Parte 1 - Capítulos 1 e 2
Parte 1
O passado é história, o futuro é mistério, e hoje é uma dádiva. Por isso é chamado de presente!
Provérbio Chinês
[Manuela]
1 -
Uma nova aurora
Certa vez, o professor de história falou sobre a origem de algumas palavras, tão comuns em nosso dia a dia, mas que não prestamos atenção ao correto significado. Aurora, alvorada, amanhecer, madrugada... Para muita gente é tudo a mesma coisa.
Deitada na minha cama, eu observava, lá fora, o movimento da claridade natural crescendo sobre o brilho da tela da televisão... O professor denominou aquele momento do dia de aurora, que é quando o dia clareia, mas o sol ainda não está presente.
Mais uma noite sem conseguir dormir...
Se eu cochilei entre um filme e outro, foi muito.
Com um esforço supremo, fiquei de pé, diante da magnífica janela panorâmica do meu quarto, que eu fazia questão de deixar com as cortinas escancaradas mesmo à noite... Sabe, eu costumava amar aquela vista! Dava para enxergar a cabeceira da ponte centenária e um pedacinho do mar calmo, mais à esquerda. Em dias ensolarados, a água do mar brilhava como um tecido bordado em lantejoulas coloridas. Agora, porém, tudo parecia tão cinzento e sem graça...
Mergulhada em meu atordoamento constante, deixei-me ficar - o frio da lajota irradiando pelas solas dos meus pés descalços. Um vago lembrete do inverno que estava chegando. Mas quer saber? Eu não me importava. Só... fiquei ali, parada.
Com um suspiro de puro desânimo, eu me forcei a vestir o uniforme.
Enquanto enfiava a cabeça pela gola apertada da blusa, avistei as primeiras luzes no horizonte, ainda pouco detectáveis da posição em que o prédio se encontrava. Na verdade, não eram luzes; e, sim, um tímido traço incandescente, que o professor de História lindamente denominou de alvorada.
De acordo com ele: "se a alvorada é uma palavra de origem espanhola, referente às primeiras luzes diurnas, por outro lado, a aurora vem de Aurora - a deusa romana que anuncia o dia". E se eu não estivesse tão entorpecida agora, acabaria rindo desta cultura inútil.
Pois é, que coisa mais ridícula de se pensar àquela altura do campeonato: as extravagâncias das minhas aulas de História. No entanto, era só o que vinha a minha mente vazia e anestesiada.
Passei a mão pelo rosto. Não percebi que estava chorando até sentir os dedos molhados. Automaticamente limpei as bochechas e sentei na beira da cama desfeita (pra lá de quinze dias), a fim de iniciar a terrível tarefa de amarrar os cadarços dos tênis... Tênis-botas; ou botas-tênis.
Ah, tanto faz...
Ao final do processo, eu estava exausta e com dois pares de laços mais ou menos feitos. Isso porque eu teria que ter a paciência de reorganizar todas as casas por onde os cadarços passavam se quisesse ter um resultado melhor... Paciência... Vou dar uma de Sandra, hoje. Ou quase...
Não exagera! Deprimida, sim, relaxada, nem tanto!
Levantei a cabeça e voltei a fitar o amanhecer, lá fora. Cuidado, Manu... Quando você olha demais para o abismo, ele olha de volta para você. Eita, que agora eu estava citando frases feitas do professor doidão de filosofia. Nietsche na veia, galera!
Pois é...
A vida para além da minha janela prosseguia implacável e com total indiferença para com os sofrimentos alheios. Tomava um ritmo cada vez mais acelerado conforme a claridade do dia se firmava. As pessoas agora caminhavam apressadas pelas calçadas estreitas, com olhares sorrateiros, quase sempre presos às telas de seus celulares. Os carros passavam com cada vez mais frequência, alguns em baixa velocidade, outros chispando - à moda de "velozes e furiosos".
Entre os furiosos provavelmente estavam os baladeiros, voltando para casa. De certo, tais como os vampiros, pretendiam dormir o resto do dia. Eles vinham das boates ou das festas em casas particulares, faziam questão de acordar a vizinhança toda. Como um último ato apoteótico antes de se enfiarem em suas tocas e se pendurarem de ponta-cabeça.
Até a próxima festa.
E as clandestinas eram a última moda - estratégicas para dar aos pais e/ou responsáveis a falsa sensação de que o filho ou a filha está num ambiente seguro; geralmente acontecendo no "lar" de um "amigo", ou "colega". Era o que eu chamava de ter um "traficante amigo", ou "personal traficante". O viciado morria pouco a pouco pela mão de um fornecedor que agia como o seu apoio emocional.
Eu conhecia bem esse tipo de "amizade". Conhecia bem os jovens do instituto e poderia tirar uma base daí. Por amizade, leia-se: alianças de interesses, por necessidade, ou objetivos em comum.
Keep Up with The Drogadishans com muitos likes, selfies e comments.
(Pausa para uma risadinha cínica - Hihihihihi).
Tantos jovens oportunistas faziam das festas clandestinas, um negócio lucrativo... Dava até medo como a garotada já considerava tudo isso normal. E a polícia fazia alguma coisa? Bom, essa é a pergunta da década. Em Floripa, era preciso um verdadeiro evento cósmico para ver a polícia na rua. Ainda mais se fosse para atender os bairros mais distantes.
Quer dizer, os bairros classificados como menos importantes...
Um detalhe sobre mim... Costumo divagar a respeito das mazelas da vida, sem nenhum esforço. Transformei essa minha condição de perturbada-mental-fingindo-ser-normal, por assim dizer, numa forma de comunicar às pessoas, coisas que eu acho que precisam ser discutidas.
Minha irmã, tadinha, acreditava ser a única crítica da família, e apostava a vida, com a mão sobre a bíblia, que eu não passava de uma desmiolada, fútil, cabeça-oca, sem-noção e sinônimos associados. Eu a deixava pensar o que quisesse. Até me divertia com isso. Era o meu disfarce, tipo Bruce Wayne/Batman.
A única que me conhecia de verdade era a Camélia, minha melhor amiga. Nós duas fundimos nossas habilidades ocultas num personagem que rapidamente se tornou famoso em nosso meio estudantil: o @Paladinodaverdade.
A galera da escola sempre comentava os posts do Paladino. Criavam mil teorias sobre quem poderia estar por trás do perfil, que, vez ou outra, revelava verdadeiras "bombas" sobre algumas personalidades de nossa comunidade escolar. Os alvos dos posts ficavam enfurecidos, naturalmente; a diretora do instituto queria a minha cabeça numa bandeja de prata. Quer dizer, as nossas cabeças. Minha e de Cam.
Como podem ver, andar pelas sombras era a minha especialidade e eu ria por dentro ao ver o quanto minha irmã idolatrava o Paladino. Sandra costumava desenhar mil coraçõezinhos no caderno, tipo: Sandra & Paladino... Sandra loves Paladino. Sandra e Paladino Forever. Se ela sequer imaginasse que o Paladino estava bem ao seu lado...
Definitivamente, eu morria de rir por dentro.
Mas desde a trágica morte do papai, o Paladino se calou, deixando muita gente intrigada. O que eu poderia lhes falar, afinal? Sobre um motorista bêbado que atravessou a pista contrária e colidiu com o carro de um homem decente e trabalhador, desesperado para sustentar a família, a ponto de aceitar um emprego em outra cidade?
Sobre o maldito vampiro baladeiro que tirou a vida do meu pai? Sim, o vagabundo desgraçado vinha de uma dessas festas clandestinas; e não, eu não podia falar sobre isso.
Mas iria, sim, falar sobre os rachas de carro, com jovens bêbados, ou acidentes provocados por motoristas bêbados. (Caramba! Com uma academia da polícia rodoviária dentro da nossa cidade). Era outro evento cósmico vê-la na estrada, de madrugada, caçando os baladeiros em alta velocidade. A gente só via alguma eficiência, quando era para aplicar multas.
A única justiça em relação ao caso do meu pai, é que o VVD - vampiro vagabundo desgraçado - também se deu mal e deve estar tomando chá com Lúcifer a esta altura do campeonato.
Fui arrancada de minhas divagações pelo barulho rascante de um motor envenenado, seguido dos peidos do escapamento. Chegou a doer no ouvido. E lá ia outro VVD turbinado fugindo do nascer do sol - acelera, Airton!!! Pelo barulho que se seguiu, acho que o carro deixou a suspensão na primeira lombada da nossa rua... Bem feito!
Assim que o barulho escandaloso e desagradável desapareceu, ouvi um tímido e suave pio perto da janela. Vez ou outra, um pássaro conseguia cantar e - pasmem! - eu conseguia ouvi-lo! Eles faziam suas moradas nos terraços dos apartamentos ao nosso redor, ou nas poucas árvores que sobreviveram ao progresso da cidade.
Cidade grande é isso, meu bem.
Puro agito.
Eu costumava amar essa agitação, sabe? Quer dizer, antes de compreender o que estava por trás dela... Por trás do aparente glamour dos aglomerados de pessoas festejando e simulando uma alegria que definitivamente não sentiam.
Antes de meu pai ser morto por um desses inconsequentes.
Para mim, estar no meio da galera, ser elogiada, procurada, comentada, era tudo pra mim - num passado muito distante. Certo, um passado distante de quinze dias... Mas que pareciam mais de mil anos, como diria Raul Seixas. O fato é que minha vida estava dividida em antes, a garota popular, e depois da morte do meu pai - a garota que só queria se isolar.
Eu me tornei tipo uma Capitã Caverna.
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Já faz quinze dias que não apareço na escola e hoje iria ser o primeiro dia de aula, se é que me entendem. Well, meus colegas estavam esperando a volta da rainha do baile. A abelha-rainha das "Garotas Malvadas". A It Girl, que nunca encontra portas fechadas.
Mas não é isso o que eles iriam ter.
(Ah, e a propósito: "It" não vem do terrorzinho básico de Stephen King, não. Para quem não sabe, "It Girl" era meio que um atributo usado para se referir a Clara Bow, atriz famosa dos anos 1920, conhecida pela sua vivacidade, e se tornou marca registrada das pessoas descoladas e interessantes. Manuela é cultura, minha gente).
Outro detalhe sobre esta "It Girl"... (Agora, mais para Capitã Caverna) Eu costumava entrar em surto pensorrágico, quando me sentia acuada, nervosa, chateada, deprimida... E era este o caso, pois estava me sentindo no fundo do poço. Não podia imaginar a minha vida sem o papai. Não me conformava que ele tivesse morrido de um jeito tão estúpido.
Meu pai, o cara mais legal do mundo inteiro, o cara mais parceiro; o melhor pai que Deus já colocou na face da Terra. Ele me apoiava em tudo; ele me entendia como ninguém (só não sabia do lance do Paladino, graças a Deus!). Enfim, vocês entenderam que o meu pai era "O Cara", certo? Eu era muito apegada a ele. Nós tínhamos um laço especial e indestrutível... Não havia palavras suficientes para descrevê-lo.
Quanto a minha mãe, o lance era menos entusiasmado. O xodó dela era o Bruninho. Até da chata da Sandra, ela parecia gostar mais. Sandra, a responsável. Sandra, a confiável. Sandra, a certinha. Sandra, a aluna nota dez... Nossa! Como mamãe enaltecia os feitos de sua filhinha inteligente e crítica.
Nerd. Relaxada. Esquisitona.
Para ser sincera, eu não tinha afinidade com nenhuma das duas. Éramos tipo água e óleo, vinho e água, óleo de bacalhau e vinagre... Bem, vocês entenderam. Mas até que eu curtia o Bruninho. Sempre de boa, o moleque... Animado e curioso diante do mundo a ser desbravado. Eis um carinha e tanto, esse meu irmão caçula. E parecido demais com o papai. Ele era tipo, a miniatura dele. É...
Meu pai era o meu ídolo.
Ponto.
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[Manuela]
2 - Hora de deixar a Caverna?
Toc, toc, toc.
Alguém bateu na porta. Virei para me deparar com mamãe apoiada na maçaneta. Ela estava... Numa palavra? Arrasada. Noutra palavra? Envelhecida. E em outra? Descomposta... Mas fazia uma força danada para ficar alerta e ativa por nós. Eu a admirava por isso. Sabia o quanto estava sendo difícil para ela. E não havia razão para eu lhe dificultar a vida, sob muitos aspectos. Diante de nossa atual situação, eu também estava me esforçando para ser uma filha menos... "Implicante" (como ela costumava dizer).
-Já está pronta? - ela avaliou rapidamente o meu "visu" de saída: moletom preto com lantejoulas na parte da frente, formando uma pequena caveira. Achei bem apropriada ao meu humor. Como bônus, um bom subterfúgio para cobrir a blusa horrorosa do uniforme escolar. Por sorte, a calça blue jeans costumava ser aceita, no lugar da calça oficial. (Cara, aquele uniforme era pavoroso! Uma verdadeira desgraça! Motivo de terapia para centenas de jovens com um mínimo de bom gosto ou de bom senso).
Agora... Não era motivo de espanto para ninguém a minha irmã pensar de maneira diferente. Ela curtia pra caramba o uniforme da escola. Isso, por dois motivos, igualmente ultrajantes:
Motivo número 1: Porque com o uniforme, ela não precisava lavar roupa, exceto o uniforme e a roupa íntima. Houve um tempo que até a roupa íntima, ela chegou a economizar... Eu explico: quando tinha nove anos de idade, Sandra decidiu poupar as suas calcinhas e curtir o cheiro natural do próprio corpo. Trocava a calcinha apenas nos domingos, quando tomava o único banho da semana. Até que a diretora da escola onde estudávamos, chamou nossos pais para falar do... mal cheiro, em sala de aula.
Eles não sabiam de nada até aquele dia, porque trabalhavam o dia inteiro.
Sandra teve que se explicar para uma psicóloga, para quem disse exatamente isso: ela pretendia ajudar o planeta com a economia de roupas e da água potável do planeta. Mas eu sabia que o seu objetivo não era tão nobre assim. Menos coisa para lavar, mais tempo para seus preciosos gibis, etc.
Depois da bronca da mamãe, ela se emendou nesse quesito. Só que eu jamais a deixei se esquecer do episódio das calcinhas. Jamais!
Ah, mas tem um segundo motivo ultrajante para ela preferir o uniforme escolar pavoroso. Vamos a ele:
Motivo número 2: Com o uniforme, ela não precisava perder tempo, ou fundir os neurônios pensando nas combinações de roupas mais apresentáveis. Não precisava passar horas numa loja, escolhendo roupas. Sendo assim, ela ostentava sua monótona indumentária com orgulho. Era mais... prático.
Chegou a encher a paciência do papai para que comprasse o agasalho (versão esportiva do uniforme), alegando que era a última palavra em moda feminina. E adivinhe o que ela calçava para combinar? Vamos, dê um palpite, antes que eu conte...
Um par de congas! Isso, no inverno. No verão, aquelas sandálias franciscanas masculinas. (Pausa para morrer de vergonha).
Olhei de relance para minhas botas All Stars vermelhas ultrafasion. Como eu disse antes, deprimida, sim; relaxada, não! Tive um arrepio só de me imaginar calçando congas ou sandálias franciscanas.
Nada contra, mas também nada a favor.
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Tá... Eu estava viajando na maionese de novo. Quase me esqueci da presença da mamãe, parada, na entrada do quarto. Alheia às minhas divagações, ela analisava disfarçadamente o pandemônio que estava o meu quarto, desde a morte do papai. (Aposto que iria aproveitar a minha ausência para dar uma geral. Eu fingiria indignação, mas no fundo, ficaria aliviada por alguém limpar aquela zona).
Como que adivinhando os meus pensamentos, os olhos dela - inchados de tanto chorar escondido - voaram para os lençóis amarfanhados, descendo pelo cesto cheio de roupa suja, passando pelas peças espalhadas... Realmente, olhando assim parecia que um furacão tinha atravessado o quarto... Então, os olhos dela se detiveram na pesada mochila Hello Kitty, encostada ao pé da cama. Eu a tinha desde a quinta série - era a minha mochila da sorte.
Toda detonada, a coitada.
Foi meu pai quem me deu e eu jamais me desfaria dela. J-A-M-A-I-S. Era a única coisa em que eu não seguia o critério da elegância.
Mamãe compreendeu que, desta vez, eu iria mesmo pra aula. (Na primeira tentativa, há três dias, eu não consegui). Ela não comentou nada a respeito. Ao invés disso, perguntou:
-Dormiu bem, meu anjo?
A resposta era óbvia, estava na minha cara amassada, portanto, nem me dei ao trabalho de responder. Voltei a olhar pela janela, sentindo a sua aproximação. Ela hesitou, um segundo antes de me abraçar pelos ombros e encaixar o queixo em minha clavícula. Nós ficamos assim, contemplando o amanhecer movimentado da capital.
Imaginei o terminal do centro, coração do transporte coletivo, apinhado de gente. Cara, o lugar era um cu de tão pequeno e explodia feito um formigueiro... E eu teria que enfrentá-lo logo mais, quando cruzasse a ponte Hercílio Luz, "a velha senhora".
Mamãe apontou para um ciclista ao longe, vindo da ponte.
-Quando vai tirar sua bicicleta para dar uma volta? Você adorava andar de bicicleta...
É... Eu adorava andar de bicicleta... Com o meu pai. Nós saíamos bem cedinho, conforme a minha escola e o trabalho dele permitiam.
Trabalho que perdeu, pois a crise econômica tava detonando geral. Ele continuou desempregado por cinco longos meses até surgir aquela maldita entrevista de emprego em Curitiba.
-Um passo de cada vez, né? - eu respondi ainda na dúvida se conseguiria colocar o pé para fora do apartamento.
Percebendo que seu comentário desencadeou lembranças dolorosas, mamãe se calou. Melhor assim, deixemos de lado a atração da "velha senhora" e o seu tradicional entorno, que a gente costumava percorrer de bicicleta. Um bairro maravilhoso de se viver - perto de tudo e com acesso a tudo. Papai fez questão de que a gente tivesse do bom e do melhor.
O resultado tava aí - as contas se acumulando, feito montanhas: a escola e o condomínio atrasado; o IPVA vencido; o título do Lagoa Iate Clube cancelado e posto em dívida ativa.
Curitiba era a grande chance da gente se desafogar... A nossa salvação, aliás, caso o papai conseguisse a vaga. Mas ele não conseguiu.
Ele morreu.
Por causa de um VVD qualquer.
Novamente, lágrimas afloraram sem que eu tivesse controle algum. Mamãe me abraçou mais forte, por um instante. Mas, sabendo como eu era, ela apenas disse: - Vou preparar o seu café da manhã.
-Não precisa - respondi um tanto abrupta; então, maneirei o tom, quando acrescentei: - Estou sem fome, mamãe.
-Mesmo assim, uma vitamina você vai tomar! - ela resolveu usar a sua autoridade de mãe. - Não pode sair na rua assim, correndo o risco de desmaiar na escada do ônibus.
Revirei os olhos, porque estava de costas. Ela deixou o meu quarto e eu respirei aliviada.
Alguns minutos depois, foi Bruno quem apareceu na porta entreaberta; arrastava consigo aquele cobertor seu, estampado com ursinhos coloridos e carinhosos. O cabelo castanho recém-cortado em forma de tigela tava uma graça, mas eu não tinha humor nem paciência para lidar com ele agora.
Inseguro quanto a minha reação, ele colocou o dedo na boca e ficou me espiando.
Eu perguntei:
-O que você quer? - tive que fazer força para ser durona com ele. Sei que iria me debulhar em lágrimas se ficasse olhando para aquele rostinho, tão parecido com o do nosso pai.
Ele não teve tempo de responder. Sandra apareceu no corredor, pegou-o no colo e disse:
-Vamos querido, vamos nos arrumar pra escola. Deixa a Manuela ranzinza com os pensamentos dela. - Detalhe: Sandra sempre dizia o meu nome inteiro, carregando no "L", quando queria me criticar indiretamente. Ela fez uma pausa, antes de acrescentar: - Se é que uma boneca Barbie tem pensamentos.
-Bruxa - rebati, em voz alta, para que ouvisse.
-Razinnnnnza? - Bruno repetiu, enquanto era levado no colo; seu jeito predileto de viajar. Eu escutei a voz de Sandra se tornar um murmúrio, enquanto explicava o significado da palavra "ranzinza" para o nosso irmãozinho de quatro anos. Bem, ele já sabia mais palavras que muitos adultos bestificados pelo celular, que eu conhecia.
Mas quem era eu para falar mal dos celulares? Um mal necessário para conquistar a popularidade e chegar onde se quer. E no instituto, eu cheguei. Todas as portas estavam abertas para mim. Eu tinha mais de dez mil seguidores no IG. Não precisei comprá-los, nem negociá-los, como muitas pessoas faziam por aí. Os dez mil e vinte e cinco followers eram todinhos meus.
A "It Girl".
E não nos esqueçamos do @Paladinodaverdade, com seus cem mil, quinhentos e doze seguidores. Ele era seguido inclusive pela diretora do instituto, que o caçava sem tréguas. Um daqueles casos de amor e ódio - creio eu.
Por falar em redes sociais... Resolvi dar uma checada rápida, só para me atualizar. Abri o visor e meu queixo caiu. Quer dizer que o pai de Manuela morre, ela fica fora do ar por apenas quinze dias, de luto, para viver sua dor maior, e perde de uma tacada só, mais de trinta seguidores? Fala sério...
Abutres.
Danem-se! Vão ter que lidar com a Capitã Caverna, a partir de hoje, e acho que essa terá só um seguidor: a Camélia.
Sandra era capaz de rir da minha indignação. Ela se orgulhava de ser seguida por zero followers e seguir zero usuários.
Quer dizer... Fiquei sabendo ontem que ela ganhou um seguidor e teve um ataque histérico. Eu só não descobri ainda se foi porque era contra os seus princípios ter seguidores (e ela se esforçava demais para bancar a antipática da rede), ou se... O seguidor, em questão, era um garoto especial. Acho que minha irmãzinha estava se apaixonando... E não era pelo Paladino. Deveria eu sentir ciúmes?
(Pausa para gargalhadas falsas e descontroladas).
Bem, apaixonar-se por um garoto de carne e osso era contra os princípios de Sandra. Estava no fim de sua longa lista de objetivos - em algum lugar entre invadir o Palácio do Planalto e fundar um clube da luta para mulheres.
Sandra deplorava o meu tipo de popularidade. E idolatrava a popularidade do Paladino. Vai entender! Acho que tinha relação com o que o Paladino representava e o que ela acreditava que eu representasse. Sandra encarava a vida como um eterno ir e vir de cruzadas a serem defendidas.
A clássica e ultrapassada versão nerd, anos 80, da esquisitona da família, que se vestia muito mal, que não namorava... Pior, que se achava uma inteligente injustiçada. Orgulhosa de ter feito um pacto de virgindade até ganhar o prêmio Nobel (ou seja, NUNCA). E tinha como ídolos Albert Einstein, Giordano Bruno e Nikola Tezla.
Credo... Tá certo, eles foram gênios da ciência. Mas, vamos combinar, a fisionomia dos sujeitos era sinistra. Um com a língua de fora, o outro encapuzado e o outro paracendo um cadáver de tão magro. E mesmo assim, ela tinha pôsteres deles pendurados por todo o quarto. Eu não entrava lá nem a pau! Primeiro, porque era ofensivo aos meus olhos - eu gostava de estilo, harmonia, ou pelo menos uma discrepância com estilo... Mas não "o quarto do Doutor Frankstein", como eu costumava chamar, por falta de descrição melhor.
Papai costumava arbitrar nossos conflitos. Mas agora que ele se foi... Ninguém mais conseguia dissipar a animosidade entre nós duas. Eu considerava muito mais a Cam, como uma irmã, do que minha própria irmã de sangue.
Camélia também me considerava a irmã que nunca teve; Ela tinha um segredo antigo, que só eu e a minha família sabíamos. Ela tinha se emancipado aos dezesseis anos e veio de Belo Horizonte para viver em Floripa. Eu podia dizer que, apesar de curtir a vida de adulta como ninguém, havia uma tristeza profunda que a acompanhava, desde que se distanciou dos pais.
A vida dela daria uma novela.
E por falar em Camélia, encontrei cinquenta e duas mensagens dela, perguntando se eu estava bem. Simplesmente enviei um emoji por whatsapp, o do polegar virado pra baixo. Nem me dei ao trabalho de explicar os meus sentimentos. Cam entenderia.
Minha melhor amiga me conhecia do avesso.
Com um suspiro resignado, guardei o celular na mochila. Olhei para o espelho e encarei a imagem da garota triste que me encarava de volta.
-Pronta para deixar a caverna, capitã?
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