Capítulos 3 e 4

[Manuela]

3 - Um amor de irmã


-A vitamina - disse minha mãe. Entrou no quarto marchando como um general, com o copo alto de abacate com leite (a minha vitamina preferida).

Apesar de fazer as melhores vitaminas do mundo, e daquela ser a minha preferida, o meu estômago embrulhou. Aceitei com um sorriso trêmulo e forçado.

Dona Denise sorriu para mim, constrangida, como quem deseja falar alguma coisa, mas não sabe por onde começar. Parecia que ela tinha algo em mente. Era a primeira vez em que eu a via se debater com as palavras. Geralmente, ela não tinha papas na língua.

Ela acabou desistindo e saiu do meu quarto. Graças a Deus.

Fazia quinze dias... e nossa família não era mais a mesma. E eu não sabia se algum dia, iríamos nos recuperar do golpe.

Com o copo na mão, observei o movimento lá fora. Escutei minha mãe falando algo sobre o sumiço do ralador de queijo e dei meu primeiro sorriso do dia. Eu sabia bem o que aconteceu ao ralador - Sandra estava economizando com as lixas de calcanhar. Depois que soube do nosso endividamento, ela resolveu ativar os seus protocolos de esquisitice.

Tomei um gole da vitamina só para não fazer uma desfeita completa. O sabor delicioso do abacate explodiu na minha língua. Só então percebi que estava faminta. O enjoo anterior devia ser uma mistura de nervosismo com jejum prolongado. Eu também não tinha jantado na noite anterior.
Com um suspiro, afastei-me da janela e levei o copo para a cozinha iluminada. O paraíso de Dona Denise. Ela já estava atarefada com o lanche de Bruno e de Sandra. Eu era a única que me recusava a carregar uma lancheira e preferia comprar a comida na cantina. Lugar e momento de aparecer e brilhar entre os meus pares, e eu não perdia a oportunidade por nada no mundo. E não ia estragar tudo carregando uma lancheira.

Agora, porém, eu estava reconsiderando a ideia de levar uma lancheira e comer escondida no banheiro do instituto.

Uma atitude típica da Sandra. Bem, ela era a antissocial da família e provavelmente se escondia no banheiro para comer. Eu tinha quase certeza, porque ela simplesmente desaparecia durante o recreio.

Por falar na nerd bruxa, ela estava sentada diante da tigela de cereais, ainda de pijamas, com o cabelo escuro formando uma cortina para esconder o rosto.

-Vai sujar o cabelo de leite - eu falei, fazendo uma careta. - E daí, terá de gastar o seu shampoo.

- Não enche. - ela murmurou, com a colher na boca.

-Pois não, madame! - murmurei de volta, imitando o seu jeito de falar. Ela me lançou um olhar de puro ódio, mas eu nem dei bola, preocupada em localizar o meu relógio de pulso, num dos milhares de bolsos da minha mochila. Eu cuidava muito dele. Era da marca Oriente. Meu pai me deu quando fiz dezesseis.

Sandra também iria ganhar um em seu aniversário próximo. Mas papai morreu antes. Sandra decidiu que não queria comemorações. Eu soube que a mamãe foi atrás do relógio que o nosso pai pretendia comprar para ela, e já o tinha escondido no armário, embrulhado para presente.

Finalmente, ela pararia de invejar o meu. Só não sei se o presente teria a mesma emoção. Meu pai escolheu o meu e me entregou no dia. Eu tive uma festa de dezesseis anos. Na ocasião, meu pai disse: "Não se faz dezesseis todos os dias".

Sandra não teria essa mesma oportunidade. Mais um motivo para se comportar de um jeito arisco, comigo. Eu não me espantaria se ela arrumasse um jeito de colocar a culpa da morte do papai, em mim.

Achei o relógio, sentindo um grande alívio. Dei corda e coloquei no pulso.
Minha mãe viu que eu estava olhando as horas e comentou:

-Ainda tem tempo, querida. Seu ônibus só passa daqui a meia hora.

-Mas acho que eu vou indo mesmo assim - comentei, me erguendo e virando para o quarto, a fim de buscar a jaqueta.

-Deixa, mãe, ela prefere a companhia das amiguinhas metidas - ouvi Sandra dizer.

Virei para trás e a encarei com raiva.
-Sabe que não é verdade, Sandra - atalhou mamãe. - Camélia dificilmente pode ser definida como metida.

Sandra meneou a cabeça, mas não quis dar o braço a torcer. Encarava-me de cabeça erguida, a colher pousada na tigela quase vazia. Ela colocou os cabelos por trás das orelhas, sorriu e disse:

-Ah, claro, o idiota do seu namorado deve estar naquele ônibus. E você não pode perdê-lo por nada nesse mundo. Deus a livre de ficar longe do namoradinho idiota.

Ela estava falando do Osman, agora? Cara...

-Na boa... - eu sorri. - Você tá bem desatualizada. Nós nem estamos mais juntos.

-Na boa digo eu. Você troca de namorado como quem troca de roupa.

-Falou a virgem que está se guardando para o prêmio Nobel. Quem sabe, quer transar com o velhote do Einstein? Mas acho que não vai rolar nem assim, porque o cara tá morto.

Vermelha, Sandra abriu a boca para rebater...

-Meninas - disse minha mãe, num tom resignado de alerta. Estava acostumada a nossa troca de farpas. Só que, ultimamente, as farpas se converteram em adagas.

Ainda sorrindo, eu olhei de alto a baixo (coisa que ela detestava).

-Antes eu ter um namoradinho idiota, do que não ter namoradinho algum, né, esquisitona? - observei com extrema satisfação, o sorriso de Sandra desaparecer. - Quem iria ficar com uma garota assim, que se veste como um saco de batatas e nem sabe se comportar?

-Meninas - alertou a minha mãe, agora num tom cansado, pela segunda vez.

Sandra se levantou num pulo e berrou: - Eu não namoro porque não quero! É uma escolha minha, dedico-me aos estudos.

Isso era verdade.

-Sei... - devolvi, erguendo a voz também. - Mas bem que anda tomando longos banhos e se perfumando, ultimamente... Todos nesta casa sabem da sua aversão à higiene corporal, desde os oito anos de idade. Conta qual é o segredinho... Tá apaixonada, não tá?

-Sua...

-Já chega! - minha mãe se alterou. O que não costumava acontecer, por isso, nós duas olhamos para ela e um pesado silêncio recaiu na cozinha.
No silêncio que se seguiu, apenas nosso irmãozinho parecia alheio ao clima pesado.

-Razinnnnnzasss - repetiu ele, mastigando de leve o seu sanduíche. Seus olhos disparavam entre nós três.
Mamãe deu um sorriso trêmulo para o garoto, então se virou para nós com olhar dardejante. Mamãe custava a ficar enfezada. Mas quando ficava, sai de baixo.

-Vá logo para o ponto de ônibus, Manu - disse ela para mim. - Quanto a você, Sandra, precisamos ter uma conversa séria.

-Mas mamãe...

Eu sorri comigo mesma, enquanto entrava no quarto e pegava a jaqueta. Apesar de Sandra ser a queridinha, mamãe não era cega, e sabia qual de nós era a provocadora do momento. E desde que nosso pai morreu, o comportamento de minha irmã despirocou. Ela me provocava o tempo todo.

Coloquei as alças da mochila pelos braços, sem me deter no caminho. Queria sair logo daquele ambiente opressivo. Como Sandra preferia levar o Bruno (e sempre recusava a minha ajuda), então, eu estava livre, leve e solta. Caminhei até a porta, mas parei, antes de abri-la. Olhei receosa ao redor, para ver se Oliver não estava por perto.

Nosso pequeno pequinês era ardiloso e disparava porta afora, sempre que via uma chance de ganhar o mundo. O sapequinha era já um senhor de idade, mas se comportava como filhote. Nós tomávamos todos os cuidados, pois ele só podia sair em horários pré-estabelecidos, seguindo as regras do condomínio.

Não o encontrei em parte alguma, então, abri e fechei a porta rapidamente, para não dar mole pro azar.

Respirando fundo, atravessei o corredor iluminado até o hall dos elevadores - onde tinha um espelho de corpo inteiro, um vaso com flores artificiais, empoeiradas, e um sofazinho tão baixo que, provavelmente, a pessoa precisaria de ajuda para se levantar. Apertei o botão e esperei.

Peguei o celular do bolso e chequei as mensagens. Vamos às novidades... Então, Marcos finalmente tinha se declarado para Cam. Eu não gostava dele, o garoto era um escroto, mas Camélia estava apaixonada... Melhor não me meter.

Dulce estava em campanha flagrante na internet, batalhando para pegar a minha posição, como a garota mais popular do instituto. Vai ver foi por isso que perdi seguidores. Ah, vai sonhando, filhinha. Eu posso ter me tornado uma Capitã Caverna, mas... Uma vez It, sempre It.

Terminei de checar as conversas nos grupos, me fazendo de invisível, quando o elevador abriu as portas com um zunido suave. Entrei, sem tirar os olhos do celular. Estava digitando uma mensagem para Cam, avisando que estava a caminho do ponto de ônibus. Ela devolveu em seguida, dizendo que me encontraria lá, com o Marcos.

Eu de vela? É ruim, hein?

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[Manuela]

4 - O dilema de Cam


Camélia era a segunda garota mais popular de nossa escola, depois de mim, é claro. Dulce não sabia, mas precisaria matar nós duas a fim de deixar o seu mísero terceiro lugar para trás. E mesmo que conseguisse, isto é, assassinasse duas concorrentes sem ser apanhada pela polícia, nunca poderia se comparar a mim...

Quem dirá, à Cam!

Minha melhor amiga era deslumbrante! Com cabelos naturalmente sedosos e cacheados. Fazia uma maquiagem impecável, sempre de olho nas tendências da moda. E se vestia como a deusa que ela era.

Cam só tinha um defeito: era perfeccionista demais. Infelizmente, nunca estava satisfeita com a própria aparência. Talvez por causa dos elementos genéticos que não podia controlar, ou modificar: ela era alta demais, necessitava se depilar com bem mais frequência que a maioria (apesar dos hormônios que tomava), e precisava se cuidar para não ficar forte demais. Ela não queria isso. Quando se exercitava, tomava todos os cuidados para não fazer nada que estimulasse a sua musculatura a se desenvolver, conforme o curso natural da estrutura física herdada.
Ainda usava aqueles cachecóis estilosos, que se tornaram sua marca registrada, apesar de ter feito uma cirurgia para raspagem do pomo de Adão. Uma cirurgia que nossa família acompanhou, no pós-operatório, já que ela não pode contar com os parentes de sangue. Para eles, Camélia morreu quando decidiu se emancipar e mudar de gênero.

A cirurgia do pomo de Adão não é a última das que Camélia teria de fazer para completar sua mudança de sexo. Nem a mais dolorosa, ou invasiva. A pior de todas seria a de redesignação sexual, que ela aguarda a idade mínima de 21 anos para se submeter. Mas a emoção já foi grande quando recebeu o documento definitivo. Paulo estava morto. Longa vida à Camélia, como em "A Dama das Camélias", seu livro preferido desde que tinha onze anos.

Cam tinha medo que as pessoas soubessem de toda a trajetória que teve de enfrentar para se tornar uma mulher, por direito. Sofreu tanto preconceito em sua terra natal... A família tratou-a como doente e depois, quando viu que não tinha jeito, considerou-a morta. Ela encontrou a chance que buscava, ao receber uma herança de uma tia-avó muito querida. E imaginou estar virando uma página, ao se mudar para Florianópolis.

Camélia apaixonou-se pelo garoto mais popular do instituto, Marcos - um babaca, na minha opinião. Mais um VVD.

O filhinho de papai sempre teve tudo de mão beijada, ao contrário da minha amiga. Eu achava que ele não era o cara certo para a Cam. Mas ela o queria, de coração, corpo e alma. O problema estava no fato de Marcos orgulhar-se de ser o cara mais machão do instituto... E Cam não teve coragem de lhe contar que ela também já foi garoto, um dia. Vivia num dilema constante: contar, ou não contar.

Afinal, não era justo. Ainda mais se os dois quisessem dar o próximo passo na relação.

Eu tinha maus presságios quanto a isso, mas apoiava a minha amiga em tudo. Assim como ela me apoiava.
E falando nela, Camélia chegou ao ponto de ônibus com o Marcos a tiracolo. Os dois moravam perto, e o namorado estava dando uma de atencioso para com a melhor amiga da namorada. Mas nada que vinha dele me soava espontâneo, se quer saber. Pra começo de conversa, o Marcos não andava de ônibus. Estava na cara que só fazia isso para amaciar a Cam.

-E aí? - ele me cumprimentou com um aceno, enquanto Cam me abraçava.

-Amiga...! - ela disse, num suspiro. - Como você está? - Afastou-se ligeiramente para me analisar.

Eu disfarcei com um sorrisinho.

-Levando... Não tenho escolha. - Meus ombros arriaram, pressionados pela dor e pelo peso da mochila. - Não vou mentir, estou mal.

Ela fez que sim com a cabeça. - Doe amiga. Eu sei.

O ônibus chegou naquele instante, me livrando de dizer qualquer coisa. Na fila, havia outros estudantes do instituto que moravam ali perto. O uniforme pavoroso nos denunciava a todos. Além do mais, o Instituto Politécnico Continental (IPC) era o maior, e mais conceituado colégio particular do sul do Brasil; recebia mais de seis mil estudantes em suas dependências distribuídas em dois quarteirões conjugados.

A galera vinha de todas as regiões próximas para estudar no instituto.
Sendo assim, éramos muitos usando aquele uniforme horroroso. Formávamos o exército marrom-glacê.

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A porta do ônibus abriu, a gente foi entrando, em nossa organização barulhenta de sempre. Eu devia estar habituada, mas depois do que passei eu me senti meio perdida no meio da muvuca.

Sentei no fundo e coloquei meus fones de ouvido. Marcos e Cam sentaram nos bancos ao lado do meu. Ficaram conversando baixinho, enquanto Cam esticava o braço para segurar a minha mão, numa atitude solidária. "Eu estou aqui. Estou presente", ela estava me comunicando em silêncio. Eu sorri e virei o rosto para a paisagem, enquanto o ônibus se movia em meio ao emaranhado de ruazinhas tortuosas.

Meus olhos se encheram de lágrimas.
Que merda, outra vez! Por sorte, eu estava usando o rímel à prova de água, que Cam me emprestou. Por falar nisso, eu precisava devolvê-lo. Já estava comigo há mais de um mês... Cam era uma pessoa especial! Capaz de tirar a roupa do corpo se fosse preciso, ou a comida da boca, só para ajudar um amigo. Desnecessário dizer que eu faria o mesmo por ela.

Não era a toa que ela estava vestida com a minha saia preferida, hoje.

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