Capítulo 13- Paimont Silivar

Até onde um ser humano iria por amor? Em busca de reconquistar o que perdeu, não se importando com os riscos e ameaças, preparando-se para possíveis sacrifícios impertinentes e recorrentes? A herdeira Celine Ascarian assegurava-se de não sentir nenhum arrependimento ou remorso. Sua pele vibrava em um tom de adrenalina, seus olhos trêmulos fixavam-se diante a neblina de Calabra, seu coração que já não possuía um ritmo calmo disparava em batimentos mútuos de desespero, e sua mente não conseguia focar em nada além de poder cumprir sua missão. O que Celine estava sentindo era um amor desesperado, depois de perder seu filho ela percebeu que a qualquer momento ela poderia perder Kiana, e agora corria em um ritmo descontrolado para a recuperar.

Dentro de uma casa velha e quase destruída, Celine e Kevin Hamisen esperavam pela única chance de conseguir pistas do caminho até o lago dos duendes, onde supostamente eles conseguiriam saber a localização de Kiana. As janelas estão todas quebradas, e os vidros espalhados no chão refletem a luz das tochas que Kevin e Celine seguram nas mãos. As paredes da casa estão desbotadas e cobertas de musgo, mostrando a idade avançada da construção. O telhado está parcialmente desmoronado, deixando o céu noturno à vista, com a lua brilhando em um tom amarelado. A entrada da casa está obstruída por pedaços de madeira e detritos. O ar dentro da casa é úmido e mofado, com um cheiro de mofo e decadência.

Do lado de fora, junto ao anoitecer, Paimont Silivar se aproxima.

—Desculpe a demora.

—Você mora neste lugar acabado? —Kevin perguntou em tom irônico.

—Kevin! —Celine o conteve.

—Tudo bem garota, é uma pergunta que todos me fazem, sim moro aqui! É o que restou da minha casa depois de uma batalha que aconteceu aqui em Calabra.

—Batalha?

—Há uma guerra acontecendo, e em Hakyan está havendo batalhas em todos os lugares, todos os dias. Acredito que as coisas irão mudar daqui pra frente, visto que pelas notícias que chegaram o novo rei de Norteya possui um dragão! Imagino, e espero, que as lutas e batalhas sangrentas mudem de lado, e comecem a acontecer em Jaroak.

Celine engoliu seco e franziu a testa.

—Não é mais viável a guerra terminar? —Celine suspirou.

—Oh querida, a guerra está longe de acabar! Os líderes de ambos os lados estão vibrados em uma expectativa abrangente de conquistar o país adversário. Na guerra de Xaoha dois povos irão se transformar em um!

—Não acredito nisso, acredito na paz, na contínua vivência dos dois povos.

—Pois então, sua crença é tola!

—Podemos deixar o assunto de guerra para depois mulheres? Precisamos ir antes que fique mais tarde. —Kevin as interrompeu.

—Não há hora em que o perigo é maior ou menor em Calabra, a todo momento você corre o risco de morrer. —Paimont disse em um tom baixo.

—Pois vamos logo.

Os três saíram da casa e começaram a caminhar pelas ruas do distrito.

Celine, Kevin e Paimont caminhavam cautelosamente pelas ruas escuras e sujas do distrito Calabra. As ruas eram estreitas e sinuosas, com prédios de pedra antigos e sombrios que pareciam prestes a desmoronar a qualquer momento. O cheiro de esgoto e de mofo pairava no ar, tornando a respiração difícil. As únicas fontes de luz eram tochas mal iluminadas, que criavam sombras ameaçadoras nas paredes e nas ruelas. À medida que avançavam, passavam por bares barulhentos, becos escuros, prostitutas e homens sinistros.

Finalmente, eles chegaram a uma loja de armas de aparência modesta. A vitrine estava coberta de poeira e parecia não ter sido limpa em anos. A porta rangeu quando eles entraram, revelando o interior sombrio e mal iluminado. Estantes e armários repletos de armas e equipamentos de guerra se estendiam pelas paredes. A maioria das armas parecia enferrujada e mal cuidada, mas algumas ainda pareciam afiadas e perigosas.

Celine sentiu um calafrio percorrer sua espinha quando percebeu que havia homens suspeitos espalhados pela loja, observando-os com olhos desconfiados. Ela se perguntou se estavam seguros ali ou se estavam apenas entrando em uma armadilha. Kevin também parecia inquieto, segurando firmemente a empunhadura de sua espada enquanto olhava ao redor em alerta. Paimont, por outro lado, parecia completamente à vontade, cumprimentando os homens com um sorriso largo e efusivo.

Apesar do clima opressivo da loja de armas, Celine sentiu um leve alívio ao saber que finalmente estavam mais próximos de alcançar seu objetivo de encontrar Kiana.

—Boa noite, em que posso ajudar? —Um homem adulto com uma barba rala indagou.

—O que prefere donzela, arco e flecha ou uma clássica espada afiada? —Paimont disse tornando-se para Celine.

—Arco.

Celine passou boa parte da sua infância treinando arco e flecha. Sua mãe Mortícia, a ensinou a técnica desde cedo, e ela se tornou uma excelente arqueira. Ela se lembrava dos dias passados na floresta, concentrada, com o arco tensionado e o olhar fixo no alvo. Celine não podia negar que amava a sensação de poder que vinha com o ato de atirar. Ela sabia que tinha uma base sólida de conhecimento em como atirar flechas, e que isso poderia ser muito útil em muitas situações, especialmente agora que ela estava lutando por sua vida no distrito Calabra.

—Me vê um arco e uma adaga. —Paimont afirmou coçando a cabeça.

Ela fez o pagamento e logo após saíram da loja.

—Faça um bom proveito! —Paimont disse entregando o arco e uma pequena sacola de couro com algumas flechas.

—Obrigada por estar nos ajudando Silivar, é de grande importância!

—Só quero que consigam o que eu não consegui naquele lugar.

—Nós vamos conseguir.

—Certo, agora vem a parte difícil, precisaremos atravessar um amontoado de rochas. Já escalaram alguma vez?

—Dezenas de vezes. —Kevin afirmou.

—Nunca. —Celine disse prendendo o arco em suas costas.

—Pois será sua primeira vez Celia. —Paimont disse voltando com o nome falso.

—Eu sei me virar.

Eles percorreram um caminho acidentado até chegar à base da montanha cujo nome se intula Kurif. Paimont liderava o caminho, enquanto Celine e Kevin a seguiam. A escalada exigiu muito dos três, mas Kevin parecia ter uma facilidade surpreendente para escalar as rochas. Celine, por outro lado, encontrou dificuldade para subir e precisou da ajuda dos outros dois para chegar ao topo. Quando finalmente chegaram ao topo, foram recebidos por uma vista espetacular das montanhas circundantes e do vale abaixo. A brisa fresca que soprava pelo topo das rochas refrescou os rostos suados dos três viajantes, e Celine sentiu-se maravilhada com a beleza da natureza que se desdobrava diante de seus olhos. Pela primeira vez em Calabra ela avistou algo bonito, e se sentiu satisfeita.

—Uau, isso..., isso ainda é Calabra? —Celine deslumbrou-se.

—Por incrível que pareça sim.

O lugar era um bosque com pequenas árvores de folhas rosas e avermelhadas. A grama era escura, o ar era limpo, as pedras embutidas no chão eram lisas, e um caminho de feno destacava-se no bosque.

—Por que esse lugar não é habitado? —Kevin perguntou descendo as rochas

—Pois por mais bonito que seja, seu perigo também é iminente. —Ela pausou e limpou a boca. —Aqui inicia nosso verdadeiro desafio.

Andando pelo caminho, Paimont começou a falar mais de sua vida.

—Cresci neste lugar, e recomendo a vocês, se saírem daqui vivos, nunca mais retornem!

—Por que tantas pessoas ainda vivem aqui?

—Pela ganância, por não ter mais onde morar, pelo fácil acesso ao ato de violência, e vários outros motivos mórbidos.

—E você..., por que você ainda não saiu daqui?

—Prometi a mim mesma que passaria o resto da minha vida no mesmo lugar em que tirei a vida de meu pai, e onde minha mãe também faleceu. Ir embora é como fugir do meu passado, e o passado não é enfrentado, é lidado.

Com as falas de Paimont, Celine refletiu seu ato cometido aos quinze anos. Por um breve momento ela relembrou a cena em que observou Mysa Nohik sendo morta aos seus comandos. Uma culpa instalou sua mente, um sentimento de comprometimento com todas as mortes que estavam acontecendo todos os dias na guerra a dominou. De certa forma, Celine tinha uma porcentagem de culpa pelo começo da guerra, mas agora com cinco anos de batalhas brutais ela não sentia arrependimento, mas sim uma vontade de mudar o destino da guerra.

—Como conseguiu um bar para você? —Kevin indagou.

—Quando perdi meus pais entrei para o mundo da prostituição, para ganhar o mínimo dinheiro de sobrevivência. Um cliente velho ofereceu que eu fizesse tudo que ele quisesse por um ano, em troca ele me daria um bar para trabalhar. Durante esse ano eu engravidei dele, depois que o tempo passou foi embora de Calabra e levou consigo o meu filho.

—Sinto muito pela perda. Você sabia ao menos quem esse homem era?

—Ele nunca me disse seu nome, mas sempre me lembrava que fazia parte da nobreza de Norteya, possivelmente um lorde da capital.

Ao escutar um estrondo agudo vendo de uma floresta os três paralisaram. Em questão de segundos, avistaram uma aldeia sendo completamente consumida pelas chamas. O desespero tomou conta deles ao escutarem os gritos de dor agudos vindo das casas. Correram para ajudar, mas a cada passo, a tristeza e angústia os consumiam ainda mais. Todas as pessoas que tentavam ajudar morriam no caminho, e eles se viram impotentes diante daquela situação. Em meio ao caos, viram um menino de dez anos de aparência magra, cabelos pretos e olhos azuis. Estava escondido atrás de uma árvore, tremendo de medo. Celine correu para pegá-lo, enquanto Paimont e Kevin tentavam encontrar mais sobreviventes. A garota sentiu seu coração apertar ao olhar para aquele garotinho indefeso, pensando no que teria acarretado aquele incêndio.

Celine abraçou o menino com força, sentindo suas lágrimas molharem o rosto dele. Sabia que não poderia curar a dor que ele estava sentindo, mas queria pelo menos oferecer algum conforto. A tristeza a invadiu enquanto caminhavam pela aldeia em ruínas, ainda com vestígios de chamas, a sensação de impotência a deixava com o coração apertado.

Aquela experiência a fez entrar em estado de choque, trazendo à tona seus medos e inseguranças.

Quando se tomou uma distância considerável do incêndio, ela deixou o garoto no chão e começou a limpar seus machucados.

—Estou com você..., vai ficar tudo bem! —Celine tentava ao máximo transparecer calma e carinho.

—Meus pais..., eles morreram..., estão todos mortos...

O garoto chorava desesperadamente, enquanto mexia seu corpo sem controle.

—Mas você está aqui, vivo! Seus pais iriam querer que você estivesse bem, e de certa forma você está!

—Quem é você? —O garoto perguntou lentamente.

—Celia.., me chamo Celia Pront, e você? —Celine mentiu.

—Me chamo Ayreh.

—Tudo bem Ayreh..., vai ficar tudo bem, você vai ficar bem, eu prometo!

—Eu não quero morrer, eu não quero morrer! Por favor...

—Você não vai morrer, me escute, eu vou te proteger.

—Promete? —Ayreh sussurrou limpando as lágrimas.

—Prometo garoto. Vou te levar para um lugar seguro.

—Por que faria isso?

—Pois quero te ajudar, pois preciso te ajudar!

—O que está acontecendo aqui Celia? —Paimont gritou se aproximando.

—Estou ajudando esse garoto, precisamos levar ele.

—Não, seria uma distração, não podemos ter distrações.

—Eu não vou deixá-lo aqui sozinho! Todos morreram!

—Não importa, isso não é problema nosso. Esse incêndio provavelmente foi causado por um bruxo, temos que ir embora daqui antes que ele volte. Agora largue esse garoto. Sabe onde está o Kevin?

—Paimont, acho que você não me entendeu, eu não vou abandoná-lo de forma alguma.

—Para o seu próprio bem você vai Celia! Não sabemos a origem dessa aldeia, e se for uma alucinação? E se tudo isso for um tipo de feitiço para nos distrair? Esse garoto pode ser uma armadilha, ele pode ser a causa da nossa morte!

—Eu confio nele.

—Confia? Você acabou de conhecê-lo caralho! Eu conheço a porra deste lugar Celia, eu sei dos perigos, e eu afirmo com toda certeza que levar esse garoto é uma péssima ideia.

Celine sentia a repulsa de Paimont e tentava argumentar com ela, mas suas palavras pareciam cair em ouvidos surdos. As feições de Paimont eram duras e frias, mostrando claramente a sua redundância. 

—Não estamos no lago dos duendes ainda, ele não é um perigo! —Celine começou a se aproximar sem demonstrar ataque.

—Que merda você está falando? Você não percebeu ainda? Não existe perigo apenas no lago dos duendes, o perigo está em toda Calabra. E você nem ao menos sabe se já chegamos! Vamos sair daqui logo e procurar o Kevin, agora!

—Não. Não vou deixá-lo.

O olhar de Paimont, ao escutar as palavras firmes de Celine. Suas feições ficaram tensas, os olhos apertados em raiva, como se estivesse sendo desafiada por Celine. Paimont não gostava de ser contrariada, especialmente por uma mulher mais jovem do que ela. Ela se sentiu desafiada e suas emoções explodiram em um turbilhão de raiva e ressentimento. Por um instante, um silêncio frio e hostil pairou no ar, enquanto os olhos de Paimont lançavam um olhar fulminante em direção a Celine.

—Pois eu mesmo o mato. —Paimont sacou uma adaga e a apontou em direção a eles.

Rapidamente Celine estendeu seu arco e o puxou, armando e apontando uma flecha para Paimont.

—NÃO DÊ MAIS NENHUM PASSO! —Celine firmou os pés no chão e a olhou com desprezo.

—Você não tem noção do que está fazendo.

—O que significa isso? —Kevin chegou correndo.

—Sua amiga idiota quer levar uma armadilha para a viagem. —Paimont riu ainda segurando a adaga firmemente.

—Se o deixar aqui, ele vai morrer, eu não vou abandoná-lo!

—A gente pode acompanhar ele até uma aldeia mais próxima Paimont, não é perigoso! Não precisa disso. —Kevin afirmou concordando com Celine.

—Eu disse que não..., não vou permitir!

Rapidamente Paimont começa a correr em direção a Celine, que em um piscar de olhos é jogada ao chão com o impacto de uma flecha em seu ombro, causando uma dor absurda. A mulher ainda insatisfeita se levanta ao soltar um grito e continua correndo, mas novamente é jogada ao chão com um empurrão das pernas de Kevin que correu em direção a ela, dessa vez ela esbarra em uma árvore e fica imóvel na grama reativo a tamanha dor. Assim que ela se estabeleceu na grama, Celine puxou o arco novamente e apontou em sua direção.

—E pensar que eu fui tola em acreditar que vocês seriam sábios o suficiente para confiarem em mim! —Ela agarra a flecha embutida em seu ombro e com um movimento brusco a puxa, a retirando de sua pele. —Eu espero..., eu espero que morram da forma mais brutal no lago, isso se conseguirem chegar até lá! —Paimont demonstrava uma feição de ira e tamanho ódio que a fazia ranger os dentes.

—Vá embora Paimont! —Kevin ordenou.

A mulher levantou-se da grama sentindo muita dor e começou a se afastar, sem dizer nenhuma palavra. Sumindo entre as neblinas, Paimont partiu e os abandonou.

—Você está bem? —Celine pergunta virando e se agachando para o garoto.

—Estou, obrigado. Nada do que ela disse é verdade.

—Eu sei, eu confio em você!

—Espero que esteja fazendo o correto. —Kevin disse se agachando.

—Obrigada Kevin. Obrigada de verdade.

—Estarei sempre do seu lado, não importa a circunstância!

Os dois se encararam por um instante enquanto lançavam um confortável sorriso.

—Vamos continuar na mesma direção, vai dar certo! Pode levá-lo no colo? —Celine diz se levantando.

O soldado confirma e em seguida pega Ayreh pelos braços.

Celine, Kevin e Ayreh seguiram adiante, caminhando em linha reta através de uma densa floresta. O ar estava pesado e úmido, tornando a caminhada ainda mais difícil. Eles passaram por riachos com águas turvas e misteriosas, que serpenteavam por entre as árvores. Mais adiante, eles chegaram a um cemitério abandonado, onde as lápides estavam cobertas de musgo e as árvores pareciam torcidas em forma de mãos assombradas. Celine mal podia suportar o frio arrepiante que a acompanhava em cada passo.

Enquanto andavam, ouviam-se gritos selvagens vindos da floresta, mas não se atreviam a investigar. Por fim, eles chegaram a um penhasco que dava para um abismo negro e assustador. O vento soprou em rajadas fortes e os cabelos de Celine voaram para trás. Ela recuou, sentindo o medo percorrer cada parte de seu corpo. Kevin, mais destemido, se aproximou da beira do penhasco e olhou para baixo, e avistou nada além de um vazio. Ayreh permaneceu quieto, observando tudo com grande curiosidade, ainda se recuperando do trauma.

Celine sentiu uma forte pressão em seu peito, como se uma mão invisível estivesse apertando-a com força. Ela sabia que precisavam continuar, mas seus joelhos tremiam. Seus pensamentos estavam cheios de imagens da aldeia em chamas e dos gritos de dor que ainda ecoavam em sua mente. Ela tomou uma respiração profunda e decidiu seguir em frente. Com um aperto no coração, ela encarou Ayreh e lembrou de seu filho. Um luto a prevaleceu, a ficha havia caído. Pela primeira vez ela sentiu uma tristeza profunda inimaginável, pela primeira vez ela realmente confirmou a morte de seu filho para si própria, que até então era apenas um fato ocorrido e superado.

—Para onde iremos? A floresta acaba aqui. —Kevin aperta os olhos ainda olhando para baixo.

—Pule. —Ayreh sussurrou. —Pule.

—O que?

—É a entrada do lago, pule.

—É um abismo que não se pode avistar o fim e está dizendo para pular? —Kevin voltou o rosto para o garoto.

—Confie, eu sei, é só pular.

Celine respirou fundo e começou a correr até o abismo, ignorando os gritos de Kevin e as tentativas de a conter. Sem medo, firmando suas pernas, com a respiração ofegante, ela pulou.

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