou permitir isso, você não está em condições! —Celine disse.

—Eu posso descer depois das tropas avançarem um pouco. —Kevin disse tronando-se para o grupo. —Consigo me infiltrar e distraí-los, vai ser fácil para...

Sentindo uma espada perfurar seu peito, Kevin fechou a garganta e prendeu a respiração. De trás do soldado Hamisen, outro soldado penetrava sua espada no corpo de Kevin. Seu corpo esquentou e uma dor forte o dominou. Quando o soldado retirou a espada, seu peito começou a jorrar sangue. A sensação de estar morrendo doía mais do que a empunhadura da espada que o perfurou.

Sem forças, sem poder resistir, Kevin caiu no chão e viu as poucos sua visão escurecer. Com um último suspiro, ele observou o olhar de choque e apavoro de Celine.  

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